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“Donald Trump está cada vez mais isolado” é, provavelmente, uma das frases mais repetidas do jornalismo sobre o atual Presidente dos EUA desde que venceu as eleições de 2016. Basta uma pesquisa no arquivo do The New York Times para encontrar artigos de várias alturas e diferentes contextos em que a conclusão é mesmo essa: a de que Trump está cada vez mais sozinho.
A 15 de dezembro de 2016, ainda Donald Trump não tinha tomado posse, o Conselho Editorial do The New York Times já dizia que a rejeição do então Presidente eleito, aliada à possibilidade, asseverada pelos serviços de informação, de as eleições terem sido influenciadas pela Rússia, o deixava “isolado”. A 10 de junho de 2018, lia-se que Donald Trump estava “isolado” no plano internacional. A 28 de fevereiro de 2019, o mesmo jornal escreveu que Donald Trump estava “isolado” no que às alterações climáticas dizem respeito. A 2 de junho deste ano, voltava a ler-se que esse isolamento era também sentido além-fronteiras, estando Donald Trump num ponto em que “nunca antes tinha estado tão isolado e sido tão ignorado e até gozado”. A 22 de julho, também de 2020, o The New York Times falava de um “momento de enorme isolamento para o Presidente” depois de ter sugerido que as eleições presidenciais, que viriam a ter lugar a 3 de novembro, podiam e deviam ser adiadas.
O The New York Times está longe de ser o único jornal a usar repetidamente essa fórmula. Desde o The Wall Street Journal ao The Washington Post, trata-se de uma figura frequentemente usada pelos media norte-americanos. E, sim, o Observador também o escreveu várias vezes ao longo dos últimos quatro anos — até antes de o Presidente dos EUA ter tido de se isolar literalmente por estar com Covid-19.
Quais são as próximas datas do processo eleitoral dos EUA?
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- 8 de dezembro: os estados dão indicação de voto, consoante o resultado, aos seus membros do Colégio Eleitoral;
- 14 de dezembro: os membros do Colégio Eleitoral votam;
- 23 de dezembro: o vice-Presidente recebe os votos;
- 6 de janeiro de 2021: a Câmara dos Representantes e o Senado contam os votos do Colégio Eleitoral, de modo a autenticá-los;
- 20 de janeiro de 2021: o próximo Presidente dos EUA toma posse.
Esta segunda-feira, 14 de dezembro, os membros do Colégio Eleitoral votam em cada estado, presumivelmente de acordo com aquilo que ditaram os cidadãos que representam. A confirmar-se o mais provável desfecho, Joe Biden, que já foi dado como vencedor pelos media, será oficialmente o vencedor das eleições de 3 de novembro de 2020 com 306 votos no Colégio Eleitoral, à frente dos 232 de Donald Trump. Essa confirmação pode saber-se já esta segunda-feira por vias oficiosas ou, então, oficialmente apenas a 6 de janeiro de 2021, dia em que o Congresso certifica a votação do Colégio Eleitoral.
Desta forma, Joe Biden está cada dia que passa mais próximo de chegar à Casa Branca — algo que ficará absolutamente confirmado a 20 de janeiro de 2021, dia da sua tomada de posse. Mas, enquanto isso, Donald Trump rejeita por completo a ideia de que perdeu as eleições. É caso para dizer, novamente, que está cada vez mais isolado?
A resposta? Um rotundo nim.
Os responsáveis e as instituições que o deixam isolado
É conhecido o apreço que Donald Trump tem pela lealdade daqueles que o rodeiam — e como a sua expectativa é da que aqueles que ele escolhe para ter à sua volta não o abandonem em momento algum. Mas, neste aspeto, há razões para dizer mesmo que Donald Trump está cada vez mais isolado.
Um dos golpes mais fortes para o Presidente partiu precisamente de uma das pessoas que até aqui lhe tinham sido mais leais: o procurador-geral, Bill Barr. Este jurista conservador chamou a atenção de Donald Trump depois de ter enviado espontaneamente, em junho de 2018, um memorando de 19 páginas onde criticava amplamente a investigação em torno do alegado (e entretanto dado como não-provado) conluio entre a equipa de campanha de Donald Trump e o Kremlin. Pouco mais de meio ano depois, a fevereiro de 2019 — e numa altura em que no fundo acusava o então procurador-geral, Jeff Sessions, de falta de lealdade e comprometimento —, Donald Trump chamou Bill Barr para liderar a justiça norte-americana.
Agora, foi esse mesmo homem que disse à Associated Press, a 1 de dezembro, o contrário de tudo o que Donald Trump tem dito e insistido desde o dia seguinte às eleições: “Até à data, não vimos fraude eleitoral numa escala que teria levado a um resultado diferente nestas eleições”.
Ao mesmo tempo, Donald Trump continua a insistir na contestação dos resultados eleitorais em vários estados decisivos. E aí têm-se destacado, em primeiro lugar, alguns responsáveis do próprio Partido Republicano nalguns dos estados mais disputados nestas eleições e onde Joe Biden venceu. Uma das vozes que o fez com maior eloquência foi o secretário de Estado da Geórgia, o republicano Gabriel Sterling. Sendo, por força das funções, o responsável por supervisionar o processo eleitoral, deu uma conferência de imprensa para rejeitar qualquer ideia de fraude.
“Vou dar o meu melhor para me controlar…”, começou por dizer. Depois, disse cada uma destas palavras pausadamente: “… Porque isto foi longe demais. Tudo!”. De seguida, referiu que um funcionário na casa dos 20 anos que trabalhou no processo de contagem de votos recebeu várias ameaças de morte. Acrescentou também, como foi público, que um advogado da equipa de Donald Trump, Joe DiGenova, defendeu que Chris Krebs (que foi demitido a 17 de novembro do cargo de diretor da CISA, a agência governamental para a segurança eleitoral, depois de ter dito numa entrevista que as eleições decorreram sem problemas) devia levar um tiro.
“Isto tem de parar!”, gritou Gabriel Sterling. “Senhor Presidente, você não condenou nem estas palavras nem esta linguagem. Senadores, vocês não condenaram esta linguagem nem estas ações. Isto tem de parar. Precisamos que vocês assumam uma posição e, se é para assumirem uma própria de um líder, demonstrem-no.”
Para lá de tudo isto, o golpe mais significativo às aspirações de Donald Trump no seu processo de contestação das eleições tem partido dos próprios tribunais. Nas vésperas de o Colégio Eleitoral se reunir, e já depois de os resultados terem sido certificados em todos os estados, Donald Trump e a sua equipa de advogados já perderam mais de 50 casos em tribunal, entre aqueles que os juízes aceitaram analisar e outros que não chegaram sequer a essa fase por falta de provas.
Nada disto parecia estar nos planos de Donald Trump. Na noite eleitoral, numa altura em que os resultados eleitorais ainda estavam longe de estarem totalmente contados, assumiu logo duas coisas: que havia fraude e que ele era o vencedor. “Isto é uma fraude ao povo americano. Isto é uma vergonha para este país. Nós estávamos a preparar-nos para ganhar estas eleições. Francamente, nós ganhámos estas eleições”. E, depois disso, deixou claro que o próximo passo seria o de “assegurar a integridade [das eleições] a bem da nação”. Para quem não tinha entendido, Donald Trump foi pouco depois mais claro: “Queremos que as leis sejam usadas de forma adequada. Por isso, vamos para o Supremo Tribunal”.
O Supremo Tribunal é composto por nove juízes, que assumem aqueles cargos de forma vitalícia. Enquanto Presidente, Donald Trump teve a ocasião de escolher três desses juízes, todos de pendor conservador, e por isso mais próximo àquilo que é a ideologia e as decisões que partem dele e do Partido Republicano: Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Esta última foi nomeada pelo Presidente no final de setembro e confirmada pelo Senado a 27 de outubro.
Numa altura em que o Presidente já dava sinais de que estaria disposto a recorrer à justiça, e aos juízes por ele nomeados, no caso de querer contestar o resultado resultado das eleições. Perante a Comissão de Assuntos Judiciários do Senado, Amy Coney Barrett não respondeu diretamente o que faria neste caso, mas disse o que não faria: “Espero que todos os membros desta comissão tenham um nível de confiança na minha integridade que não lhes permita pensar que eu me permitiria ser usada como um peão para decidir estas eleições pelo povo americano”.
O início da confirmação do que aquelas palavras queriam dizer surgiu a 9 de dezembro, quando o Supremo Tribunal rejeitou julgar a queixa da equipa de Donald Trump no caso específico da Pensilvânia. A breve nota de rejeição emitida pela mais alta instância da justiça norte-americana não indicava nenhuma discórdia entre juízes — uma nota que é feita sempre que tal acontece.
E, ao final da tarde de 11 de dezembro, o derradeiro golpe que cortou a via de Donald Trump para a vitória através dos tribunais: o Supremo Tribunal decidiu não dar seguimento à queixa apresentada pelo procurador do Texas, o pró-Trump Ken Paxton, nos quatro estados decisivos das eleições. Isto é: Pensilvânia, Geórgia, Michigan e Wisconsin, cada um deles terrenos onde Joe Biden venceu. Nesta decisão, sete juízes não aceitaram de todo a queixa e embora dois (Clarence Thomas e Samuel Alito, ambos nomeados por presidentes republicanos) admitissem a possibilidade de aquelas queixas serem válidas, rejeitaram logo à partida a única solução de que aquele tribunal poderia tomar para remediar uma hipotética situação de fraude — e que passaria por impedir que os membros do Colégio Eleitoral daqueles quatro estados votassem.
Na primeira decisão, o Supremo Tribunal foi unânime contra Donald Trump. Na segunda, foi-o na prática. Ou seja, não só Amy Coney Barrett como os restantes juízes que Trump nomeou rejeitaram as suas queixas, como os outros seis também disseram “não” ao Presidente. Dos mais liberais aos mais conservadores, todos contribuíram para deixar Donald Trump mais isolado.
No triângulo da separação de poderes (executivo, judiciário e legislativo), fica claro que os republicanos e conservadores que estão no topo dos dois primeiros vértices (os governadores e autoridades estaduais no primeiro; o procurador-geral e o Supremo Tribunal no segundo) contribuem agora para o isolamento de Donald Trump. O mesmo, porém, não pode ser dito quanto aos republicanos no outro vértice (os congressistas) e aqueles que os elegeram.
O partido que não o abandona
Se há um conjunto alargado dentro da realidade política e social dos EUA que recusa abandonar Donald Trump, e consequentemente deixá-lo isolado, é o Partido Republicano — começando pelos seus eleitores e acabando nos congressistas eleitos por aquelas cores.
Primeiro, o eleitorado. De acordo com a sondagem do Morning Consult, um tracking poll (ou seja, um estudo que acompanha sempre o mesmo conjunto de pessoas, de maneira a melhor entender as flutuações na opinião pública) demonstra que entre republicanos a crença generalizada é a de que Donald Trump foi alvo de um processo fraude eleitoral engendrado para beneficiar o democrata Joe Biden.
Entre republicanos, a confiança no sistema eleitoral caiu a pique (de 68% a 25 de outubro, isto é, uma semana e dois dias antes das eleições; para 36% a 7 de dezembro). Da mesma forma, apenas 29% dizem agora que as eleições foram “livres e justas” e só 28% confiam nos resultados oficiais. A descrença por parte dos eleitores republicanos nas instituições é agora tão diminuta que até em estados que Donald Trump saiu vencedor (Carolina do Norte, Texas e Flórida) são os democratas, e não os republicanos, que mais acreditam na veracidade dos resultados.
Se é assim no país que veste o vermelho do Partido Republicano, é em parte porque aqueles que representam essas cores em Washington D.C. também insistem em não reconhecer que Donald Trump não foi o vencedor das eleições.
Ao todo, há 248 republicanos eleitos em ambas as câmaras do Congresso — isto é, o Senado (câmara alta) e a Câmara dos Representantes (câmara baixa). De acordo com o The Washington Post, até ao final da tarde de 11 de dezembro, apenas 27 desses republicanos tinham reconhecido Joe Biden como vencedor, contra 2 que diziam aberta e inequivocamente que Donald Trump era o vencedor. Enquanto isso, 219 republicanos continuam em silêncio, esquivando-se às perguntas que lhes têm vindo a ser feitas desde que, a 7 de novembro, Joe Biden foi dado como vencedor pelos media.
Até quando a pergunta que lhes é feita tem que ver com o acatamento da decisão do Colégio Eleitoral quanto ao vencedor oficial das eleições a mesma dinâmica persiste: 32 dizem que vão respeitar esse resultado; 2 dizem que não a vão acatar; e 214 não respondem se vão respeitar a decisão daquele órgão constitucionalmente instituído.
Entre os republicanos que já disseram que Joe Biden foi vencedor das eleições estão ilustres como o ex-candidato presidencial e senador Mitt Romney (que disse que as alegações infundadas de fraude eleitoral que Donald Trump tem feito “atingem os alicerces da democracia aqui e em todo o mundo”). Romney é acompanhado de outros senadores como Marco Rubio (que se referiu a Joe Biden como “Presidente eleito” num artigo de opinião e noutras ocasiões) e outros dez naquela câmara.
A ampla maioria dos republicanos, que tem estado em silêncio ou se mantêm na indefinição, tendeu até aqui a apontar para tanto para os tribunais (que já deixaram de ser opção) como para o calendário (que só deixa uma alternativa pelo caminho).
O constitucionalista e senador pelo Texas Ted Cruz aceitou o pedido de Donald Trump para ser seu advogado no Supremo Tribunal caso a mais alta instância da justiça norte-americana aceite analisar queixas sobre quatro estados decisivos: Geórgia, Michigan, Wisconsin e Pensilvânia. Desde que o senador texano anunciou a sua disponibilidade, os nove juízes daquele tribunal deitaram por terra essa possibilidade de Donald Trump — mas Ted Cruz ainda não se pronunciou.
If #SCOTUS grants cert in the PA election case, I have told the petitioners I will stand ready to present the oral argument.
Full statement below… pic.twitter.com/EnHxjqGR5K
— Ted Cruz (@tedcruz) December 7, 2020
Enquanto isso, aquele que é provavelmente o republicano mais importante do Capitólio, o senador e líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell, é dos que que prefere apontar para o calendário. “O futuro tratará de si mesmo”, disse a 1 de dezembro, continuando de forma lacónica e estritamente factual no que à cronologia diz respeito: “Vamos passar por todos estes processos. O Colégio Eleitoral vai encontrar-se a 14 de dezembro. Vai haver uma tomada de posse a 20 de janeiro”.
A última instituição que ainda lhe pode dar a vitória (mas que não deve)
Chamam-lhes faithless electors — literalmente, “eleitores sem fé”. E é neles que, por agora, residem ainda algumas das poucas esperanças que Donald Trump tem em conseguir um segundo mandato.
Os faithless electors, que a partir daqui designaremos como “eleitores descomprometidos”, são os eleitores do Colégio Eleitoral que, quando chega a altura de depositarem o seu voto em nome do estado que representam, votam num sentido diferente ao do respetivo eleitorado.
O primeiro a cometer tal ato de rebeldia foi Samuel Miles, homem designado pelo Partido Federalista para votar em nome da Pensilvânia no Colégio Eleitoral. Já na altura, esperava-se daquele homem o mesmo que se espera dos membros do Colégio Eleitoral contemporâneo: que sigam a vontade dos seus conterrâneos. Essa expectativa resulta não apenas de uma questão de confiança naquele poder delegado, mas também numa questão de algum cinismo: afinal, são os partidos vencedores que indicam os nomes que vão ao Colégio Eleitoral.
Mas Samuel Miles acabou por ir contra aquilo que o seu partido lhe indicou: em vez de votar no federalista John Adams, escolheu o seu adversário direto, Thomas Jefferson, do Partido Democrata-Republicano. Aquela viragem de casaca não lhe valeu grandes elogios. “O quê, escolhi o Samuel Miles para determinar em meu lugar se é John Adams ou Thomas Jefferson que deve ser Presidente? Não! Escolhi-o para agir, não foi para pensar!”, escreveu alguém num jornal da altura.
A verdade é que o voto desviante de Samuel Miles não alterou o curso esperado daquelas eleições: o Colégio Eleitoral confirmou mesmo a vitória do federalista John Adams. E a outra verdade é que, dos 23.507 eleitores escolhidos para o Colégio Eleitoral, apenas 90 votaram noutra opção que não aquela que se esperava.
Alguns, porque se desiludiram com o candidato inicialmente designado — o que aconteceu com 23 eleitores que não votaram em Richard M. Johnson em 1832 porque se descobriu que ele mantinha uma relação com uma mestiça. Outros, fizeram-no votando em candidatos já mortos e por isso mesmo substituídos formalmente pelo partido, como foi o caso de Horace Greeley em 1872. E também houve quem se enganasse.
Mais importante ainda, nunca o resultado expectável de umas eleições norte-americanas foi desvirtuado pela ação dos eleitores descomprometidos. Mas, em teoria, é possível que isso aconteça.
Terá, Donald Trump, aqui, uma via para a vitória?
É pouco provável. Por lei, 33 dos 50 estados dos EUA exigem aos eleitores do Colégio Eleitoral que sigam a orientação dada pelos eleitores que representam. Há estados onde os eleitores descomprometidos arriscam pena de prisão entre os 16 e 36 meses (como acontece na Flórida) ou uma multa de 500 dólares (como é o caso da Carolina do Norte). E, mesmo que haja outros onde nada obriga que os designados para o Colégio Eleitoral votem de acordo com o voto popular dos seus estados — a Pensilvânia é um deles —, seria preciso que os escolhidos pela máquina do Partido Democrata desafiassem a expectativa do seu partido e eleitores.
Este é, no entanto, o único caminho possível de Donald Trump para um segundo mandato — e, nesta altura, um entre muito poucos. Por isso, para o ainda Presidente, os faithless electors podem ser, ao contrário daquilo que o próprio nome indica, uma questão de fé.