No Coliseu dos Recreios, em Lisboa, 1.500 pessoas gritavam por “Portugal”. Os responsáveis da Tupperware explicavam o congresso, em 2014, na capital: “Estou aqui porque Portugal é número um”. Sandra Rego, segundo uma reportagem da RTP, era condecorada, nesse evento, por ser recordista de vendas. Num ano, encaixou dois milhões de euros graças aos produtos da marca conhecida pelas caixas de plástico que guardam alimentos. Portugal comemorava o facto de ser o país da região EMEA (Europa, Médio Oriente e África) com o recorde de vendas. António Gil era o diretor geral da Tupperware para Portugal e Espanha na altura, cargo que ocupou entre 2011 e 2017 (passando depois, até 2019, a ser diretor geral para a Colômbia e Equador). “Foram os anos mais bem sucedidos de 75 anos de história da Tupperware em Portugal”. Foi o “país do ano” em 2013 dentro do grupo.
Viviam-se os difíceis anos de ajustamento financeiro em Portugal. A Tupperware oferecia um complemento de rendimentos num país com uma taxa de desemprego de 14%. “A Tupperware permitia aos vendedores criarem e gerirem o seu próprio negócio” e “mudarem as suas vidas”, relata ao Observador António Gil.
Tinha uma força de vendas de mais de 10 mil pessoas. A estas juntavam-se cerca de 400 trabalhadores na fábrica de Montalvo, concelho de Constância. Foi há 10 anos.
Montalvo fecha em janeiro com pouca informação e depois de anos lucrativos
8 de janeiro de 2025. Uma mensagem do presidente da Câmara Municipal de Constância, no Facebook, anunciou o que há alguns meses se temia. A fábrica fecha a 8 de janeiro, atirando para o desemprego 200 pessoas. Da Tupperware Portugal o silêncio… apesar dos vários contactos com a empresa.
“A Câmara Municipal de Constância tomou conhecimento que no dia de ontem [19 de dezembro] foi comunicado aos trabalhadores da empresa que a mesma encerrará a 8 de janeiro de 2025”, escrevia o presidente da autarquia, Sérgio Oliveira, na rede social. Embora as informações não sejam prestadas, a indicação, segundo fonte da autarquia, é a de que não haverá recuo e a fábrica irá mesmo fechar. Essa é a informação que também chegou ao PS, indicou Hugo Costa, deputado socialista por Santarém. O PS e o PCP questionaram o Governo sobre o tema, tendo os comunistas endereçado perguntas logo em setembro, quando foi anunciada a falência internacional da Tupperware e se avolumaram os receios de que o desfecho em Portugal seria o encerramento.
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Ao PCP, o Ministério da Economia indicou apenas em outubro: “O Governo está a acompanhar o desenvolvimento da situação da empresa nos Estados Unidos da América através dos canais adequados e não deixará de o fazer relativamente à situação da empresa em Portugal”. Mas, “sendo a Tupperware uma empresa privada de gestão igualmente privada, o Governo, dentro das suas competências, realiza o acompanhamento da situação garantindo o pleno respeito das normas legais e laborais em vigor”. Mais tarde, já em dezembro e numa audição parlamentar, o titular da pasta, Pedro Reis, indicou que “continuamos em contacto”, com reuniões com a Câmara Municipal de Constância e a “procurar articulação com a casa-mãe, embora seja distinta a realidade nos Estados Unidos da América e a rede de empresas na Europa”. Não concretizou as diferenças e o Ministério da Economia não respondeu às questões endereçadas pelo Observador.
A fábrica da Tupperware em Portugal fica em Montalvo, no concelho de Constância. A sociedade que lhe dá abrigo nasceu a 7 de novembro de 1979, sob a designação Dartluso (denominação alterada para Tupperware na segunda metade dos anos de 1990). A fábrica foi inaugura no ano seguinte. Tem 45 anos e 198 empregados. Segundo os indicadores financeiros, a quase totalidade da produção era exportada, para a casa-mãe, que entrou, nos Estados Unidos, em insolvência.
António Gil recorda o ambiente familiar naquela unidade de Montalvo e a presidente da Junta de Freguesia, Ana Manique, avança que muitos dos trabalhadores, que agora irão para o desemprego, estarão entre os 30 e os 60 anos. Muitos terão dificuldade em conseguir novos empregos. Coloca a Junta — tal como a Câmara o fez — à disposição para auxiliar no que for possível. Ana Manique demonstra esperança na zona industrial de Montalvo e na possibilidade de conseguir novos inquilinos. O terreno da Tupperware, garante a Câmara ao Observador, é da própria empresa que, no fecho de 2023, registava um ativo fixo tangível (onde são registados o valor dos imóveis) de quase 2,7 milhões de euros, ainda assim menos 16% que em 2022.
Na consulta do Observador às contas da empresa denota-se que, em 2023, os stocks aumentaram de forma significativa. Passou de 191 mil euros para 322 mil euros, tendo a receber de clientes perto de 1,5 milhões de euros — o que já era sinal de problemas na casa-mãe —, um aumento de 62% face a 2022.
Ainda assim, a situação líquida da empresa era invejável. Tinha ativos de 23,9 milhões de euros, para um passivo de 3 milhões de euros. Os capitais próprios atingiram os 21 milhões de euros, com perto de 19 milhões de euros de resultados transitados e que podem ser distribuídos. O que significa que, em caso de dissolução, os acionistas — neste caso a sociedade Tupperware em Lisboa e em Madrid — ainda receberão dinheiro.
Em 2023, a empresa que detém a fábrica faturou mais de 13 milhões de euros, custando o pessoal 5,6 milhões. O mercado internacional contabiliza a maior parte das vendas — dos 13 milhões de euros, 99,94% foram exportações. O mesmo não acontece ao nível das compras. 66% são realizadas a fornecedores portugueses.
A sociedade (Tupperware Indústria Lusitana de Artigos Domésticos) que detém a fábrica em Montalvo é detida em 74% por uma companhia sediada em Lisboa (com a designação Tupperware Portugal – Artigos Domésticos Unipessoal Lda) e em 26% pela Tupperware Iberia.
A Tupperware Portugal, que é quem tem a gestão da rede de vendas dos produtos ao consumidor final, através da rede de revendedores, indica, nas suas contas, ter cerca de 30 pessoas ao seu serviço (no final de 2023). Contas que também têm uma situação líquida positiva. O ativo atinge os 38 milhões (com um valor de 15,5 milhões de euros registados para as participações financeiras, ou seja, para a participação na empresa que detém a fábrica). Os capitais próprios fecharam 2023 nos 23 milhões de euros (15,6 milhões de resultados transitados). Em 2023, registava uma dívida a fornecedores de cinco milhões de euros, mas de resto não estava com dívida bancária — embora nas contas tivesse um valor de 9 milhões de outras contas a pagar, não especificadas.
Nesse ano, o resultado chegou perto dos 1,8 milhões de euros, depois de vendas de 11,18 milhões de euros (em queda desde os 18 milhões de 2020).
É esta empresa, nascida a 14 de setembro de 1965, que tem como acionista a Dart Industries. E que, nos registos comerciais, indica que a aprovação das contas já aconteceu depois do anúncio de falência da Tupperware, que entrou com um pedido de proteção contra credores nos Estados Unidos ao abrigo do Chapter 11.
14 de outubro de 2024 é a data referida como tendo sido a deliberação da aprovação de contas da Tupperware Portugal. Já a Tupperware Indústria indica que as contas foram aprovadas a 29 de novembro, altura em que já havia um acordo de venda de alguns negócios da Tupperware mundial.
Um ícone, uma falência e uma venda…
A 17 de setembro a Tupperware Brands Corporation entrou, no tribunal de falências de Delaware nos Estados Unidos, com um pedido de proteção contra credores, ao abrigo do Capítulo 11 da lei de insolvências. Seguiram-se outras filiais.
“A Tupperware vai procurar obter aprovação do tribunal para manter a operação durante os procedimentos e continua focada em fornecer aos seus clientes os seus produtos premiados e inovadores por meio de consultores de vendas, parceiros de retalho e via online. A empresa vai também procurar obter a aprovação do tribunal para facilitar um processo de venda do negócio a fim de proteger a sua marca icónica e avançar ainda mais com a transformação da Tupperware para uma empresa digital e liderada pela tecnologia”. A justificação chegava no comunicado desse mês de setembro que ditava o destino da fábrica de Montalvo. Assinado pela CEO da Tupperware, Laurie Ann Goldman escrevia ainda que “quer seja um membro dedicado da nossa equipa Tupperware ou seja um vendedor, alguém que cozinhe ou apenas que goste dos produtos Tupperware, faz parte da família Tupperware. Planeamos continuar a servir os nossos clientes com os produtos de alta qualidade de que gostam e confiam”.
A família Tupperware é numerosa. As vendas da empresa têm como base, em primeiro lugar, a rede de vendedores, chamados consultores. Tudo começou nas icónicas festas Tupperware que ainda hoje se realizam.
O modelo de negócios levantou, agora que a Tupperware caiu, questões. Não deixou de haver quem questionasse a venda direta num mundo online e com artigos com substitutos à mão de semear em qualquer supermercado ou loja de conveniência à mão. António Gil, em declarações ao Observador, acredita, no entanto, que o modelo ainda é válido. Aliás, acrescenta, “é cada vez mais válido no mundo em que as pessoas querem ser donas do seu trabalho”, mas não esconde que são necessários investimentos em outros canais, nomeadamente no digital, que ficou atrasado.
“A Tupperware é das 10 marcas mais amadas do mundo”, indica, para atirar “culpas” pela queda à gestão dos últimos tempos. Sem desculpas pela pandemia, em que todos os negócios sofreram, mas as vendas online até aumentaram. As reuniões, nesses anos, continuaram, embora num registo virtual. E poderia ter sido essa a oportunidade. Mas aposta no digital foi escassa e perdeu-se passada a pandemia. As vendas online acabam, também, por passar pelos vendedores, como meio preferencial para a entrega.
A Tupperware já teve tudo…, mas não percebeu como é que o mundo mudou…
Rute Xavier, professora na Católica-Lisbon, traça uma justificação (num artigo de opinião publicado no Observador): “Alguém realmente acredita que uma geração que nasce com os telemóveis agarrados aos dedos, vai chamar uma agente Tupperware para fazer uma compra? Uma geração que está habituada a ter experiências de compra imediatas, praticamente sem barreiras à compra (compra com apenas 1 botão, sem introduzir dados de pagamento etc.) vai a uma reunião para comprar caixas? Uma geração que apesar de se dizer ecológica nunca pagará €30 por uma caixa que pode custar €10 (mesmo que tenha uma longevidade menor)? Uma geração que por muito independente que se queira mostrar e achar que é dona das suas decisões, só compra as caixas que a influenciadora mais ‘it’ do Instagram recebe como “parceria” e mostra nas suas stories?”.
O preço é, nota António Gil, um outro tema sensível. “A Tupperware ficou cega com os preços que praticava e não teve em conta a concorrência mais forte”.
Todos estes ingredientes aconteceram em simultâneo com a mudança de gestores, mais ligados a um modelo como a Herbalife ou a Avon, que embora também apostem nas vendas diretas através de consultores têm filosofias distintas. Rick Goings, que esteve mais de 20 anos na Tupperware, atira também, numa mensagem publicada na sua conta do LinkedIn, à gestão da empresa. “Então… o que matou a Tupperware? Bom, na verdade, a pergunta certa é QUEM MATOU A TUPPERWARE? E a resposta curta, O CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA TUPPERWARE”. E já sem a sua presença no conselho diz que a administração acabou a atirar culpas ao modelo de negócio. “Mudaram para outros canais de distribuição, abandonando a força de venda”, que já não assentava nos empreendedores e, acrescenta, também se perdeu a inovação em novos produtos.
“Nos últimos oito anos houve uma porta giratória de quatro CEO ineptos”, atira ainda, acrescentando que despediram as lideranças locais que tinham construído a Tupperware.
“Também é doloroso que nos últimos anos, aparentemente para compensar as suas perdas, o Conselho tenha permitido a venda de múltiplas fábricas em todo o mundo, os moldes de produtos e propriedades imobiliárias, incluindo os magníficos edifícios da sede da Tupperware, juntamente com os móveis e acessórios. E venderam a coleção de arte que Earl Tupper, fundador da Tupperware, tinha cuidadosamente selecionado para preencher as paredes daquele lugar alegre onde centenas de pessoas trabalhavam e para onde a nossa equipa de vendas global viajava — para visitar o Museu Tupperware, a Loja da Empresa e passear ao redor dos exuberantes jardins tropicais, antes de parar na icónica Fonte Tupperware que enfeitava a entrada da sede, para lançar uma moeda para comemorar a sua visita”.
Earl Tupper, nascido a 28 de julho de 1907 (e que morreu em 1983), foi o inventor do conceito de caixa hermética para guardar alimentos. O nome que criou para a marca acabou sinónimo do produto. Foi fundada em 1938, tendo chegado às lojas de retalho em 1946. As vendas, conta-se numa das suas biografias, eram sólidas mas estagnadas até que chegaram as festas da Tupperware, pela mão de Brownie Wise, que era então vendedora da Stanley Home. O sucesso foi tal que em 1958 Earl Tupper vendeu a companhia por 16 milhões de dólares à Rexall, que mais tarde se tornou Dart Industries (que chegou a fundir-se e a cindir-se, novamente, mais tarde com a Kraft Foods). Foi adquirida pela Premark que em 1995 fez um spin off da Tupperware que, então, lucrava 200 milhões de dólares, com vendas de 1,3 mil milhões.
Em 2013 atingiu o pico de cotação em Nova Iorque nos 72,31 dólares, chegando a valer em bolsa 4,4 mil milhões de dólares, acabando o seu reinado na bolsa a valer pouco mais de 20 milhões.
Na altura em que anunciou a insolvência, em setembro de 2024, a empresa justificava-se com o impacto da desafiante macroeconomia mundial. Os alarmes tinham soado antes, em abril desse ano, quando anunciou ao mercado que poderia ter de encerrar portas se não conseguisse financiamento. Conseguiu, então, um balão de oxigénio que durou quatro meses, sendo capaz de reduzir juros de alguns empréstimos e garantindo uma linha de 21 milhões de dólares de financiamento e uma extensão para pagar dívida de 350 milhões. Mas as luzes de alerta estavam ligadas e em setembro apagaram-se.
Voltaram a acender-se para alguns negócios em outubro quando um grupo de credores aceitou comprar parte da atividade.
“A Tupperware Brands Corporation, uma marca global icónica e uma companhia de produtos de consumo, anuncia que alcançou um acordo de princípio com um grupo de credores, incluindo a Stonehill Capital Management Partners e a Alden Global Capital. (…) A transação está feita para conduzir a uma venda privada de toda a propriedade intelectual necessária para criar e vender a marca Tupperware e os produtos premiados, mais ativos operacionais nos Estados Unidos e outras subsidiárias estrangeiras”, indicava-se no comunicado de outubro.
A 27 de novembro novo comunicado: “Party Products LLC, uma companhia formada por um grupo de credores garantidos da Tupperware Brands Corporation, anunciou a aquisição de alguns ativos da companhia, incluindo os direitos globais da marca e do nome e relacionada propriedade intelectual, assim como operações nas geografias de mercados core”. A Party Products LLC focar-se-á, acrescentava-se, na oferta de produtos Tupperware em mercados core, mercados em que as operações continuarão sem interrupções e onde os clientes poderão comprar produtos aos consultores de venda, nos sites de comércio eletrónico e nos parceiros de retalho”. Mais tarde ainda se acrescenta que o acordo de venda de determinados ativos implica uma conversão de dívida de 53,8 milhões de dólares e mais 15,5 milhões em dinheiro, além de um empréstimo temporário (empréstimo-ponte).
Em nenhuma comunicação da empresa são referidos os mercados e as geografias core. Apenas uma notícia da Inside Retail indica que as prioridades integram os Estados Unidos, o Canadá, o México, o Brasil, a China, a Coreia do Sul, a Índia e a Malásia, podendo, no futuro, adicionar mercados europeus e mais asiáticos.
Ao Observador, nenhuma das partes envolvidas — nem credores, nem compradores, nem vendedores — prestou informações. E a empresa em Portugal, que em novembro último nomeou dois novos gerentes (João Oliveira e Sousa e João Ribeiro Pinguinhas), pediu para ser contactada por email sem que tivesse dado, posteriormente, qualquer resposta.
Depois da venda… o fecho e a incógnita para milhares de vendedores
As contas de 2023 foram as últimas apresentadas em Portugal. Com lucros e uma situação líquida positiva, os números não mostram uma empresa a fechar. Nos relatórios, consultados pelo Observador, há, no entanto, um chamada de atenção do oficial de contas: “A empresa preparou as demonstrações financeiras do exercício findo em 31 de dezembro de 2023 de acordo com o pressuposto da continuidade. (…) Contudo, conforme referido no Relatório de Gestão, em setembro de 2024 a Tupperware Brands Corporation e algumas empresas do grupo deram início a um processo de proteção de credores, por dificuldades financeiras. Este processo ainda se encontra em curso, não sendo possível, a esta data, estimar os eventuais impactos que esta situação pode vir a ter nas operações da entidade. Por este motivo não estamos em posição de concluir sobre a recuperabilidade dos ativos da empresa e, consequentemente, sobre os eventuais efeitos que esta situação possa a ter nas demonstrações financeiras do exercício findo em 31 de dezembro de 2023″.
O pressuposto de continuidade está assim em causa. Não entrou qualquer pedido de reestruturação ou de insolvência na justiça portuguesa. Mas foi já depois de novembro que o anúncio do fecho da fábrica de Montalvo foi comunicado, para acontecer a 8 de janeiro.
Segundo disseram ao Observador algumas vendedoras, também há indicações para que as encomendas sejam feitas até 5 de janeiro. Mas sem referências a mudanças. “Tudo a correr com normalidade”, indica outra consultora ao Observador. Nas redes sociais da Tupperware Portugal, apontam-se às promoções. E com uma mensagem: “Feliz Ano Novo! Estamos oficialmente em 2025”.