29 de agosto de 2015. Um BMW escuro parado em segunda fila na zona das chegadas do Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Lá dentro, uma passageira tenta a todo o custo fechar a porta, mas é impedida por um grupo de taxistas que circunda o automóvel e bloqueia-o. Primeiro são dois os homens, filmados a bracejar enquanto chamam colegas que se juntem a eles: “Ajuda aqui pá! Este homem não pode ir embora!“, grita um. Aparecem reforços e às tantas são cinco. Só dispersam quando um agente da PSP se aproxima.
O vídeo no Youtube foi um espelho da desconfiança e animosidade por parte dos taxistas com que a Uber chegou a Portugal. Os automóveis descaraterizados da plataforma digital começaram a circular no país em julho de 2014 e queriam ser uma alternativa aos táxis permitindo aos utilizadores pedir um motorista de forma rápida e em qualquer sítio, sem telefonemas envolvidos, através de uma aplicação móvel, geralmente a preços mais acessíveis.
Os taxistas contestavam a operação à margem da lei e os meses e anos seguintes foram marcados por acesos desacatos entre um lado e outro. Os mesmos desacatos que, segunda uma investigação do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, divulgado por jornais como o The Guardian ou o The Washington Post, terão sido usados pela própria Uber em vários países, incluindo Portugal, para degradar a imagem dos taxistas e, assim, obter simpatia de governos e opinião pública para expandir a atividade.
Os anos quentes da chegada da Uber a Portugal
A primeira grande manifestação — a maior até então organizada pelo setor do táxi — deu-se em setembro de 2015, nas ruas de Lisboa e do Porto. Um jornalista foi agredido por taxistas, que se viraram também contra colegas de profissão que não aderiram ao protesto. Por essa altura, o então diretor-geral da Uber em Portugal, Rui Bento — um dos visados na investigação dos Uber Files e que o Observador tentou contactar sem sucesso —, deu a conhecer ao Expresso quatro casos de agressões físicas contra motoristas da plataforma, três em Lisboa e uma no Porto. Em todos eles foram apresentadas queixas-crime. “Temos verificado um aumento de ocorrências que nos deixa preocupados”, dizia Rui Bento.
2015 foi um ano quente na luta dos taxistas e Florêncio Almeida, presidente da ANTRAL (Associação Nacional dos Transportes Rodoviários em Automóveis Ligeiros) anunciou protestos “com toda a força” numa altura em que se começava a falar na possibilidade de regulamentar as plataformas. A associação chegou mesmo a entregar uma petição à então presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves (PSD), caraterizando o serviço como uma “grave violação no direito europeu e nacional das regras de acesso e exercício da atividade e de concorrência”. Mas uma “contrapetição”, assinada por mais de 12 mil pessoas, pedia a “Uber em Portugal” e exortava o Governo a regular o setor.
Os motoristas também avançaram com uma providência cautelar contra a Uber, que acusavam de operar ilegalmente no país (sem efeitos, dado que a plataforma alegou que a notificação não abrangia a atividade porque se referia à empresa que operava nos EUA e a um serviço que não estava disponível em Portugal, o UberPop).
De facto, não havia uma legislação específica para as plataformas eletrónicas de transporte de passageiros (apenas para a atividade de rent-a-car, para o transporte em táxi, transporte de passageiros em autocarro e transporte coletivo de crianças), mas as opiniões dividiam-se sobre se a lei existente à altura seria ou não suficiente para enquadrar a plataforma. A ANTRAL acusava a Uber de não obedecer a requisitos legais de acesso e controlo de atividade e não suportar os custos com alvarás e licenças, como os táxis, nem com a contratação e formação dos motoristas (essa formação estava a cargo das empresas com quem a Uber firmava parcerias).
Os desacatos foram particularmente violentos junto ao aeroporto de Lisboa. Hoje, motoristas TVDE e taxistas não se encontram, cada um tem o seu espaço para deixar e apanhar os passageiros. Mas em 2015 não era assim e os taxistas nas chegadas chegavam a chamar a política para que identificassem os concorrentes — que, na altura, não eram obrigados a exibir o dístico TVDE. Outras vezes, foram mais longe. Segundo contava o Expresso então, um motorista de 23 anos foi agredido “com murros e pontapés” quando colocava as malas dos passageiros na bagageira.
Mas a maior “manif” data de 2016 e chegou à Rotunda do Relógio, perto do aeroporto, em Lisboa. Os ânimos exaltaram-se e os manifestantes chegaram a atirar à polícia garrafas de água; os agentes responderam com petardos. Um automóvel da Uber foi mesmo vandalizado. Florêncio Almeida, da ANTRAL, não tem dúvidas que se tratou de uma provocação por parte da plataforma eletrónica.
“Acho que aí as autoridades é que tiveram muita culpa. Numa manifestação contra a ilegalidade da Uber deixa-se passar um carro da Uber para o meio daquela gente toda? Isso é uma provocação e quando há provocações há reações, naturalmente”, diz ao Observador. Nesse ano, foi noticiado que quatro taxistas foram acusados de agredir dois motoristas Uber no Porto (um deles chegou mesmo a ter de receber assistência no hospital) e um taxista foi condenado por furar os pneus de uma viatura da plataforma.
“A violência garante o sucesso”
A investigação do Consórcio de Jornalistas, que juntou mais de 180 jornalistas de 40 meios de comunicação, teve acesso a mais de 124.000 documentos, conhecidos como os “Uber Files” (“Ficheiros da Uber”), que abrangem os cinco anos em que a empresa foi gerida por Travis Kalanick. Numa das mensagens a que o consórcio teve acesso, Kalanick desvalorizou os receios de colegas da equipa de executivos de que a estratégia de colocar motoristas da Uber em protestos em França os colocaria em risco. “Acho que vale a pena”, respondeu. Porque, acreditava: “A violência garante o sucesso”. Ao consórcio de jornalistas, o porta-voz de Kalanick respondeu que o fundador da plataforma “nunca sugeriu que a Uber devesse tirar vantagem da violência à custa da segurança dos motoristas”.
Portugal não é imune ao radar da investigação. Durante um dos anos de maior contestação por parte dos taxistas, 2015, Rui Bento, então diretor-geral da plataforma em Portugal, disse que os taxistas cometeram “atos de violência” contra motoristas da Uber em três ocasiões, um dos quais teve de ser hospitalizado. E confessou estar a “ponderar” divulgar a informação dos ataques aos meios de comunicação do país.
Segundo a investigação, que cita mensagens de Rui Bento com o gestor de comunicação para Portugal e Espanha, a estratégia passava por “criar uma ligação direta entre as declarações públicas de violência do presidente da ANTRAL e estas ações (degradando a sua imagem pública)”.
Na resposta, Yuri Fernandez propôs uma investigação ao passado de Florêncio Almeida, “para ver se temos alguma coisa ‘sexy’ para os media’”. O Observador questionou a Uber sobre se esse propósito foi ou não bem-sucedido, mas não obteve resposta. A empresa não respondeu a nenhuma pergunta do Observador, remetendo para o comunicado oficial (que não se refere especificamente ao caso português).
Florêncio Almeida recusa ter incitado ao ódio, mesmo quando disse, na primeira manifestação organizada pela ANTRAL, que tinha “medo” que algo se passasse em Portugal como acontecera em França, onde as manifestações atingiram outro patamar (e incluíram carros incendiados). “Se ninguém os fazia parar [mesmo com a providência cautelar que interpuseram em 2015], eu tinha medo do que poderia acontecer”, explica.
O patrão dos táxis não se mostra surpreendido com os resultados da investigação do Consórcio de Jornalistas e diz mais: sabia que estava a ser investigado, mas não identifica por quem. “Nada me admira naquilo que veio agora a público porque todos nós sabemos que essa empresa utilizou muitos milhões para comprar muitas pessoas a nível mundial para entrar no mercado como eles entraram”, refere.
Se o objetivo era denegrir a imagem da Uber, como Florêncio Almeida acredita que era, foi cumprido. “Pouco antes [das manifestações] tinha sido publicado um estudo a nível europeu em que estávamos em 6.º lugar no ranking dos melhores motoristas de táxi. Não era em dois, três meses que passamos a ladrões e vigaristas mal-criados. Eles conotaram-nos com tudo e mais alguma coisa”, acusa. À medida que os taxistas paralisavam para protestarem, os números de downloads e de utilizadores da Uber em Portugal iam crescendo.
Embora mais pacata, a relação entre taxistas e plataformas continua tensa. No início de junho deste ano, segundo o JN, a polícia teve de intervir num episódio de violência entre dois taxistas e um motorista TVDE, em Viseu. Os desacatos começaram quando o motorista deixou um cliente junto a uma praça de táxis. Três semanas antes, também houve, no mesmo, local, confrontos entre taxistas e motoristas.
Mark MacGann é o denunciante
“Quando as pessoas ouvem o nome Uber, em todo o mundo, pensam em muitas coisas: aplicação, táxi, tecnologia, disruptivo e talvez até agressivo”, dizia, nesses anos longínquos, Mark MacGann, como ainda se pode ver num vídeo no YouTube.
Mark MacGann assume-se lobista de profissão. Trabalhou para a Uber de 2014 a 2016, tendo a difícil tarefa de conquistar governos e países na Europa, Médio Oriente e África. Agora, assume-me como o denunciante dos “Uber Files”. São mais de 124 mil ficheiros que entregou ao Guardian, jornal inglês que optou por entregá-los ao ICIJ (Consórcio de Jornalistas Internacional) dado o volume de dados que tinha em mãos. E assim o ICIJ divulgou, em conjunto com os jornais que integram a associação, os ficheiros Uber que mostram as práticas da empresa de transportes para conquistar mercado e entrar em países onde não estava desde 2014.
“Sou em parte responsável”, explicou ao Guardian, tendo por isso decidido entregar os documentos, denunciando as práticas da Uber. “Acreditava no sonho que estávamos a concretizar, e sobredoseei o entusiasmo”, diz ainda, revelando que trabalhava 20 horas por dia, sete dias por semana, constantemente em viagens, em encontros, em conference calls.
Não se afasta do envolvimento, até porque assume ter sido seu muito do trabalho de falar com governos, políticos, e de trazer o tema para a comunicação social. Este responsável surge, aliás, em várias notícias em Portugal a propósito da sentença do tribunal que, em abril de 2015, bloqueou a atividade da Uber em Portugal, dando razão à ANTRAL. Foi Mark MacGann a garantir à Lusa, na ocasião, que iria fazer queixa contra Portugal na Comissão Europeia. A Uber já tinha avançado para Bruxelas contra Espanha. E é precisamente o responsável das políticas públicas da Uber, Mark MacGann, que antecipou o movimento.
Uber vai apresentar queixa contra Portugal em Bruxelas quando for notificada
Nessa ocasião garantiu que “o governo português não disse uma única palavra negativa sobre a Uber, tem estado tranquilamente neutral. Tive várias reuniões com pessoas do governo português, incluindo com o ministro da Economia, que reconheceu que os novos serviços e a concorrência são bons para a economia portuguesa e também reconheceu que em Lisboa, e especialmente no Porto, é muito difícil arranjar um táxi na cidade”, realçou. Em 2015, ainda o ministro da Economia era António Pires de Lima, de quem o Observador não conseguiu comentários.
Aliás, publicamente, António Pires de Lima chegou a defender que a Uber não seria tida “como uma ameaça” pelos taxistas “se não tivesse gente — provavelmente muita gente — a procurar os seus serviços”. E se não estivesse a prestar um serviço “que alguns entendem como necessário e inovador”. O governo de Passos Coelho estava perto de acabar a sua vigência com as eleições de outubro que resultaram na tomada de posse, em novembro, de António Costa, no seu primeiro Governo, que teve o apoio parlamentar do PCP e do Bloco de Esquerda, naquele que ficou conhecido como geringonça.
Mark MacGann argumentava que quando os monopólios reinantes (táxis) são “desafiados por nova concorrência – e o objetivo da concorrência é baixar os preços e tornar o serviço mais eficiente — organizam-se, tentam resistir e bloquear”, assegurando que era o que estava a acontecer em Espanha, em Itália, em França e em Portugal, apoiados por uma federação europeia (Sindicato Internacional do Tráfego Rodoviário — IRU, na sigla em inglês) que “tem gastado muito dinheiro e recursos a fazer lobby em Bruxelas, na Comissão Europeia, e também no Parlamento Europeu”, adiantou.
Uber acusa ANTRAL de ter “manipulado processo jurídico” em Portugal
O irlandês, de 52 anos, entrega agora documentos internos, nomeadamente trocas de mensagens e apresentações internas para denunciar as práticas da Uber, dizendo-se arrependido. “Fazer o que estou a fazer não é fácil, e hesitei”, mas a Uber recorda que só o fez depois de ter chegado a acordo para resolver uma disputa sobre a sua remuneração, tendo a receber 550 mil dólares — o Guardian diz que os primeiros contactos foram feitos antes. “Percebemos que Mark esteja pessoalmente arrependido pelos seus anos de lealdade inabalável à nossa liderança anterior, mas hoje não está em posição de falar com credibilidade sobre a Uber.”
O Guardian descreve-o como uma pessoa que fala vários idiomas e tem uma imensa lista de contactos, construída em duas décadas de lobbying e relações públicas. Trabalhou para a Weber Shandwick and Brunswick e para a DigitalEurope, uma associação comercial que defende a Apple, Microsoft, Sony. O mais recente emprego foi de vice-presidente da NYSE (New York Stock Exchange) Euronext com um salário anual de 750 mil dólares. Saiu da Uber a 12 de fevereiro de 2016, já tendo de andar com guarda-costas. Desde outubro que andava com segurança. Mesmo na despedida continuava a defender Travis Kalanick, o polémico fundador da Uber, e a defender a missão da empresa.
Continuou a trabalhar para a Uber como consultor, mantendo emails, computadores e telemóveis. A separação final aconteceu em agosto de 2016. Depois de duas tentativas de denunciar as práticas a organismos públicos e a advogados, MacGann recorreu ao Guardian. “Já vi algumas merdas realmente obscuras, para usar uma das expressões de Silicon Valley”. E assim começaram os Uber Files.
Uber distancia-se do seu fundador
As práticas reveladas por Mark MacGann aconteceram ainda Travis Kalanick era o CEO da Uber. Super Pumped é a série da HBO que o retrata, a ficção baseada numa história real. Kalanick foi tirado da Uber em 2017.
“Super Pumped”. Viagem ao interior do ego do homem que criou a Uber
Já sem Kalanick, a Uber rumou noutra direção. E quando os tempos das polémicas pareciam ter desaparecido caem os Uber Files. Volta o fantasma de Kalanick.
A própria Uber distancia-se desses tempos. Em resposta aos jornais que tiveram acesso aos ficheiros Uber diz que não têm sido poucos os relatos sobre práticas anteriores a 2017. Por isso mesmo a empresa contratou um novo CEO, Dara Khosrowshahi, que teve a missão de transformar a forma como a Uber operava. “Quando dizemos que a Uber é hoje uma companhia diferente é literal: 90% dos empregados atuais da Uber entraram depois de Dara se tornar presidente executivo”, declara Jill Hazelbaker, vice-presidente de relações públicas ao consórcio de jornalistas.
Assume-se hoje como uma das maiores plataformas de emprego a nível mundial e está presente na vida quotidiana de mais de 100 milhões de pessoas. Diz mesmo ter passado de uma era de confrontação para uma era de colaboração, demonstrando a intenção de entendimento com sindicados e empresas de táxis.
Como a vida do “implacável” CEO da Uber se tornou num Karma Police de 68 mil milhões
“Operamos hoje, com regulação, em mais de 10 mil cidades em todo o mundo”. E, por isso, conclui: “não pedimos nem pediremos desculpas por comportamentos passados que, claramente, não estão em linha com os nossos atuais valores”, afirma, pedindo para ser julgada apenas pelos cinco últimos anos. Antes, foi o próprio denunciante que garantiu que a Uber “vendia uma mentira às pessoas”.
Políticos apanhados na curva
Dos mais de 124 mil ficheiros que Mark MacGann entregou, o consórcio de jornalistas divulgou mensagens nas quais se percebe a tentativa da Uber de fazer lobby junto de Joe Biden, ainda na administração Obama, de Olaf Scholz (atual chanceler alemão), quando ainda liderava a autarquia de Hamburgo, do ministro das Finanças do Reino Unido, George Osborne, entre outros. Mas é junto de Emmanuel Macron que terá tido mais sucesso. E é por isso que o presidente francês está sob fogo cruzado, tendo já sido pedido um inquérito parlamentar à sua conduta enquanto ministro da Economia. Chega numa altura em Macron perdeu a maioria no Parlamento e num momento desafiante para a sua recente recondução.
Macron é descrito nos Uber Files como um governante muito próximo da Uber nos dois anos que esteve como ministro da Economia no governo de François Hollande. Os ficheiros revelam que se encontrou pelo menos quatro vezes com Travis Kalanick, mas só o encontro em Davos, em janeiro de 2016, foi tornado público. Macron não escondeu o seu entusiasmo em relação às tecnológicas norte-americanas. “Não vou proibir a Uber, isso seria enviar [jovens da periferia sem qualificação] para o tráfico de droga”, declarou em Mediapart em novembro de 2016, segundo recorda o El País.
As mensagens agora conhecidas mostram a proximidade de Macron à Uber. “Vamos mantendo contacto e avançamos juntos”, mostra uma dessas missivas de Macron para Kalanick. O El Pais conta como em outubro de 2014, quando entrou em vigor a nova lei Thévenoud (que regulava as condições dos motoristas da Uber, três anos depois da chegada da empresa a França, além de proibir UberPop, que permitia que qualquer pessoa com carro se tornasse motorista ocasional), Macron recebeu no Ministério quatro pesos-pesados da Uber: Pierre-Dimitri Gore-Coty, diretor para a Europa Occidental, Mark MacGann, o lobista; David Plouffe, ex-assessor de Barack Obama que acabava de ser nomeado vice-presidente da Uber, e o CEO Travis Kalanick.
“Numa palavra: espetacular. Reunião incrível com Emmanuel Macron esta manhã. Depois de tudo, França quer-nos”, escrevia a propósito da reunião Mark MacGann. Este é um dos encontros que não estava na agenda do agora presidente francês que, nas palavras de um relatório de MacGann, quase pediu desculpas pela lei. O El País contabiliza em 17 contactos significativos (encontros, chamadas, SMS) as interações de Macron com assessores e dirigentes da Uber nos primeiros 18 meses como ministro da Economia.
Segundo o Guardian, Macron terá também assegurado à empresa tecnológica que teria intermediado um “acordo” secreto com os seus opositores no governo socialista que estava, segundo as suas palavras, altamente dividido, e que permitiria alterar a lei de forma a compensar a Uber pelo fim da UberPop.
Quando a polícia francesa em 2015 tentou banir um dos serviços da Uber em Marselha, Mark MacGann recorreu ao aliado. No seu telemóvel está gravada uma resposta de Macron divulgada pelo Guardian: “Vou verificar isso pessoalmente. Nesta fase, mantenhamos a calma”. Três dias depois a ordem de proibição desaparecia.
O gabinete presidencial diz agora ser “normal” que como ministro da Economia tivesse mantido contacto com “muitas companhias envolvidas em mudanças profundas nos serviços”. Que razões levaram Macron a entender-se dessa forma com a Uber? Não há indicação de que tenha beneficiado diretamente com isso, mas o El País fala de uma convergência de visões políticas a favor da liberalização rápida, mas também um fascínio do futuro presidente do país das startups — como prometeu na primeira corrida presidencial — tinha por Travis Kalanick, que considerava uma espécie de duplo.
Nas mensagens divulgadas agora, há outros políticos que parecem não ser tão recetivos como Macron a este fascínio. Olaf Sholz, atualmente chanceler, mas que na ocasião era autarca em Hamburgo, lutou contra o lobby da Uber e insistiu num pagamento mínimo aos motoristas. E por causa disso foi apelidado por elementos da Uber como um “verdadeiro comediante”. Ou mesmo nas mensagens que Kalanick enviou a propósito de uma reunião com Joe Biden, na altura vice-presidente de Obama. O atraso de Biden levou Kalanick a dizer que “cada minuto de atraso é menos um minuto comigo”. Mas depois do encontro, Biden terá, segundo o Guardian, alterado o seu discurso em Davos para fazer uma referência a um CEO que dá a milhões de trabalhadores a liberdade de trabalharem tantas horas quantas as que desejem e que lhes permite gerirem as suas vidas como querem.
A comissária que foi trabalhar para a Uber
A Comissão Europeia está a enfrentar pedidos de inquérito à conduta da ex-vice-presidente Neelie Kroes, depois da divulgação dos ficheiros Uber, que indiciam que a política terá ajudado a Uber no lobbying na Holanda junto de Mark Rutte, que viria a ser primeiro-ministro, e de outros políticos. Para já, Bruxelas entrará em contacto com a ex-comissária, que teve a pasta da agenda digital. Isto depois dos relatos noticiados pelo Guardian de que teria feito lobby em nome da Uber durante o período de nojo após ter saído da Comissão Europeia.
Citado pelo Politico, o porta-voz da Comissão declarou que Bruxelas “decidiu enviar uma carta à ex-vice-presidente Kroes para uma clarificação sobre a informação divulgada pelos media”.
O período de impedimento é, segundo as regras europeias, de 18 meses, mas nessa altura Kroes ofereceu reuniões entre a Uber e o gabinete do primeiro-ministro holandês mas também elementos em Bruxelas. Até terá participado num encontro anual na Califórnia da tecnológica. Os 18 meses foram de novembro de 2014 a maio de 2016, mês em que foi anunciado que Kroes se juntaria ao conselho consultivo das políticas públicas da Uber, recebendo, anualmente, 200 mil dólares. A Uber já tinha detetado o potencial de Kroes que, ainda enquanto comissária, manifestou-se contra uma decisão do tribunal europeu de banir a aplicação, descrevendo o momento de “doido” e com o interesse de “proteger o cartel dos táxis”. O post já não está disponível, mas vários jornais relataram essa mensagem.
Here is my full blog on the crazy decision to ban #Uber in Brussels https://t.co/ls3Q9N9i2t
Cc @BGrouwels @Uber_BXL— Neelie Kroes (@NeelieKroesEU) April 15, 2014
Em abril de 2014, e depois dessa decisão do tribunal, escreveu: “Encontrei-me com os fundadores e investidores da Uber (…) O meu pessoal utiliza os serviços em todo o mundo para garantir a sua segurança e poupar dinheiro aos contribuintes. Uber é 100% bem vinda a Bruxelas e em todo o sítio”.
O seu sucessor na pasta da agenda digital não depositou tantas esperanças junto da Uber. “Francamente, não contava muito que o seu sucessor seja de grande ajuda”, escreveu Mark MacGann, ao mesmo tempo que, em setembro de 2014, já revelava o futuro da ex-comissária. Numa mensagem escreveu: “Estamos a tentar a Neelie Kroes para se juntar ao nosso conselho consultivo [mega confidencial]”. Mas mesmo antes de isso acontecer, o governo holandês nomeou-a, com autorização de Bruxelas (já que o seu papel não era a de atuar em nome individual de companhias, mas promover o interesse público holandês), embaixadora das startups. Mas foi já nesse papel que os ficheiros revelam que poderá já ter atuado a favor da Uber em 2015.
Em março de 2015, quando a sede da Uber foi alvo de buscas em Amesterdão, terá enviado mensagens aos ministros do seu país para que fizessem recuar os reguladores e é referida como um elo para negociar uma solução, não sendo certo que o tenha feito. Kroes por seu lado diz que não fez nada de errado, defende-se com o seu papel de embaixadora de startups.
Uma questão de lobby
A Comissão Europeia deve voltar, agora, a olhar para as questões dos lobbys. É essa a crença de Susana Coroado, presidente da Transparência e Integridade, que acredita que Bruxelas vai ser pressionada a criar um comité de ética, para limitar estas portas giratórias. Ao Observador, recorda que quando Durão Barroso foi para a Goldman Sachs em 2016 foi criado um comité ad-hoc para analisar a incompatibilidade entre as duas funções. Durão Barroso tinha deixado a presidência da Comissão Europeia em 2014. Mas nessa altura logo se prometeram reformas para garantir regras claras. Mas Susana Coroado admite que continuam a não existir.
Esta responsável ataca, por outro lado, não haver qualquer regulamentação sobre a atividade de lobby em Portugal, já que não tem havido acordo entre os dois maiores partidos para essas legislações. Ainda assim vai afirmando que “o lobby é uma atividade perfeitamente legítima e traz muitos benefícios até para o desenvolvimento de leis e políticas públicas”, mas “o que se tem visto, em especial com as grandes tecnológicas, é que se está a tornar desproporcional face ao que as PME e organizações não governamentais conseguem fazer”.
“O dinheiro que têm é tanto que o usam quer nos EUA quer na Europa, que consegue atacar todas as frentes, que os legisladores ficam assoberbados com tanta informação” que lhes despejam em cima, quer dos próprios lobistas, quer de estudos supostamente independentes. Aliás, neste caso da Uber foi igualmente revelado que a empresa pagou a académicos tanto na Europa como nos Estados Unidos para produzirem relatórios a falar dos benefícios da economia de partilha.
Em Portugal, as reuniões entre governantes e empresas ou outros interesses não têm de ser reveladas publicamente. Não se sabe quantas houve com a Uber. Nenhum dos responsáveis – nem Uber nem Governo – quis informar o Observador das datas e participações nas reuniões. Certo é que há algumas declarações públicas de que houve encontros, o que também é habitual no momento em que um novo negócio está a entrar ou que há questões para resolver. Além disso, em setembro de 2021, a empresa inaugurou uma nova sede em Portugal e um “hub” que representam um investimento de “mais de 90 milhões de euros”.
Uber abre nova sede em Portugal num investimento de mais de 90 milhões de euros
Do veto de Marcelo à revisão da lei
É preciso recuar a 2018 para traçar o início da regulação do trabalho nas plataformas em Portugal, depois de quase quatro anos marcados por protestos e violência. E por um consenso parlamentar entre PS e PSD, que se juntaram para aprovar um conjunto de requisitos a que o serviço das plataformas digitais — os chamados TVDE — teriam de obedecer. Esta nova versão acabaria por ter luz verde de Marcelo Rebelo de Sousa, ao contrário da primeira versão do diploma.
Meses antes, Marcelo vetou a proposta, pedindo aos deputados para que fossem “mais longe” e assegurassem “mais equilíbrio” entre as partes. O Presidente da República identificava “reservas políticas de fundo”: o regime só regulamentava os TVDE, perdendo uma “oportunidade” de rever o regime dos táxis; e não considerava a proposta “equilibrada” porque previa contingentes para os táxis, mas não para os TVDE (uma das principais queixas dos taxistas), ainda mais porque as tarifas se mantinham fixas para os táxis. Os partidos acederam: o PS aceitou a proposta dos sociais-democratas que aumentava a contribuição das empresas ao Estado para 5%, e o diploma passou com aprovação social-democrata (o PAN também votou a favor, enquanto PCP e Bloco estiveram contra e o CDS se absteve).
Presidente veta lei que regulariza Uber e outras plataformas de transporte individual
O decreto previa que os motoristas TVDE tivessem formação específica, que houvesse novas licenças para estas plataformas e que todos os motoristas tivessem contrato de trabalho com as empresas parceiras, mas não respondia às exigências feitas pelos taxistas, que pediam contingentes municipais também para estas plataformas (ou seja, que observassem um número máximo de carros por município ou região, como os táxis). Essa continua a ser uma das reivindicações dos taxistas.
Mas, em vésperas da entrada em vigor da regulamentação, a chamada “lei Uber”, o clima aqueceu. Em setembro de 2018, os motoristas foram vários dias seguidos para as ruas contra a lei que visava regulamentar as plataformas eletrónicas, que na altura eram a Uber, Taxify (hoje Bolt), Cabify e Chauffeur Privé (Free Now).
Taxistas “insatisfeitos” dizem que vão manter protesto até serem recebidos em Belém
Não tendo presente qualquer conversa com responsáveis da Uber, João Pedro Matos Fernandes era o ministro do Ambiente quando a lei foi publicada. Ao Observador, lembra agora que “quando chegámos havia uma atividade ilegal que estava banalizada nas cidades de Lisboa e do Porto“, mas era, sublinha, ilegal e não estava regulamentada. Mas, conta agora, “era importante para o ecossistema da mobilidade que essa atividade existisse e cuidámos de criar condições para legalizá-la”, até por questões, diz, de segurança das pessoas, dar garantias aos próprios trabalhadores e garantir que os impostos eram pagos.
Com uma certeza: as atividades da Uber e das outras plataformas eram diferentes das dos táxis, que prestam serviço público e, por isso, têm regras específicas. “Tínhamos muito pouco onde nos inspirar. Não sei se fomos os primeiros [a publicar uma lei para as plataformas] mas não tínhamos um benchmarking”. No Parlamento, o diploma saído estipulou o pagamento de uma taxa para estas plataformas. Nos últimos dois anos, essa Contribuição de Regulação e Supervisão (TVDE) resultou em receitas de 2,18 milhões e 2,79 milhões.
A lei dita, ainda, que as regras sejam reavaliadas no espaço de três anos. O IMT já elaborou o relatório de avaliação à Autoridade de Mobilidade e Transportes (AMT), em dezembro de 2021, e depois da emissão do parecer final daquela entidade, elaborou, em fevereiro deste ano, o seu próprio relatório final. Ao Observador, o Ministério do Ambiente diz que as conclusões finais dessa avaliação “estão, atualmente, em análise por esta área governativa”. Mas não responde quando serão conhecidas. “A análise incluirá a definição de quais as alterações legislativas a propor para melhoria da lei, bem como para a sua operacionalização”, diz fonte oficial.