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Convidado a puxar pela memória, do lado de lá do telefone, o italiano Marco Sassòli, professor de Direito Internacional na Universidade de Genebra, faz uma pausa antes de começar a enumerar: durante a Segunda Guerra Mundial, os aliados chegaram a julgar “alguns” soldados alemães por crimes de guerra; ao longo dos dois meses e meio de 1982 em que decorreu a guerra das Malvinas, até “houve uma discussão” sobre o capitão Alfredo “Anjo Loiro da Morte” Astiz, mas o caso acabou por não ser levado a tribunal antes de o conflito acabar; e na guerra que opôs Iraque e Irão, entre 1980 e 1988, houve alguns julgamentos de prisioneiros de guerra, mas apenas de crimes cometidos já depois de serem capturados.
“De resto, não estou a par de qualquer caso de julgamento de crimes de guerra durante a guerra em si”, diz o especialista, que no final de março foi um dos três enviados pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) à Ucrânia e conversou com a procuradora-geral do país sobre os casos que já na altura estavam a ser preparados contra vários soldados russos entretanto capturados.
Se nas últimas sete ou oito décadas nenhum prisioneiro de guerra foi julgado por crimes cometidos no seu decurso; na Ucrânia, há pouco mais de três meses sob ofensiva da Rússia, os tribunais já julgaram e condenaram três soldados russos por violações das leis que internacionalmente regulam os conflitos.
Primeiro, no passado 23 de maio, o sargento russo Vadim Shishimarin, de 21 anos, foi condenado a prisão perpétua por ter morto, com uma rajada de Kalashnikov, um homem de 62 que ia a andar de bicicleta e a falar ao telemóvel na aldeia ucraniana de Chupakhivka, na região de Sumy. Oito dias mais tarde, Alexander Bobikin e Alexander Ivanov, um motorista de artilharia, o outro artilheiro, receberam penas de 11 anos e meio de prisão por participarem, a partir da Rússia, nos bombardeamentos que destruíram uma escola de Derhachi, na região de Kharkiv — mas não provocaram vítimas.
Entretanto, do outro lado da barricada, surgiram esta terça-feira, em vários grupos de Telegram, imagens que confirmaram os piores receios de Marco Sassòli e dos outros especialistas consultados pelo Observador — também a Rússia ia começar a julgar prisioneiros de guerra.
Os vídeos, autenticados pela agência de notícias russa Ria Novosti, mostravam Aiden Aslin e Shaun Pinner, dois dos soldados britânicos capturados pelas forças russas enquanto combatiam pela Ucrânia, e o marroquino Saaudun Brahim, preso nas mesmas circunstâncias, no que parecia ser um tribunal na auto-proclamada República Popular de Donetsk. Isto depois de, na véspera, Denis Pushilin, o chefe do Estado separatista, os ter acusado de crimes “monstruosos” e avisado que seriam julgados naquilo a que chamou o “Supremo Tribunal” da região.
Esta quinta-feira, soube-se finalmente que os três militares, que foram acusados de ser mercenários, da prática de crimes de terrorismo e de tomada ou retenção de poder à força, tinham sido condenados à morte.
“Sabe-se que, ao abrigo da Convenção de Genebra, os prisioneiros de guerra têm direito à imunidade de combatentes e não devem ser processados por participar em hostilidades”, reagiu de imediato o primeiro-ministro Boris Johnson, lamentando que os militares, que sempre garantiram estar integrados no exército ucraniano, estejam a ser “explorados com objetivos políticos”.
Por muito que o Protocolo Adicional 1 das Convenções de Genebra determine que “um mercenário não tem direito ao estatuto de combatente ou de prisioneiro de guerra” — e foi exatamente essa a primeira acusação provada contra os militares estrangeiros —, neste caso a situação não se aplica, diz ao Observador Robert Goldman, professor do Washington College of Law.
“O artigo 47 do Protocolo Adicional 1 estabelece que um mercenário não tem direito ao estatuto de combatente ou de prisioneiro de guerra. Contudo, para ser qualificado como mercenário, uma pessoa deve satisfazer seis critérios muito específicos enumerados nesse artigo”, explica o especialista, que é também diretor do Gabinete de Investigação de Crimes de Guerra e do Centro de Direitos Humanos e Direito Humanitário do Washington College of Law. “Se, por exemplo, o combatente estrangeiro for um membro das forças armadas de uma parte no conflito, então é um combatente com direito ao estatuto de prisioneiro de guerra após a captura e não um mercenário. Este parece ser o caso destes combatentes em particular.”
Ainda assim, explica Robert Goldman, por muito que não sejam reconhecidos pela comunidade internacional, os separatistas têm direito a julgar prisioneiros de guerra. Têm é de fazê-lo cumprindo as leis da guerra. “O artigo 3 e o Protocolo Adicional 2, nos casos de conflitos internos ou não internacionais, até preveem o direito não apenas do Estado mas também de atores não estatais a conduzir julgamentos. Mas não creio que alguém aceitasse aqui a ideia de que poderá haver tribunais independentes e imparciais dirigidos pelos rebeldes.”
“Os ucranianos e os russos têm direito a fazê-lo. A questão é: será sensato fazê-lo nesta altura?”
Apesar de raros, faz questão de ressalvar ao Observador Marco Sassòli, se forem conduzidos conforme as regras do Direito Internacional, estes julgamentos de prisioneiros de guerra enquanto ela decorre são absolutamente legais. “É normal e legal que a Ucrânia julgue soldados russos que são prisioneiros de guerra na Ucrânia porque os crimes de guerra foram cometidos no país e, de qualquer forma, há jurisdição internacional para crimes de guerra, portanto, até um procurador português poderia e deveria processar crimes de guerra cometidos na Ucrânia”, explica o professor, ainda antes de serem conhecidas as sentenças dos três militares condenados esta quinta-feira no território da auto-proclamada República Popular de Donetsk.
“Temos de ter consciência de que isto é uma situação muito excecional porque normalmente, mesmo que existam provas de crimes de guerra, é muito incomum que existam provas contra as pessoas que por acaso foram capturadas”, continua a contextualizar. “Porque normalmente essas pessoas cometem crimes de guerra e, ou voltam para a Rússia, ou continuam a lutar, e não existe a informação do nome da pessoa que cometeu o crime de guerra. É por acaso que se captura precisamente a pessoa contra a qual existem provas alguns dias depois de ter sido cometido esse crime de guerra. Mas, aparentemente, aconteceu nestes três casos”, diz o especialista italiano, garantindo que não duvida da justiça ucraniana mas vincando que esta não poderá ser nunca a norma.
Por seu turno, a procuradora-geral ucraniana, Iryna Venediktova, anunciou esta quarta-feira que já entregou outros oito casos ao tribunal e que estão pelo menos outros 16 mil em investigação. “Se decidirem fazer tais atrocidades, matar, violar, pilhar, torturar, vamos encontrá-los a todos. Vamos identificar-vos a todos, vamos processar-vos e vocês vão ser responsabilizados por todas as vossas atrocidades”, disse em entrevista ao Washington Post assim que foi conhecida a sentença de Vadim Shishimarin, fazendo disparar de imediato os alarmes de especialistas como Marco Sassòli ou Robert Goldman.
“Os ucranianos têm direito a fazê-lo, tal como os russos, ao abrigo da Terceira Convenção de Genebra e do Protocolo Adicional 1”, vai elaborando o especialista americano, em videochamada a partir de casa, nos arredores de Washington DC. “A questão é: será sensato fazê-lo nesta altura?”, questiona, colocando num dos pratos da balança a “recolha de provas enquanto estão frescas” e no outro a falta de especialização dos tribunais que estão a julgar casos que, tem a certeza, seriam mais bem tratados “num fórum neutro, como o Tribunal Penal Internacional”.
“Não me preocupa que [os tribunais ucranianos] não sejam independentes ou imparciais, mas que tenham menos conhecimentos sobre o Direito Humanitário Internacional, que é absolutamente crítico nas acusações de crimes de guerra”, alerta Robert Goldman, que já não pensa da mesma maneira quando o processo é invertido e quem está ao leme da justiça é a Rússia. “Não é segredo que não há um processo legal justo nem tribunais independentes ou imparciais e o Tribunal Europeu já teve de lidar, em numerosas ocasiões, com a qualidade da justiça russa quando ela é utilizada contra os inimigos de Putin”, diz.
Sem intenções de ser mais “advogado do diabo” do que o próprio Viktor Ovsyannikov, o ucraniano de 43 anos que assumiu a defesa do sargento Vadim Shishimarin e foi assim apodado pela comunicação social do mundo inteiro, o professor dá um exemplo de como o combatente russo de 21 anos podia ter sido melhor defendido, se tivesse sido julgado em Haia. “O crime de guerra que constitui a morte do civil de bicicleta tinha uma defesa credível. Podia pelo menos ter sido argumentado, sob as leis da guerra, que aquele civil podia ter sido encarado como participante direto nas hostilidades e perdido a sua imunidade [enquanto civil], porque os soldados podiam ter a crença razoável de que ele estaria a denunciar a posição deles aos militares, o que os colocaria sob risco imediato”, elabora Robert Goldman, para depois apontar o dedo à própria sentença do soldado, que assumiu a culpa e pediu perdão mas disse sempre que se tinha limitado a cumprir ordens superiores.
“Há uma desconexão entre a acusação pela qual foi condenado, ou seja, o crime de guerra de assassinato intencional de um civil, e a sentença, que se referia ao seu ato particular como constituindo um crime contra a paz, a humanidade e a ordem internacional. Isto é acusá-lo de participar numa guerra agressiva. Não se trata de uma acusação que se possa fazer contra um soldado raso, é uma acusação que deve ser formulada contra Putin, contra quem está no mais alto nível de comando”, alerta o especialista e também presidente da Comissão Internacional de Juristas (ICJ na sigla original).
Porque a perspetiva legal também é diferente da política, salientou ao Observador um doutorado em Direito, membro do Conselho Presidencial da Rússia para o Desenvolvimento da Sociedade Civil e dos Direitos Humanos, sob anonimato, para não poder ser processado pelo próprio Estado, ao abrigo da nova lei das “fake news”, estes julgamentos — que também acredita extemporâneos — podem apesar de tudo ajudar a alterar a forma como o conflito é visto dentro da própria Rússia.
“Têm um grande significado, tanto no estrangeiro como principalmente para a Rússia e para os seus cidadãos, que são os mais difíceis de convencer de que os ‘nossos’ podem, de facto, ter cometido atos de execução, violação e pilhagem”, diz o especialista ao Observador, em respostas enviadas por escrito, em russo e através da aplicação Signal.
“Até agora, os líderes russos têm refutado estes factos como ‘encenados’, argumentos em que, sob influência da propaganda, um número significativo de cidadãos russos acredita (querem acreditar porque é mais fácil para eles viver dessa forma). Um julgamento aberto é uma prova — é isso que isto significa. E é tanto mais probatório quanto mais cumpre todos os requisitos legais previstos, em particular o direito à defesa e a um exame imparcial das provas.”
Com a ajuda destes três especialistas, condensamos em 10 perguntas todas as informações sobre a forma como podem decorrer estes julgamentos por crimes de guerra no conflito que opõe Rússia e Ucrânia.
Que tipo de crimes de guerra pode a Ucrânia julgar?
Todos. Todos os crimes de guerra previstos no Estatuto de Roma e nas quatro Convenções de Genebra e nos respetivos Protocolos Adicionais cometidos em território ucraniano podem ser julgados pelos tribunais da Ucrânia. “Mas para isso acontecer têm de ser mesmo crimes de guerra, não pode ser simplesmente lançar um ataque ou a agressão da Rússia, é preciso terem morto civis ou prisioneiros de guerra ou terem destruído infra-estruturas civis ou terem transferido civis de territórios ocupados para a Rússia, por exemplo”, ressalva o professor Marco Sassòli ao Observador.
Independentemente de, a meio de maio, o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI) ter anunciado o envio de uma delegação de 42 investigadores ao país, para entrevistar testemunhas e documentar casos passíveis de serem julgados em Haia no futuro, a Ucrânia tem direito a julgar este tipo de crimes no seu território.
Apesar de ter sido criado para investigar e processar casos de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, o TPI não tem o exclusivo destes processos — até porque nem todos os países do mundo estão sob a sua jurisdição; a Rússia, por exemplo, nunca assinou o Estatuto de Roma, que o criou.
“Agora a procuradora-geral ucraniana vai processar alguns casos, há muitos países europeus a ajudar, com provas recolhidas junto dos refugiados, e é importante que tudo isto seja bem coordenado e centralizado e se alguns Estados não forem capazes de os levar a tribunal, então o TPI poderá mais tarde fazê-lo”, explica Marco Sassòli.
“Mas o TPI é subsidiário dos Estados. Ou seja, se a Ucrânia puder julgar estas pessoas, então o TPI não vai fazê-lo. E a Rússia não é signatária do TPI. A propósito: a Ucrânia também não é mas em 2014 assinou uma declaração a aceitar a competência do TPI sobre crimes de guerra e crimes contra a humanidade, mas não para o crime de agressão. Ou seja, para este crime, o TPI não tem jurisdição sobre a Ucrânia.”
Qual é a diferença entre crimes de guerra e crimes contra a humanidade?
É importante ter presente que apesar de terem “grandes semelhanças”, crimes de guerra e crimes contra a humanidade têm “também diferenças”, lembra Robert Goldman. Em primeiro lugar, ao contrário dos crimes de guerra, que só podem obviamente acontecer em tempo de conflito, os crimes contra a humanidade podem também ter lugar em tempo de paz, diz o presidente do ICJ.
“A outra diferença é que um crime de guerra pode ser cometido tanto contra um combatente como contra um civil. Contudo, um crime contra a humanidade em conflito armado só pode ser cometido contra civis, porque a noção de crime contra a humanidade definida no estatuto do Tribunal Penal Internacional trata de um ataque generalizado ou sistemático contra a população civil. Agora, frequentemente, isto é conseguido através da prática de crimes de guerra”, explica o especialista, para depois dar o exemplo de Bucha, onde centenas de pessoas foram encontradas em valas comuns, com sinais claros de execução, e várias dezenas de mulheres foram vítimas de violação por parte de militares russos.
“Aparentemente houve violação sistemática de mulheres ucranianas. Toda e cada uma dessas violações é um crime de guerra. E aparentemente também houve execução sumária de pessoas, o que também constituiria crimes de guerra. Mas se se detetar um padrão — e é isto que está a ser investigado atualmente na Ucrânia —, esses crimes poderão ser também imputáveis como crimes contra a humanidade. Ou seja, como uma forma de ataque generalizado contra a população civil”, detalha o especialista.
Ao contrário do que acontece com os crimes de guerra, que podem e estão a ser diretamente imputados pelos tribunais ucranianos a quem os cometeu, os crimes contra a humanidade deverão ser julgados pelo TPI ou por uma entidade equiparada, como um tribunal como o que foi criado especificamente para julgar os crimes cometidos na ex-Jugoslávia, acrescenta Robert Goldman. “Penso que é isto que está a ser investigado atualmente: ver se está a surgir um padrão de ataques contra civis, para que estes crimes possam ser imputados aos comandantes individuais, enquanto os soldados serão individualmente acusados dos crimes de guerra.”
A Rússia também pode julgar prisioneiros de guerra? E pode fazê-lo em território ucraniano?
Tal como a Ucrânia tem direito a julgar os prisioneiros de guerra capturados, a Rússia pode fazer o mesmo — e não apenas em solo russo mas também ucraniano, dizem os especialistas em Direito Internacional ouvidos pelo Observador.
“Todos os crimes de ambos os lados devem ser punidos. Se forem provados crimes por parte de militares ucranianos, estes devem ser julgados da mesma forma no local onde foram cometidos”, defende o doutorado em Direito e membro do Conselho Presidencial da Rússia para o Desenvolvimento da Sociedade Civil e dos Direitos Humanos.
No caso, o difícil será fazer prova disso mesmo: “Muito provavelmente, a liderança política russa irá utilizar o argumento de que os crimes em questão foram cometidos contra cidadãos russos. Legalmente isto é um disparate, ninguém no mundo o levará a sério. Mas há uma opção ainda mais absurda: se o Donbass e Mariupol forem reconhecidos como parte da Federação Russa (e estão a ser feitos planos para isso), os militares do [Batalhão] Azov, por exemplo, poderão vir a ser incriminados por crimes ‘contra cidadãos que subsequentemente se tornaram cidadãos russos’. É claro que isto é um disparate do ponto de vista jurídico, mas também o podem fazer para fins de propaganda”, teme o jurista russo.
Por muito que tenha o direito de julgar crimes de guerra cometidos na Ucrânia contra os seus soldados, a Rússia não pode delegar a terceiros essa responsabilidade, alerta Marco Sassòli. “Os russos podem fazê-lo na Ucrânia se os crimes tiverem acontecido no país, mas terão de ser eles mesmos a julgar os prisioneiros de guerra: a Rússia diz que as autoproclamadas Repúblicas de Donetsk e Lugansk são Estados independentes mas à luz da lei internacional não são e a Rússia não pode delegar em entidades não reconhecidas a responsabilidade de julgar os seus prisioneiros de guerra”, alerta o professor da Universidade de Genebra.
Os separatistas têm legitimidade para julgar prisioneiros de guerra?
Em teoria, têm. Mas é complicado, diz Robert Goldman ao Observador. “Em primeiro lugar, para além da Rússia, nenhum outro Estado reconhece a República Popular de Donetsk como um Estado. Eles são uma região separatista da Ucrânia e, como tal, fazem parte da Ucrânia que está há muito tempo envolvida num conflito armado não internacional com estas forças insurgentes. Quando a Rússia interveio com os seus militares em 2014 para apoiar estes insurgentes, desencadeou um conflito armado internacional entre a Rússia e a Ucrânia, mas o conflito entre a Ucrânia e estes separatistas armados continua a ser de natureza não internacional”, começa por contextualizar o especialista, para depois precisar as diferenças legais entre conflitos internacionais e não internacionais ou guerras civis.
“O Artigo Comum 3 das Convenções de Genebra que rege os conflitos armados não internacionais, complementado pelo Protocolo Adicional 2 de 1977, aplica-se igualmente a todas as partes em conflito e como tal permite que os separatistas julguem militares ucranianos capturados, independentemente da sua nacionalidade, por crimes de guerra”, explica o professor do Washington College of Law.
Mas se, à luz do Direito Internacional, os separatistas podem empreender este tipo de julgamentos, também são obrigados a fazê-lo em tribunais competentes, independentes e imparciais com garantias mínimas de um processo justo, acrescenta o especialista, duvidando à partida de que tenha sido isso que aconteceu nos casos de Shaun Pinner, Aiden Aslin e Saaudun Brahim.
Sobre a condenação destes militares estrangeiros à pena de morte, abolida há 22 anos na Ucrânia, suspensa desde 1996 na Rússia mas em vigor nas auto-proclamadas repúblicas separatistas de Donetsk e Lugank desde 2014, Robert Goldman não tem dúvidas: não deveria ter acontecido.
E pode ainda ser revertida: “Embora estes insurgentes não estejam diretamente vinculados pelos tratados de Direitos Humanos da Ucrânia, ou seja, a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, é certamente discutível que, uma vez que a Ucrânia não tem pena de morte e tem de dar às pessoas condenadas por um crime o direito a recorrer, os insurgentes não deviam ter condenado estes prisioneiros à pena de morte e deviam permitir-lhes recorrer das sentenças para um tribunal superior. Considero altamente improvável que os ‘tribunais’ da República Popular de Donetsk tenham a independência e imparcialidade exigidas pelo Artigo 3 comum”.
Este tipo de julgamento está reservado aos militares inimigos?
De todo. Cada Estado deveria julgar os seus próprios militares e não apenas os inimigos, diz Marco Sassòli. Foi isso mesmo que o professor da Universidade de Genebra disse a Iryna Venediktova quando esteve com ela na Ucrânia, e o que escreveu no relatório que posteriormente produziu para a OSCE.
“A procuradora-geral da Ucrânia, que tem sido tão ativa a abrir inquéritos contra russos, não abriu um único caso contra ucranianos, e teria sido muito mais fácil julgar os crimes dos ucranianos do que dos russos. Como disse, o julgamento de prisioneiros de guerra russos é legal mas também seria importante que a Ucrânia julgasse os seus próprios soldados que cometeram crimes de guerra”, assinalou o especialista na conversa que teve com o Observador.
“É difícil, de um ponto de vista patriótico e numa situação em que há tanto sofrimento por toda a Ucrânia causado por esta agressão, que uma procuradora diga: ‘Ok, mas eu também vou julgar os meus compatriotas que também cometeram crimes de guerra’. E a verdade é que cometeram: nas redes sociais temos visto imagens de prisioneiros de guerra russos que foram alvejados nas pernas por soldados ucranianos — isto é tipicamente um crime de guerra, por isso ela devia abrir um inquérito. Talvez não tenha encontrado as provas necessárias, pode acontecer, mas para mim é lamentável que ambos os lados estejam apenas a processar inimigos e não os seus próprios militares.”
O terrorismo é um crime de guerra?
Como diz Robert Goldman, “em todos os conflitos armados há apenas duas categorias de pessoas, civis e combatentes, não há uma terceira categoria chamada terrorista”. Mas a verdade é que, acrescenta o professor de Direito Internacional, a partir do momento em que “terrorismo” define ataques indiscriminados contra civis e os ataques contra civis são considerados crimes de guerra, um e outro podem ser sinónimos.
“Se eu atacar diretamente civis sabendo que são civis, isso é um crime de guerra, mas é também um ato de terrorismo. Se eu lançar deliberadamente um ataque sabendo que vai causar danos colaterais desproporcionados à população civil, isso será considerado um crime de guerra, mas também será uma forma de terrorismo”, exemplifica, para depois frisar que o que não pode acontecer é a definição de terrorismo ser usada para retirar aos prisioneiros de guerra o direito a serem tratados como tal.
“Está muito bem estabelecido que, ao abrigo da terceira Convenção de Genebra e do primeiro Protocolo adicional, os membros das forças armadas podem cometer crimes de guerra. Não gozarão de imunidade de acusação por esses crimes de guerra que cometeram mas continuarão incondicionalmente a ter direito ao estatuto de prisioneiros de guerra”, explica o especialista, temendo que o processo atualmente em curso no Supremo Tribunal russo para que os integrantes do Batalhão Azov sejam considerados membros de uma força terrorista sirva exatamente para lhes retirar esses direitos.
“Se isso acontecer, a Rússia vai estar a violar o primeiro Protocolo adicional e as leis da guerra”, diz Robert Goldman, para depois lamentar que a estratégia do Kremlin esteja nada menos do que a ser decalcada da empregue pela Casa Branca, aquando da guerra no Afeganistão.
“Infelizmente, quando invadiu o Afeganistão, a segunda administração Bush aplicou mal a lei e negou às Milícias Talibãs, que eram efetivamente as forças armadas do país, o estatuto de prisioneiros de guerra por estarem envolvidos em atividades terroristas. Isto foi um erro total. Afastou-se da prática passada dos EUA em conflitos armados e os russos agora podem muito bem tentar usar este precedente: ‘Vejam: os Estados Unidos fizeram isto no Afeganistão. Estamos a fazer a mesma coisa que os Estados Unidos fizeram’. Estava errado quando o fizemos no Afeganistão, e se os russos o fizerem agora, continua a estar errado”, defende o presidente do ICJ.
Se não quiser enveredar por este caminho, lembra Marco Sassòli, Vladimir Putin terá outra opção para privar os membros do Batalhão Azov, que acusa de “nazismo”, dos privilégios reservados aos prisioneiros de guerra. “A Rússia mantém a reserva da União Soviética [no que respeita ao artigo 85.º da Convenção relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra] que diz que quem é sentenciado por crimes de guerra perde o direito a ser tratado como prisioneiro de guerra. Ou seja, a partir do momento em que condenem alguém, podem privá-lo dos privilégios de ser prisioneiro de guerra”, explica o professor da Universidade de Genebra.
Uma coisa é o que diz a lei, outra aquilo que os Estados efetivamente cumprem, concede o italiano: “Primeiro têm de os julgar num julgamento justo, não podem simplesmente dizer que são fascistas ou terroristas, tem de haver provas e o Comité Internacional da Cruz Vermelha pode assistir a esses julgamentos para verificar se os direitos desses réus estão a ser cumpridos. E têm de ter advogados, não pode ser um puro julgamento de propaganda, o que atualmente pode ser difícil na Rússia porque como sabemos o sistema judicial não é propriamente independente”.
O doutorado em Direito e membro do Conselho Presidencial da Rússia para o Desenvolvimento da Sociedade Civil e dos Direitos Humanos, que falou com o Observador sob anonimato, prevê um cenário diferente e diz que a Rússia tem muito a perder se decidir julgar os militares dos Azov à porta fechada e ao arrepio das leis internacionais. “Isso poderá criar problemas à Rússia não só no sentido jurídico, mas também no sentido político. Nos últimos anos os tribunais russos têm abusado de julgamentos fechados ao público, muitas vezes sem uma base legal sequer. Mas um julgamento fechado dos militares dos Azov não convencerá ninguém, pelo menos na comunidade internacional, e na Rússia pode ter o efeito oposto: significa que há algo a esconder”, elabora o especialista em Direitos Humanos.
“Se o processo for conduzido legalmente e de uma forma aberta, é difícil imaginar um palco melhor para os combatentes ucranianos. É claro que, neste caso, poderão ser previamente sujeitos a tortura e intimidação (como foi feito nos grandes julgamentos estalinistas dos anos 30), mas não há garantias de que alguns dos arguidos não vão utilizar o tribunal para contar histórias que são desvantajosas para a Rússia.”
Têm de estar envolvidas entidades internacionais no processo de julgamento de prisioneiros de guerra?
Não. Mas podem e devem estar. “As Convenções de Genebra não obrigam a que haja essa supervisão, dizem apenas que o julgamento deve ser levado a cabo por um representante do poder protetor, mas não existe nenhum”, explica ao Observador Marco Sassòli. “Um poder protetor seria um terceiro Estado que representasse a Ucrânia junto da Rússia e a Rússia junto da Ucrânia, mas não existe nada do género, portanto a prática dos últimos 30 anos foi autorizar o TPI a assistir a estes julgamentos.”
No caso da guerra na Ucrânia, lamenta o professor Robert Goldman, tem havido “zero discussão” sobre a necessidade de os julgamentos que já começaram a acontecer serem supervisionados, como aliás prevê o Protocolo Adicional 1 das Convenções de Genebra. “Pode ser constituída uma comissão vinculativa para investigar se estas pessoas que estão a ser acusadas de crimes de guerra violaram mesmo as leis da guerra, o problema é que está dependente do consentimento da Rússia e da Ucrânia e é um mecanismo que nunca foi usado antes”, explica o especialista.
Para além disso, acrescenta ainda o italiano Marco Sassòli, há outra entidade internacional com autonomia para averiguar estes processos, se bem que a posteriori: “O Comité Internacional da Cruz Vermelha tem o direito de visitar todos os prisioneiros de guerra e pode perguntar-lhes como decorreu o julgamento, se tiveram advogados e por aí em diante, mas não faz declarações públicas sobre o assunto por motivos de confidencialidade”.
É obrigatório que estes julgamentos aconteçam em tribunais militares?
De acordo com o artigo 84.º da Terceira Convenção de Genebra, “um prisioneiro de guerra só pode ser julgado por tribunais militares”. Mas existe uma exceção: em países onde não existam tribunais militares estes julgamentos podem acontecer em tribunais civis, explicam os especialistas contactados pelo Observador.
Ora, desde julho de 2010, este é justamente o caso da Ucrânia, que aboliu a justiça militar e não voltou a restaurar a figura, apesar de nos últimos oito anos terem sido várias as sugestões nesse sentido, para “manter a disciplina e a boa ordem nas forças armadas da Ucrânia, atualmente envolvidas em conflitos armados em curso no Leste do país”, pode ler-se num relatório produzido por Mindia Vashakmadze, investigador da Fundação Max Planck para a Paz Internacional e o Estado de Direito.
Para o americano Robert Goldman este é um dos problemas essenciais destes julgamentos que estão a acontecer em solo ucraniano. “Há uma boa razão para querermos tribunais militares nos conflitos armados internacionais: os juízes têm uma compreensão da dinâmica de um conflito armado”, explica o especialista, para depois exemplificar com as discordâncias que continuam a subsistir sobre determinados aspetos legais — até entre profissionais militares com experiência de guerra.
“O Comité Internacional da Cruz Vermelha reuniu, por um período de três anos, peritos, peritos militares e especialistas em Direitos Humanos para tentar definir o que constitui participação direta nas hostilidades. E, embora houvesse certos acordos gerais sobre alguns dos parâmetros, quando passaram a avaliar circunstâncias individuais houve desacordos. E nunca se chegou a consenso. Há desacordo entre os militares, por isso pode imaginar o que acontece com advogados civis.”
Se estes casos têm mesmo de ser julgados em tribunais civis, defende, os advogados devem pelo menos ter formação militar ou ser assistidos no processo por peritos em Direito da Guerra.
Todos os ataques contra civis constituem crimes de guerra?
Não — e os desentendimentos revelados na questão anterior dizem respeito a este tema (já lá iremos).
De acordo com a Quarta Convenção de Genebra, adotada no pós Segunda Guerra Mundial para defender os direitos da população civil em tempo de conflito, estão proibidas todas as “ofensas contra a vida e a integridade física, especialmente o homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplício” de “pessoas que não tomem parte diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tenham deposto as armas”.
Quer isto dizer que, de acordo com as leis da guerra, é proibido atacar civis ou instalações civis mas apenas se esses civis não forem parte ativa da guerra ou se essas instalações não estiverem a ser usadas para o mesmo esforço.
“Se participarem diretamente nas hostilidades deixam de ser protegidos como civis”, explica Marco Sassòli. “No início do conflito, o presidente Zelensky encorajou todos os ucranianos a fazer cocktails molotov e a receber os invasores russos com eles — isto é participação direta e, como tal, os russos tinham legitimidade para atacar esses civis. Porque os civis não podem resistir, só as forças armadas é que podem defender o país.”
O problema, acrescenta Robert Goldman, é definir, caso a caso, o que é, ou não, considerada “participação direta nas hostilidades”. “É uma situação altamente circunstancial”, diz o especialista, para depois recuperar o assunto que, há algum tempo, dividiu os peritos reunidos pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha.
Enquanto todos concordaram que um civil a trabalhar, mesmo que em tempo de guerra, numa fábrica de munições a centenas de quilómetros do campo de batalha só participava, na melhor das hipóteses, indiretamente nas hostilidades e, por conseguinte, não podia ser atacado, quando se colocou a questão de o mesmo civil poder fazer dispositivos explosivos improvisados perto do cenário de guerra as opiniões dividiram-se.
“Sobretudo entre os militares ocidentais envolvidos nas hostilidades no Afeganistão e no Iraque houve opiniões divergentes”, recorda o especialista americano. “Como é óbvio, um civil a fazer cocktails molotov perto de um teatro de operações militares está a correr um risco. Mas uns peritos diziam ‘Não, é uma participação indireta, mas o sítio onde armazenam os cocktails molotov é um alvo legal porque são munições’; e outros diziam ‘Não, podemos atacar essa pessoa’. Como digo, é altamente circunstancial.”
Quem pode ser julgado por este tipo de crimes?
Militares e cadeia de comando podem ser julgados por crimes de guerra nestes tribunais. “Podem ser imputadas responsabilidades às cadeias de comando. Se eu for o comandante de soldados que cometeram crimes de guerra e se lhes ordenei que cometessem crimes de guerra ou, mesmo que não tenha ordenado, se eu souber que cometeram crimes de guerra e não os tiver acusado, então sou responsável. Mas não é só porque alguém é o chefe que é responsável, tem de existir provas de que houve controlo sobre esses atos”, explica Marco Sassòli.
Um exemplo recente, recorda, foi o de Jean-Pierre Bemba que, enquanto líder máximo de um grupo rebelde na República Democrática do Congo, ainda chegou a ser condenado a 18 anos de prisão por crimes de guerra (incluindo execuções, violações e pilhagens) e crimes contra a humanidade, mas acabou por ser absolvido em 2018 pelo TPI. “Era o mais alto comandante de um grupo armado que cometeu crimes de guerra terríveis mas não havia nenhuma prova de que tivesse tido controlo sobre a situação, portanto acabou por ser absolvido”, explica o professor da Universidade de Genebra. “Com os nazis em Nuremberga foi fácil, porque os nazis tinham documentos sobre tudo, e mais tarde ficou bem claro através desses documentos quem deu as ordens para fazer o quê. Não sei se os russos têm esse tipo de documentos mas, mesmo que tivessem, como é que os ucranianos ou mesmo o TPI poderiam ter acesso a esses documentos?”
Mesmo que o conseguissem, estes tribunais não teriam legitimidade para julgar chefes de Estado e governantes de topo que, por determinação do TPI, têm imunidade sobre todos os atos praticados durante o seu tempo no poder — incluindo tortura, genocídio e crimes contra a humanidade.
Para poderem ser julgados, explica Robert Goldman, figuras como Vladimir Putin ou Sergey Lavrov teriam de cessar funções — “Não significa que tenham impunidade, mas enquanto desempenharem esses papéis não poderão ser julgados” —, e mesmo assim seria muito improvável que isso acontecesse.
“Nada indica que esteja em curso um golpe de Estado na Rússia e que Putin vá ser substituído e entregue ao Tribunal Penal Internacional”, diz o especialista americano, que também afasta a possibilidade de julgamento num tribunal de qualquer outro país. “Embora as Convenções de Genebra atribuam jurisdição universal — ou seja, qualquer Estado que faça parte das Convenções de Genebra pode julgar os responsáveis pela prática de crimes de guerra —, os chefes de Estado, chefes de governo, ministros dos Negócios Estrangeiros e ministros da Defesa, não estão sujeitos a essa jurisdição universal nos tribunais de outro país.”
A terceira opção possível, a criação de um tribunal ad hoc, também é muito pouco plausível, diz o professor da Washington School of Law ao Observador. “Quando se revelaram os horrores cometidos no conflito da Jugoslávia, o Conselho de Segurança criou o Tribunal Penal Internacional para a antiga Jugoslávia para lidar com os responsáveis de topo, e depois aconteceu o mesmo com o genocídio no Ruanda. Mas agora, obviamente, isso não se vai repetir. O Conselho de Segurança não vai chamar o Tribunal Penal Internacional a intervir porque a Rússia e a China vão vetar. A Rússia não está sob a alçada do TPI e não me parece que Putin vá a lado algum”, lamenta o especialista.
“A vantagem é que não há prescrição para os crimes de guerra, portanto, pode acontecer daqui a 30 anos”, conforma-se Marco Sassòli. “Há nazis que têm sido presos 50 anos depois”.