Eram 9h45 da manhã, Ana Gomes deslocava-se de carro do Porto para um encontro que tinha marcado às 10h na câmara municipal de Matosinhos quando publicou um vídeo nas redes sociais: a própria a pôr batom vermelho nos lábios. Sem uma única palavra. A hashtag #VermelhoemBelem parecia falar por si, mas, vendo bem, queria dizer mais do que apenas o apoio de Ana Gomes à onda de solidariedade com Marisa Matias, que tinha sido alvo de insultos de André Ventura.
O símbolo do batom vermelho era a personificação daquilo que Ana Gomes defende: uma geringonça presidencial anti-Ventura, para impedir o candidato do Chega de ficar em segundo lugar e, eventualmente, de empurrar Marcelo para uma segunda volta. Ou seja, uma desistência de Marisa a favor da sua candidatura (que, ainda assim, está mais bem classificada nas sondagens, taco a taco com Ventura). Mas o Bloco de Esquerda não quer nem ouvir falar dessa “agenda”. “Nem pensar”, disse Marisa Matias esta sexta-feira.
O desafio, que já tinha sido lançado durante os debates presidenciais, voltou a ser feito esta tarde pela própria candidata à boleia de um artigo do fundador do Livre, Rui Tavares, que, por sua vez, foi partilhado pelo deputado e dirigente do PS Tiago Barbosa Ribeiro. No Twitter, Ana Gomes foi clara: “Não será nunca por mim que a esquerda não converge antes das eleições”. Tiago Barbosa Ribeiro, deputado socialista próximo de Pedro Nuno Santos que este sábado vai estar presente na campanha de Ana Gomes, acrescentava que se as direções dos partidos (PS incluído) “não souberam interpretar o momento que vivemos no posicionamento para as presidenciais”, então cabe ao “povo da esquerda” essa tarefa. E a interpretação, no seu entender, é unir as esquerdas para destronar a direita.
Como já expliquei, não será nunca por mim q a esquerda não converge antes das eleições. https://t.co/no6Io8UfqA
— Ana Gomes (@AnaMartinsGomes) January 15, 2021
“Não é um convite à desistência [da candidata Marisa Matias] nem uma posição estratégica particularmente pensada”, diz ao Observador fonte da candidatura de Ana Gomes, lembrando que essa sempre foi a posição de Ana Gomes, defensora acérrima da união das esquerdas no apoio parlamentar à governação do país e defensora de uma geringonça 2.0 que cairia por terra em 2019. Em plena reta final da primeira semana de campanha oficial, a escolha de palavras de Ana Gomes não soou inocente, embora pouca seja a esperança, na campanha da socialista, de que essa “convergência” ainda venha a acontecer de facto.
Bloco não dá saída. “Nem pensar”
Enquanto Ana Gomes punha o batom, Marisa Matias — que agradeceria publicamente esse apoio –, fechava a porta a qualquer possibilidade de uma convergência. Mesmo que as sondagens, como é o caso da mais recente sondagem da Pitagórica para o Observador/TVI, ponham André Ventura à frente de Ana Gomes no segundo lugar e Marisa Matias bem lá atrás.
“Já respondi a essa pergunta e não alterou em nada. A não ser que haja aqui uma agenda política que não é a minha e que não sei qual é, a favor de outra candidatura, eu não a percebo, eu não vou… Isso não vai acontecer”, respondeu prontamente Marisa Matias quando os jornalistas a questionaram sobre a possibilidade de ponderar desistir em prol de Ana Gomes. A 9 dias das eleições, um redondo não.
Sondagem Observador/TVI/Pitagórica. André Ventura passa para segundo lugar
Nas páginas do jornal Público, também o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, escreveu um artigo a deixar claro que “Eu é que decido em quem voto”. Ou seja, que vai votar por convicção e não por calculismo anti-Ventura — aquilo a que chama uma “bipolarização artificial”.
“Engana-se quem acha que a esquerda se mede pela bitola da direita e na submissão à agenda das candidaturas populistas. Se não aceito que sejam comentadores ou sondagens a limitar a minha escolha, também não votarei em função da chantagem imposta pela extrema-direita ou na criação de bipolarizações artificiais”, lê-se, sublinhando que “o voto que soma é o das ideias e dos valores”, e não o da estratégia artificial.
Pelo meio, uma crítica a Ana Gomes, que tem defendido temas como as questões laborais e o combate à precariedade — onde PS e BE não se entenderam no último Orçamento do Estado — e que, no entender do BE, não tem propriedade para tal porque nessas matérias “o PS faltou à esquerda”.
Se as duas, que são amigas dos tempos de eurodeputadas em Bruxelas, falaram antes de avançarem com as respetivas candidaturas, isso parece certo: “Falaram”, garante ao Observador fonte da candidatura. Se falaram sobre a possibilidade de se unirem numa candidatura única, isso já é mais incerto. Ana Gomes disse que sim — no debate frente a Marisa — mas Marisa viria a dizer que não no debate seguinte.
A questão, no entender da estrutura de campanha de Ana Gomes, é que esta não é uma eleição presidencial qualquer. “É a primeira vez que disputamos umas presidenciais com um candidato abertamente anti-democrático”, diz ao Observador a mesma fonte, lembrando a intervenção de ontem de Manuel Alegre numa conferência online com Ana Gomes, onde criticou o PS por ter desertado desse combate, numa altura onde a democracia está particularmente ameaçada, e lembrou o que aconteceu em França quando o PS desvalorizou “Le Pen pai”. “Veja-se onde está agora a Frente Nacional e onde está agora o PS em França”.
O perigo do exemplo francês
Foi também no exemplo francês que Rui Tavares pegou para fazer soar os alarmes. Num artigo no Público, o historiador e fundador do Livre, que apoia Ana Gomes nesta corrida (e é co-autor dos compromissos da candidatura), passa a história em revista: corria o ano de 2002 e Jacques Chirac (centro-direita) recandidatava-se à presidência; o socialista Lionel Jospin, que liderava um governo de esquerdas que incluía Verdes, comunistas e uma esquerda mais radical, decidiu concorrer para derrubar a direita; mas os vários partidos da esquerda que compunham aquela “geringonça” apresentaram um candidato próprio. Todos eles “estimáveis”, segundo Rui Tavares. Por outro lado, concorria também Jean Marie Le Pen, em representação de uma extrema-direita particularmente entusiasmada com aquelas eleições.
Resultado: Le Pen pai passou à segunda volta contra Chirac, com umas décimas a mais sobre Lionel Jospin. Escusado será dizer qual é a analogia. Le Pen é Ventura, Lionel Jospin é Ana Gomes. E Chirac é Marcelo. Resultado da segunda volta: ganhou Marcelo Chirac, com larga maioria, e certamente com os votos que antes tinham ido para os vários candidatos de esquerda. Se tivessem estado juntos, esses votos teriam impedido Le Pen Ventura de forçar a segunda volta.
Ana Gomes, que tem evitado atacar Ventura pelo nome, mas que já começou a deixá-lo ditar os tempos da campanha (reagindo às declarações do adversário), está ciente desse “perigo” francês que espreita. Daí que esta tarde tenha pegado na parábola de Rui Tavares e lançado o alerta vermelho. Vermelho, sim, a cor do batom.