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Era mais um dia, normal, de trabalho no escritório. Era, até Hugo Corga começar a sentir uma forte pressão nas costas e o coração a “bater acelerado no pescoço e no queixo”. Quando o INEM chegou já estava em tronco nu, completamente encharcado em suor, e de olhos fechados, como que desmaiado, embora consciente. Foi há quase 10 anos. Hugo tinha apenas 33 quando sofreu um enfarte agudo do miocárdio, mais conhecido por ataque cardíaco.
Convencido de que tinha tido “um azar”, até porque os médicos nunca lhe avançaram outro motivo, só quatro anos mais tarde Hugo percebeu que a explicação para o enfarte precoce era outra. E vinha dos genes.
“Um dia estava a sair do Hospital de Santa Maria e encontrei, por acaso, uma prima que me perguntou se era verdade que eu tinha tido um enfarte. Eu disse-lhe que sim e ela acrescentou que estava a ser seguida, com a filha, no hospital porque ambas sofriam de hipercolesterolemia familiar. E aconselhou-me a fazer um teste genético”, recorda.
Foi esse o primeiro contacto de Hugo Corga com a doença, que viria a descobrir também ser a sua. A hipercolesterolemia familiar (FH) é uma doença genética, que se traduz em níveis de colesterol elevado desde a nascença, sobretudo o chamado “colesterol mau” (LDL), e apresenta para os doentes um alto risco de doença cardiovascular precoce. Até agora os investigadores conseguiram identificar três genes que podem ser responsáveis pela doença. (Saiba mais no capítulo “Os genes que não deixam o fígado fazer o trabalho”).
Só nesse momento Hugo associou o seu episódio cardiovascular ao do pai, que tinha falecido aos 43 anos, também ele com um enfarte agudo do miocárdio, e aos problemas cardíacos do avô, que mesmo assim viveu para lá dos 80 anos.
Quase 700 doentes identificados em Portugal
Mas a família Corga não está sozinha. Estima-se que uma em cada 500 pessoas, ou até uma em cada 200, sofra de hipercolesterolemia familiar em todo o mundo – 14 a 34 milhões de indivíduos –, segundo a Declaração de Consenso da Sociedade Europeia de Aterosclerose. O mesmo estudo prevê que, apesar das estimativas serem altas, menos de 1% dos doentes em todo o mundo estarão identificados.
Em Portugal, embora as estimativas mais otimistas apontem para 20 mil casos, só foram registados 668 doentes no estudo conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa), em Lisboa. Poderão existir outros doentes diagnosticados, mas esses dados não estão divulgados. “O país está adormecido para esta doença”, acusa Mafalda Bourbon. A investigadora do Insa lembra que existem testes genéticos para a doença desde que a começou a estudar em Portugal, em 1999, e que desde 2013 estes testes são comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde. “Não sei porque é que os médicos não fazem o pedido de diagnóstico”, lamenta. Mafalda Bourbon acrescenta que, ao abrigo deste estudo que já incluiu mais de duas mil pessoas, os testes sempre foram gratuitos.
A hipercolesterolemia familiar é uma doença genética e hereditária, mas o que a torna mais comum é ser dominante. Isto quer dizer que se um dos pais tiver a doença, há 50% de hipótese de os filhos virem também a tê-la. Mas se ambos os progenitores forem doentes, acresce a essa probabilidade, uma outra – de 25% – de os filhos poderem apresentar as manifestações mais graves da FH (ver Capítulo 5).
Sabendo que havia a possibilidade de os filhos também terem a doença, Hugo Corga levou logo dois deles a realizarem o teste. O terceiro, o mais novo, só fez os exames mais tarde porque era, na altura, recém-nascido. É que embora a criança possa já ter níveis elevados de colesterol à nascença, as análises de sangue só são recomendadas depois dos dois anos – até lá os níveis dos lípidos (gorduras) são muito variáveis. Resultado final: os três filhos herdaram a mutação genética do pai.
“Não há razão para continuar com o subdiagnóstico”
Também Hugo “preferia ter sabido mais cedo da doença”. Não necessariamente aos dois anos, mas, pelo menos, aos 19, quando fez as primeiras análises ao sangue. Já na altura, lembra-se, acusou colesterol total acima dos 400 mg/dl (miligramas por decilitro), mas desvalorizou. E não foi o único a fazê-lo. “O médico nem me perguntou se tinha histórico familiar, nem prescreveu nenhum medicamento. Só disse para eu ter cuidado porque era uma bomba-relógio”, recorda, acrescentando que tinha excesso de peso, embora não fosse obeso, bebia socialmente como “qualquer jovem daquela idade” e fumava um maço de cigarros em dois ou três dias. “Nada de extraordinário.”
Tabagismo, consumo excessivo de álcool, maus hábitos alimentares, excesso de peso e sedentarismo podem potenciar níveis altos de colesterol no sangue e são fatores de risco para a aterosclerose e doenças cardiovasculares. Mas “o hipercolesterolémico familiar típico não é gordo”, frisa Pedro Marques da Silva, consultor de medicina interna, do Núcleo de Investigação Arterial Medicina IV do Hospital de Santa Marta (Centro Hospitalar Lisboa Central). E até podem ter um estilo de vida saudável, acrescenta Mafalda Bourbon. A questão é que os doentes com hipercolesterolemia familiar têm problemas com a absorção de colesterol pelo fígado e, apesar do estilo de vida saudável ajudar, os níveis de colesterol só podem ser controlados com medicamentos.
“A maior parte do colesterol é sintetizado no fígado”, refere Miguel Melo, médico endocrinologista no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Embora admita que possa haver alguma variação individual, o médico refere que a percentagem de colesterol no sangue com origem na alimentação não excede os 30%, o resto é trabalho do fígado. Porque, como lembra José Alves, diretor do serviço de Medicina IV do Hospital Fernando Fonseca (na Amadora), em abstrato não existe colesterol bom, nem mau, pois o colesterol é essencial à nossa sobrevivência – faz parte da membrana de todas as células e é a base para muitas hormonas.
Ainda assim não deve estar em excesso, sob o risco de se acumular nos vasos sanguíneos e provocar doenças cardiovasculares. Portanto, a melhor forma de despistar um potencial doente é com as análises de sangue ao colesterol total e ao colesterol contido nas partículas que o transportam (como as LDL e as HDL). A Direção-Geral de Saúde (DGS) recomenda que se comecem a fazer análises a partir dos 40 anos, referem os especialistas contactados pelo Observador, mas para alguns doentes pode ser tarde demais.
“Não compreendo que possa haver um adulto que aos 40 anos não saiba qual é o valor do seu perfil lipídico [dosagem das várias gorduras no sangue], da sua pressão arterial e da sua glicemia. Como também não compreendo que alguém que tenha uma história familiar de um avô, de um pai ou parentes mais diretos que tiveram um enfarte do miocárdio antes dos 50 ou dos 60 anos, não procure saber se tem a doença”, desabafa Pedro Marques da Silva, que já trabalhou no Centro de Hipercolesterolemia Familiar nos Estados Unidos.
“As pessoas estão muito pouco sensibilizadas. É uma doença muito desconhecida, não apenas em Portugal”, concorda Luísa Falcão Campos, presidente da Associação Portuguesa de Hipercolesterolemia Familiar, acrescentando que era “muito importante que os médicos colaborassem”. Com “muito poucas pessoas inscritas”, o objetivo desta associação, que tem promovido alguns rastreios nestes três anos de “vida”, passa por “divulgar” a doença.
Mafalda Bourbon considera que “não há razão para continuar com o subdiagnóstico”, pelo que também se esforça por tornar a doença mais conhecida, tanto dos médicos como da população, mas ainda existem barreiras difíceis de ultrapassar. Há doentes que ligam a pedir ajuda, porque têm o colesterol alto, mas a investigadora só pode aceitar doentes que venham recomendados pelo médico assistente. “O teste tem de ser sempre referenciado pelo médico, para ter a certeza que o médico continua a seguir o doente.”
Medir os níveis de colesterol nas crianças
Preocupadas com o diagnóstico precoce da doença, as investigadoras do Insa lembram no artigo publicado na revista científica Genetics in Medicine que “em 2013, a Direção-Geral de Saúde publicou uma recomendação aconselhando que o rastreio lipídico fosse realizado em todas as crianças antes dos 10 anos.” Ainda assim, as investigadoras consideram que só as crianças que tenham níveis de LDL superiores a 190 mg/dl devem ser submetidas ao teste genético. “Isto é importante pois o teste torna-se mais custo-efetivo”, diz Mafalda Bourbon. “Aumentando o valor de LDL conseguimos diminuir o número de falsos positivos, ou seja, o número de doentes que pareciam ter FH, mas que afinal não tinham.” Até porque esta não é a única doença que justifica perfis lipídicos irregulares.
A DGS, no âmbito do Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil de 2013, recomenda que seja feito o rastreio de dislipidemias (alterações no perfil lipídico) entre os dois e os quatro anos de idade em crianças com histórico familiar e, nas crianças sem histórico familiar, uma vez antes dos 10 anos e outra antes dos 20. Os médicos que seguem estas recomendações nas unidades de saúde familiares “pedem, regra geral e por rotina, a análise dos lípidos no exame global dos 5-6 anos e se nesta idade vier alterada prosseguimos com o estudo e referenciamos eventualmente a criança para a consulta no hospital”, confirma Andreia Moreira, médica interna da especialidade de Medicina Geral e Familiar. A médica admite, porém, que “existe subdiagnóstico e subtratamento” da hipercolesterolemia familiar porque estas recomendações não têm caráter obrigatório e, por isso, nem todos as seguem.
Rui Silva Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, começa precisamente por aí: “não está preconizado que haja um rastreio em idade pediátrica, a não ser que haja indícios ou que já saibamos que há uma hipercolesterolemia familiar”, embora admita algumas exceções. O médico vinca porém que “o colesterol nos preocupa, mas preocupa-nos mais, por exemplo, a obesidade infantil.”
Já a pediatra Paula Garcia, da Consulta de Doenças Hereditárias do Metabolismo, do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, é de opinião que a doença está subdiagnosticada, “provavelmente porque culturalmente a prevenção não está ainda enraizada nos costumes da população portuguesa”. “Os cidadãos portugueses e a tutela têm uma atitude, perante o SNS, mais curativa do que preventiva”, corrobora o médico Pedro Marques da Silva.
Mas a médica de Coimbra aponta ainda outro fator: “a hipercolesterolemia familiar é uma patologia que não apresenta sintomas clínicos”, ou raramente apresenta, e “muitas vezes o primeiro sinal é um evento agudo vascular”. E esse pode ser fatal.
Não foi o caso de Hugo Corga. Por volta dos 23 anos começaram a aparecer-lhe “umas bolsinhas de gordura junto aos olhos”. Chegou a ir a um oftalmologista e a um dermatologista que lhe queimou as ditas “bolsinhas”, mas elas voltaram a aparecer e eram cada vez mais e maiores. As pequenas bolsas amareladas que aparecem em torno dos olhos são xantelasmas e não são específicas da FH, mas são indicadoras de uma dislipidemia, nota Mafalda Bourbon.
Outro tipo de acumulação de colesterol são os xantomas – raros nos doentes portugueses -, que são pequenas bolsas de material gorduroso e podem aparecer nos joelhos, cotovelos e nádegas, mas também nos tendões das mãos e no tendão de Aquiles. Os xantomas tendinosos no tendão de Aquiles são exclusivos da hipercolesterolemia familiar, refere a investigadora do Insa. Nestes casos, mesmo sem colesterol alto, aconselha-se o estudo genético.
Em casa de Hugo, manteiga não entra
O subdiagnóstico da doença acaba por se refletir também num tratamento deficiente ou inexistente. Apesar de ter colesterol elevado desde os 19 anos e de ter tido um enfarte aos 33, Hugo Corga só começou a receber o tratamento adequado a partir de 2010, quando lhe foi diagnosticada a doença genética. “Tomo todos os dias uma estatina e uma rosuvastatina, um anticoagulante, uma aspirina e um comprimido para a tensão arterial. Tomo mais comprimidos do que os meus avós todos juntos antes de morrerem”, conclui, mantendo a boa disposição à medida que vai relatando a doença.
“Agora que penso, o meu sangue devia parecer papa Cerelac”, brinca, referindo que neste momento tem o colesterol total na casa dos 190 mg/dl. Sendo que Hugo Gorga também adotou um estilo de vida mais saudável. “Deixei de fumar, passei a fazer mais exercício e tornei-me um bocado obsessivo com a alimentação: não como fritos, evito azeite e óleos, como carnes brancas grelhadas e peixe. Mas não deixo de viver por ter isto. Se vou sair com amigos, bebo à refeição como uma pessoa normal.”
E os filhos seguem o mesmo regime. “Já se habituaram a não ter manteiga em casa, nem bolachas. Não podem comer batatas fritas, nem hambúrgueres, nem pizzas. Sabem que têm de comer verduras”, diz o pai Hugo. “Os pais dos amigos deles é que devem achar que nós somos completamente ‘freaks’”, relata. “Os meus filhos até já perguntam se as coisas têm ou não têm colesterol.”
Além da alimentação, a filha mais velha, agora com 13 anos, também já está medicada. Mas os mais novos – prestes a fazerem cinco e oito anos – ainda não. Mafalda Bourbon assume que, quanto mais cedo começar o tratamento, menor o risco de desenvolver um acidente cardiovascular precoce. Mas o médico de família Rui Silva Nogueira tem uma opinião diferente. Das 500 famílias que segue, tem uma diagnosticada e os filhos ainda não foram medicados. “Vai-se controlando e vão-se limitando outros fatores de risco. A medicação é também em si um fator de risco.”
Face aos que criticam o uso de estatinas no controlo do colesterol, alertando para o risco de diabetes e obesidade, o risco de estimular insuficiência cardíaca, de problemas musculares, entre outros, Pedro Marques da Silva é perentório: todos os medicamentos têm efeitos secundários, o importante é avaliar se os benefícios compensam esses riscos. A pediatra Paula Garcia confirma: “em termos de terapia farmacológica as estatinas mantêm-se os fármacos mais eficazes de primeira linha.” Na Holanda, por exemplo, frisa o médico do Hospital de Santa Marta, “é evidente que o tratamento precoce, perfeito e correto com estatinas levou a que as pessoas com FH heterozigótica tivessem a mesma esperança média de vida de qualquer outra pessoa sem a doença”.
“Talvez o único ponto sensato, por uma questão de segurança, é, eventualmente, nas crianças do sexo feminino começar as estatinas depois do primeiro período menstrual para termos a certeza que do ponto de vista do desenvolvimento hormonal correu tudo normalmente”, informa Pedro Marques da Silva.
As hormonas esteroides, como o estrogénio (hormona sexual feminina) ou a testosterona (hormona sexual masculina), derivam do colesterol. Por isso, os níveis elevados desta gordura podem condicionar a produção das hormonas. Perceber como isso acontece e, consequentemente, a relação do colesterol com o cancro é o objetivo de Sérgio Dias, investigador no Instituto de Medicina Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
“As mulheres com níveis elevados de colesterol, tanto familiar como comum, têm tumores de mama maiores, apresentam maior resistência à terapêutica e a probabilidade de desenvolverem metástases é maior”, explica o investigador. A equipa de investigação quer agora perceber se ter o colesterol elevado aumenta a probabilidade de reaparecimento do cancro. Outro dos alvos de estudo é o cancro da próstata, porque também é hormono-dependente.
Conhecendo os efeitos do colesterol no corpo, apesar de não ter ficado com nenhuma sequela física do enfarte, Hugo Corga mantém-se alerta e não desarma. “Fiquei meio maluco. À mínima tontura penso que vou cair para o lado. Vivo um bocadinho com medo, mas levo a coisa na boa. Se não é para hoje é para amanhã. Consegui dosear o stress. Fiquei uma pessoa um bocadinho mais calma. É preciso é descontração.”
Os genes que não deixam o fígado fazer o trabalho
Até ao momento já foram identificados três genes cujas alterações podem condicionar a manifestação da hipercolesterolemia familiar, mas poderão existir outros genes por descobrir. Ainda que os doentes possam ter mutações em genes diferentes ou as alterações de um gene variem entre os grupos familiares, o problema é sempre o mesmo: as células do fígado (hepatócitos) não conseguem incorporar todas as partículas de LDL (que transportam colesterol), resultando num excesso de colesterol no sangue.
O colesterol, enquanto gordura que é, não é solúvel em água (nem no plasma), explica Miguel Melo, membro da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo. Logo, para ser transportado no sangue, tem de estar encerrado dentro das lipoproteínas. Estas partículas são compostas por uma camada de fosfolípidos (outro tipo de gorduras) que envolve o colesterol e por uma proteína (uma apolipoproteína). Existem vários tipos de lipoproteínas, que se distinguem pela quantidade de colesterol e triglicéridos que transportam e pela função que têm. As mais conhecidas são as LDL e as HDL. Grosso modo, as lipoproteínas LDL levam o colesterol do fígado para as células que dele precisam e as lipoproteínas HDL carregam o colesterol em excesso (e que não foi utilizado) para o fígado, onde este é reciclado.
Para que o fígado possa reciclar as LDL tem de as conseguir “agarrar”. E para isso conta com recetores próprios que são proteínas à superfície das células que se ligam a estas lipoproteínas e as transportam para o interior deste órgão. Se o gene que tem o código para fabricar este recetor tiver um defeito, a missão fica comprometida e este já não consegue ligar-se às LDL ou fá-lo-á de uma forma deficiente. É este o caso em mais de 90% dos doentes com FH diagnosticados no mundo. Mafalda Bourbon, que começou a trabalhar com a doença em 1997 durante o mestrado no Medical Research Council (Reino Unido), refere que já se conhecem mais de 1.700 alterações neste gene, mas nem todas elas provocam a doença. Em Portugal, os 623 doentes com mutações neste gene apresentaram 123 alterações diferentes.
Menos comuns são as alterações na apolipoproteína B (ApoB), que envolve as lipoproteínas LDL, com 33 casos identificados em Portugal. É a ApoB que serve de ponto de ligação ao recetor das células do fígado, como uma chave que encaixa na fechadura. Depressa se percebe que um problema nesta proteína vai condicionar a ligação ao recetor e consequentemente a eliminação das LDL do plasma.
Ainda menos comuns são as alterações nos genes que codificam a proteína PCSK9 – em Portugal foram identificados apenas quatro doentes. Sabe-se que é um regulador natural do recetor que está no fígado – fazendo com que seja mais ou menos produzido –, mas pouco mais se conhece sobre esta proteína. O problema é que quando há uma mutação no gene, a PCSK9 alterada liga-se ao recetor impedindo-o de voltar à superfície das células do fígado, mesmo depois de ter libertado a LDL no interior.
“A PCSK9 é alvo de uma nova classe de medicamentos que poderá estar no mercado em dois ou três anos”, diz Mafalda Bourbon. A investigadora refere ainda que este é o caso em que demorou menos tempo entre a descoberta do gene e a criação do medicamento para o tratar. No passado dia 21 de julho, a Comissão Europeia aprovou a introdução no mercado de um medicamento – o evolocumab –, um anticorpo que se cola à proteína PCSK9 para a impedir de bloquear o recetor.
Normalmente os doentes com hipercolesterolemia familiar são heterozigóticos, ou seja, apresentam uma mutação num dos genes e em apenas uma das cópias desse gene (cada pessoa tem duas cópias para cada um, uma herdada da mãe outra do pai). Ainda assim é o suficiente para que num casal que tenha um elemento com esta doença haja 50% de hipóteses dos filhos nascerem doentes também. Mais raras são as situações de homozigotia: quando as duas cópias de um gene têm a mesma mutação da doença – homozigóticos verdadeiros – ou quando as duas cópias do gene têm mutações diferentes – heterozigóticos compostos.
Estes doentes apresentam manifestações mais severas da doença. “Um homozigótico não tratado raramente excede os 20 anos”, nota Mafalda Bourbon. “Oito dos 10 doentes portugueses homozigóticos para a FH, incluindo homozigóticos verdadeiros e heterozigóticos compostos, foram identificados durante estes 15 anos, o que nos faz concluir que os restantes terão morrido sem serem diagnosticados”, concluem as autoras no estudo publicado na Genetics in Medicine.
Se o foco da maior parte dos investigadores são as lipoproteínas LDL, porque se acumulam nas paredes dos vasos sanguíneos, José Alves, líder do grupo de Imunologia e Resposta Vascular do Centro de Estudos de Doenças Crónicas, tem investigado as HDL, das quais pouco se sabe. O investigador refere que, além de levarem o colesterol que as células não aproveitam de volta para o fígado, as HDL têm muitas enzimas com funções anti-inflamatórias, antioxidantes ou de alteração da coagulação. Perceber o funcionamento destas enzimas das HDL poderá fornecer mais informações sobre as doenças cardiovasculares e a melhor forma de as evitar.
Texto: Marlene Carriço e Vera Novais
Ilustrações: Andreia Reisinho Costa