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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Um longo e sinuoso caminho que teria dado “uma das suas melhores crónicas”: Eça de Queiroz está no Panteão Nacional

Depois de uma longa batalha judicial, os restos mortais do escritor foram trasladados para o Panteão Nacional num cortejo fúnebre com pompa e circunstância, mas sem dimensão popular.

Os restos mortais do escritor José Maria Eça de Queiroz foram trasladados esta quarta-feira do cemitério da aldeia de Santa Cruz do Douro, em Baião, para o Panteão Nacional de Santa Engrácia, em Lisboa, depois de uma batalha jurídica contra seis bisnetos avessos à mudança.

Eça de Queiroz “escreveria uma das suas melhores crónicas de sempre sobre a sua própria vinda para o Panteão”, notou o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, lembrando que o escritor oitocentista escreveu crónicas sobre “burocracias que exasperaram até os mais pacientes”.

Foi um longo e sinuoso caminho desde o início do processo, em 2021, mas quatro anos após a decisão do Parlamento, os restos mortais de Eça de Queiroz, 123 anos após a sua morte, foram mesmo transladados para o Panteão Nacional contra a vontade de seis bisnetos do escritor que, noticiou o Observador em setembro de 2023, decidiram mobilizar-se para impedir que as ossadas de Eça saíssem da aldeia de Santa Cruz do Douro, a poucos dias de tal acontecer. Em minoria, acabariam por perder em tribunal quatro vezes.

Terminada a luta judicial, restou apenas enfrentar a intempérie. A cerimónia desta quarta-feira, a cargo da Assembleia da República, arrancou às 9h no Parlamento, com a banda de música e fanfarra da GNR a tocar na rua. A urna, coberta pela bandeira nacional, chegou com escolta de honra motorizada e foi transportada até à essa, a base para pousar os caixões, ao som de uma marcha fúnebre. Tocado o hino nacional, a urna foi colocada no breque fúnebre e seguiu em cortejo com escolta de honra a cavalo para a Igreja de Santa Engrácia.

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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Mas a marcha fúnebre com os restos mortais de Eça de Queiroz teve de encarar a chuva e o vento até chegar ao Panteão Nacional, num percurso que fugiu ao horário previsto porque um dos militares da Guarda Nacional Republicana (GNR) que fazia escolta caiu do cavalo e precisou de assistência. O cortejo já estava próximo do fim quando, a poucos metros do Panteão, o incidente aconteceu. Ao Observador, fonte da GNR explicou que, dada a previsão meteorológica, os cavalos que participaram na escolta “foram equipados com ferraduras de borracha” para evitar este tipo de situações, mas isso não impediu o episódio. O militar, que ficou com ferimentos, recebeu cuidados médicos no local, “prestados pela secretaria de Estado da Saúde”, tendo depois da primeira avaliação sido levado para o hospital, onde à data da publicação deste artigo se mantém. Já o cavalo foi de imediato levado para as instalações da GNR, na Ajuda.

Se no interior do Panteão algumas das maiores figuras da nação e demais convidados (300, no total) aguardavam pela segunda parte da cerimónia, nas imediações do edifício não mais de uma mão cheia de pessoas resistia à chuva e vento para assistir ao dia em que Eça de Queiroz rumava ao Panteão. Havia quem olhasse a partir da janela de casa para a gente que ia chegando de guarda-chuva em riste. Por comparação, é justo dizer que a ida do autor de Os Maias para o monumento nacional teve pouca dimensão popular — muito longe daquela a que o país assistiu com a entrada no Panteão da fadista Amália Rodrigues, a primeira mulher homenageada, em 2001, da escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, em 2014, ou do futebolista Eusébio da Silva Ferreira, transladado em 2015. Não fosse a cobertura noticiosa e, na rua, o evento passava despercebido para muitos que só estranharam os acessos cortados em algumas zonas da cidade ao longo de toda a manhã.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

À conta do percalço com o GNR, a cerimónia no Panteão arrancou oficialmente 15 minutos depois da hora inicialmente apontada, com a soprano Sara Braga Simões, do Coro do Teatro Nacional de São Carlos, a interpretar o hino nacional acompanhada pelo maestro João Paulo Santos ao piano. No adro da nave central da igreja, o vistoso vestido azul klein da soprano contrastava com o tapete vermelho e focos de luz amarelada.

A dupla tornaria a protagonizar momentos musicais entre a leitura de excertos de Eça de Queiroz que expunham as suas diferentes facetas: escritor, cronista, jornalista e diplomata. Aliás, de acordo com a informação da Assembleia da República partilhada com a comunicação social no dia anterior, a escolha dos leitores dos excertos recaiu precisamente sobre “personalidades com perfis parcialmente coincidentes com o seu (a escrita, diplomacia, jornalismo e crónica e sátira social)”, além de “dois dos principais estudiosos da sua obra”.

A primeira leitura de excertos ficou a cargo de Carlos Reis, professor catedrático da Faculdade de Letras de Coimbra e especialista na obra de Eça de Queiroz — e o responsável pela escolha dos textos para a cerimónia — e do ator e encenador Pedro Saavedra. A partir de dois varandins, ambos leram excertos d’ Os Maias, antes de uma interpretação de Où voulez-vous aller?, de Charles Gounod, uma música referida num dos excertos lidos. Seguiu-se o elogio fúnebre por Afonso Reis Cabral, trineto do escritor oitocentista e um dos porta-vozes da disputa familiar que conheceu esta quarta-feira, por fim, o capítulo final.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa (C), o primeiro-ministro, Luis Montenegro (C-D), e o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar Branco (C-E), durante a cerimónia de concessão de Honras de Panteão Nacional a Eça de Queiroz, para onde será transladado 125 anos após a sua morte, em Lisboa, 08 de janeiro de 2025. FILIPE AMORIM/LUSA

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Aqui estamos muitos, mas somos poucos. Antes de nós, diria até connosco, está uma legião de leitores que acompanha Eça de Queiroz desde que 1866 publicou uma obra que transformou a literatura em língua portuguesa”, declarou o escritor de 34 anos a partir do púlpito, no centro da Igreja de Santa Engrácia. “Da leitora que aguarda pela carrinha da biblioteca itinerante ao aluno do ensino secundário que aguarda pelos desafios da vida e tantos outros incontáveis leitores, Eça de Queiroz chega ao Panteão Nacional em nossa companhia. Que este dia seja o símbolo do nosso compromisso e agradecimento”, disse o também presidente da Fundação Eça de Queiroz, lembrando que Eça entra no monumento nacional “aos ombros de tanta gente que o leu”.

Seguiram-se leituras das crónicas de Eça de Queiroz, com a acidez e humor queirozianos a ser notada nas leituras de Hugo van der Ding, radialista, desenhador e criador de sátira e humor, e Bárbara Reis, jornalista e redatora principal do Público, que noticiou as decisões do tribunal sobre o caso no mesmo jornal.

Foram lidos excertos de As Farpas, Uma Campanha Alegre, O Francesismo, A Europa e Um génio que era um Santo, seguindo-se uma interpretação de Couplets de Lorette, da opereta A Morte do Diabo, de Augusto Machado, com libreto de Eça de Queiroz e Jaime Batalha Reis.

Afonso Reis Cabral, trisneto de Eça de Queiroz (à esquerda) e o ator e encenador Pedro Saavedra (à direita), a quem coube ler alguns excertos da obra "Os Maias"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Eça de Queiroz escreveria uma das suas melhores crónicas de sempre, cheia de divertidas e jocosas ironias, sobre esta mesma cerimónia, sobre nós que aqui estamos, sobre mim, sobre a sua própria vinda para o panteão”, apontou José Pedro Aguiar-Branco no seu discurso. Eça “fala-nos de burocracias que desesperam até os mais pacientes”, alfinetou o presidente da Assembleia da República num dia em que muitos celebram o desfecho da contenda judicial com os familiares dos escritor que se opunham à possibilidade que este se juntasse a outras figuras nacionais como Aquilino Ribeiro, Almeida Garrett, Sophia de Mello Breyner, João de Deus ou Guerra Junqueiro.

“Fala-nos de tudo isto e nós revemos tantas vezes na sua prosa os traços do nosso país, diferente em muitas coisas e parecido em tantas outras. Atrás de uma escrita elegante e culta e de uma deliciosa ironia, está uma capacidade única de olhar o país. Única e desapaixonada”, continuou. “Há críticas que só aceitamos quando são feitas pelos nossos. Há verdades que só os mais próximos nos podem dizer. Eça de Queiroz conquistou na cultura portuguesa esse estatuto. É, mais do que qualquer outro, o escritor que nos descobre os vícios, o que nos denuncia, o que brinca mesmo à distância do tempo com os nossos defeitos coletivos”, afirmou Aguiar-Branco no seu discurso.

O presidente da Assembleia da República relevou a atualidade dos escritos de Eça de Queiroz e a forma como este retratou “as elites fascinadas com o estrangeiro e tantas vezes desligadas das vivências nacionais, os burgueses citadinos deslumbrados com o materialismo, a gente simples em serras abandonadas pelos círculos do poder, os jovens decididos a revolucionar o mundo que caem na resignação e no cinismo”. Para Aguiar-Branco, Eça “foi um escritor, um grande escritor, mas foi muito mais do que um escritor. Foi, numa palavra, um reformista. E, naqueles tempos, reformista era insulto. Hoje, para uns tantos, não será muito diferente”.

José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, num discurso em que recordou as críticas de Eça à classe política

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

José Pedro Aguiar-Branco deixou ainda um agradecimento às “gentes de Santa Cruz do Douro”, onde Eça de Queiroz se encontrava enterrado, por abdicarem do escritor para que “milhões de portugueses” desfrutassem da sua companhia. “A sua presença será devidamente apreciada”, garantiu.

Se o lugar do escritor na Igreja de Santa Engrácia “é óbvio”, é igualmente “óbvio dizer que se eu fosse de Baião, não gostaria de abdicar da sua companhia”, disse o presidente da AR. “É por isso que o seu lugar sempre foi o óbvio, entre os nossos maiores”, concluiu, numa “sala onde o silêncio fala com eloquência”.

“Quantos escritores portugueses estão tão vivos como Eça de Queiroz?”, provocou pouco depois Marcelo Rebelo de Sousa, chegado ao púlpito após leituras de excertos de O Primo Basílio, por Pedro Saavedra, e de passagens de A Cidade e as Serras, por Mónica Lisboa, cônsul-geral de Portugal em Paris, ocupando atualmente o último posto diplomático de Eça de Queiroz. “Vivos porque os lemos de facto, por oposição a termos lido por obrigação escolar, por oposição a serem um vago nome de rua ou de jardim”, disse o Presidente da República, para quem “não é suficiente enterrar os mortos e cuidar dos vivos”. “A maior homenagem a Eça será sem dúvida reeditá-lo, estudá-lo e, acima de tudo, lê-lo”, mas “há atos de justiça, como esta trasladação, mesmo não conhecendo as vontades do escritor sobre a matéria”.

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“Neste Panteão Nacional, repousam alguns dos nossos maiores políticos, escritores, artistas e desportistas. Não todos, nem todos da mesma grandeza, mas certamente importantes ou estimados em determinada época. E a maioria deles estimados e importantes ainda hoje. É um lugar dos imortais”, disse Marcelo Rebelo de Sousa, destacando “o génio de um retrato”, a “lucidez de um reparo”, o “à vontade com os debates intelectuais”, o “patriotismo descontente”, “o pessimismo distanciado” e, parafraseando uma frase do escritor, “o véu diáfano da vontade sobre a nudez crua da verdade”. Quanto à natureza da trasladação, Marcelo recordou Agustina Bessa-Luís que por ocasião do centenário do nascimento do escritor pediu então: “não o comemorem com lengalengas e teatradas, leiam-no mas não se metam com ele”. O Presidente da República, a quem coube o último discurso da cerimónia, repetiu as declarações feitas aquando das celebrações de Luís de Camões: “nunca haverá uma maneira certa de comemorar Eça”, pois “todas as comemorações ficam aquém, são de algum modo desajustadas”. “As verdadeiras homenagens são feitas pelos milhões de leitores, que todos somos, que muitos são por todo o mundo, nomeadamente pelo Brasil. Esta é uma homenagem dos portugueses através dos seus representantes, não é um ato de somenos, antes um justo reconhecimento”.

Coube a Isabel Pires de Lima, também especialista na obra de Eça de Queiroz, ler o último excerto d’Os Maias a partir do varandim. A antiga Ministra da Cultura do primeiro governo de José Sócrates — e, desde o início do mês, Presidente da Fundação de Serralves — descreve ao Observador um “momento emotivo” numa cerimónia que “pecou por tardia, devia ter sido feita há 100 anos, ou até mais”. Ainda assim, sublinha: “é sempre um momento relevante quando alguém da área das artes, humanidades e literatura acede ao estatuto de herói”.

Em cima: Aguiar-Branco Marcelo e Montenegro assinam o termo de sepultura do Panteão Nacional. Em baixo: a bandeira nacional que cubria a urna foi entregue à família pelo Presidente da República.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O Presidente da República, o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro assinaram o Termo de Sepultura do Panteão Nacional e a urna foi transportada pelos militares da Guarda Nacional Republicana até à sala onde ficará depositada. Regressados à nave central do Panteão Nacional, os militares entregaram a bandeira nacional ao Presidente da República que, por sua vez, a ofertou à família de Eça. Os restos mortais do escritor permanecerão agora na sala onde fica a Arca Tumular, que, aliás, vai inaugurar.

“Normalmente esforçamo-nos para encontrar atualidade e alguns paralelismos nas palavras dos antigos. Com Eça, temos de nos esforçar para não a encontrar”, apontara momentos antes José Pedro Aguiar-Branco no seu discurso. Eça, lembrou, “fala-nos de elites fascinadas com o estrangeiro e tantas vezes desligadas das vivências nacionais (…), de jovens decididos a revolucionar o mundo que caem na resignação e no cinismo. Fala-nos de burocracias que desesperam até os mais pacientes e de políticos que lidam mal com as farpas da imprensa.”

Finda a cerimónia, primeiro-ministro e Presidente da República abandonaram a Igreja de Santa Engrácia sem declarações aos jornalistas. A chuva continuou a cair em Lisboa.

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