“Há carros que fazem um barulho alto, parecem aviões, e eu estou sempre a tentar perceber o que é. Quando vejo que é mesmo um carro sinto aquele alívio, mas ligeiro”.
Passou um mês desde que os primeiros civis foram retirados de Azovstal, mas a viagem de Tatiana Trotsak até um lugar seguro está longe de ter acabado. Nos pesadelos, ela e o marido, Igor, continuam a viver dentro de um bunker escuro — de onde só saem quando acordam agitados e acendem a luz do quarto que agora partilham com o pai e a mãe de Tatiana — Serhiy e Elina Sebuiylshenko. Estão neste momento em Bukolev, Ivano Frankivsk, a mais de 1200 quilómetros de Mariupol, de onde fugiram.
Yevhenia, 70 anos, e Vika, 15 anos, também estão a viver num quarto, mas em Kiev. Apanharam um dos autocarros da ONU que ligou Azovstal a Zaporíjia a meio do percurso, porque a aldeia onde viviam, Vusokoie, na região de Vasilivka, estava já cercada pelos russos e o presidente da junta conseguiu-lhes uns lugares. Avó e bisneta vivem apenas com um abono de família de 159 euros — 5000 hryvnia —, a que subtraem 63 euros de renda do quarto onde passam o dia todo. A reforma de 4300 hryvnia seria uma grande ajuda, mas Yevhenia só a poderia levantar com a carta que recebe todos os meses na morada da aldeia que deixou para trás.
Yevhenia Vachshirivna não tem dúvidas de que a neta, Vika Andriiva, está já num “estado depressivo” e a descrição que faz da rotina de ambas diz tudo.
“Não fazemos nada, não podemos comprar nada. Comemos, saímos à rua, andamos à volta do prédio e pronto. E ficamos aqui, sentadas, consegue imaginar? Eu tinha um quintal de 130 metros quadrados e agora estou aqui, num quarto de um 4.º andar, qual acha que é o meu estado?”
O Observador cruzou-se com estas duas famílias a 3 de maio, em Zaporíjia, na Ucrânia, quando chegaram a território controlado pela Ucrânia um total de 127 pessoas, que haviam saído da fábrica de aço no dia 1 e que tiveram uma paragem forçada pelo caminho. Um mês depois contam, agora por telefone, onde estão, com quem e como têm vivido.
30 dias depois de sair do bunker de Azovstal
O falso descanso após dois meses de escuridão
Depois da longa viagem entre Mariupol e Zaporíjia, que terminou no dia 3 de maio num parque de estacionamento de uma grande superfície comercial junto às tendas da ONU e da Cruz Vermelha, a família de Tatiana ficou uns dias pela cidade. “No dia 6 de maio viemos para Bukovel num autocarro da Cruz Vermelha. Os voluntários foram incríveis, tentavam que tivéssemos tudo, às vezes nem precisávamos de pedir e eles percebiam”.
Ao chegar à localidade onde vive há quase um mês, o grupo com quem viajava foi distribuído por vários locais. “Houve quem fosse colocado em pequenas casas e quem ficasse em centros de acolhimento, como nós — somos uma família de quatro pessoas e vivemos todos juntos num quarto”. Mais propriamente num dos quartos de um prédio de quatro andares (são cerca de seis quartos por piso) que tem uma cama de casal e um sofá cama para duas pessoas.
Até agora Igor, Tania e os pais ainda não tiveram tempo nem disposição para pensar em arranjar um trabalho, até porque não sabem onde se vão fixar quando esta nuvem que têm na cabeça passar.
Olham para o que estão a viver como uma espécie de “descanso” depois do que viveram em Mariupol. Um falso descanso, porque ainda não conseguiram desligar: “Estamos sempre a ver as notícias da nossa cidade, as notícias daquilo que está a acontecer na Ucrânia. Se for a pensar bem, não existe um descanso, o cérebro não consegue desligar e passar para um estado positivo. Nós tentamos e as pessoas à nossa volta também tentam, mas os pensamentos permanecem”.
É de Mariupol que vêm os pesadelos à noite e não só, a escuridão total ainda assusta: “Acendemos a luz e apenas depois de nos orientarmos é que compreendemos que não estamos lá, que estamos seguros”.
“Nós estamos todos traumatizados”
São muitas as coisas que agora fazem confusão: os carros que fazem muito barulho, as sirenes e outros sons. Tatiana tem perfeita noção de que isso acontece porque ficaram marcas duras dos 60 dias que passou dentro de Azovstal.
“Estamos todos traumatizados. Eu sofri contusões, o meu marido e os meus pais também. Havia momentos em que tentávamos sair, vir à superfície, e caía uma bomba, isso ensurdecia-nos completamente, depois era a dor de cabeça, as tonturas, era isso tudo…”, conta, explicando que quem esteve fora dos bunkers ainda sofreu mais: “O filho de um amigo do meu chefe, por exemplo, estava já num local seguro e assim que ouviu um som que associou a um rebentamento atirou-se para o chão e enrolou-se em posição de defesa. Uma criança…”
Mas antes de se entregar ao tratamento psicológico, a família acha melhor digerir tudo o que está a acontecer. A eles, à Azovstal (Tatiana era a sétima geração da família a trabalhar lá — os primeiros ajudaram a construir a fábrica) e ao país: “Existe aquele momento em que a pessoa não quer falar sobre nada e que não quer ou não consegue ultrapassar o que está a viver, ninguém a consegue ajudar”. É nesse ponto que estão, diz.
Não são só as notícias que os mantêm ligados. As redes sociais e a internet no geral também não ajudam a virar a página. Já encontraram fotos do bairro onde viviam, a poucos quilómetros da Azovstal, no Telegram — “Não restou nada, os apartamentos ficaram todos queimados no interior, estão todos destruídos e cheios de buracos” — e continuam a falar com quem tem ligações a Mariupol. Um amigo, por exemplo, que foi ao bairro de Tatiana e Igor antes de abandonar a cidade descreve um cenário de horror: “Diz que o nosso bairro é o mais destruído, que sentiu um forte cheiro de cadáveres. Em vez de um prédio, há é um pavilhão de 5 andares vazios. Não existe nada no interior, não existe chão, nem paredes”.
E não foi só a casa de Igor e Tatiana que ficou totalmente destruída. A dos pais dela também. Depois de recentemente terem ali investido muito dinheiro para remodelar os apartamentos, agora a família tem poucos recursos para se orientar nesta nova fase. “Em 2020, eu e o meu marido fizemos obras totais no nosso apartamento. E um ano depois foram os meus pais a fazê-lo”, conta esta engenheira de 25 anos ao Observador, garantindo que praticamente todo o dinheiro que tinham foi usado para pagar as empreitadas.
Só as avós e um sonho prendem a família a Mariupol
O que os prende agora a Mariupol são apenas as avós de Igor e Tatiana e o sonho de um regresso, que só acontecerá se a Ucrânia voltar a ganhar o controlo da região.
Tatiana continua a falar quase todos os dias com os que deixaram a fábrica rumo a território controlado pela Ucrânia, mas perdeu o contacto com os que escolheram o lado do inimigo. Do seu bunker, onde estavam 56 pessoas, foram retiradas consigo 14 pessoas — sete acompanharam-na até Zaporíjia, uma família optou por ir para a Rússia e outros quiseram manter-se por Mariupol.
Aos que foram para a Rússia, a família de Tatiana perdeu o rasto. “Não querendo ser rude, mas eu não quero saber o que se passa com as pessoas que escolheram aquele lado, o lado do ocupante, o lado do país que destruiu as nossas vidas. Não tenho interesse em saber o destino deles. Desculpem-me a arrogância”.
As únicas pessoas, dos que lá ficaram por querer, com quem fala é com a avó e com a avó do marido, que nem sequer estão bem na cidade. “A minha avó vivia em Mariupol, mas ficou numa aldeia próxima à cidade, a uns 20 minutos de carro. Já a avó do meu marido também ficou numa aldeia perto de Mariupol, mas não tão perto como a minha. A avó do Igor tem até uma história interessante, porque nasceu na Rússia e apaixonou-se pelo marido, que era de Mariupol, e ele acabou por trazê-la para a sua pátria”.
A “ucraniana patriótica” que diz que os russos são bons
Para falarem com a avó de Tatiana, a família liga para um telemóvel de uma vizinha. E essa será a principal explicação para a idosa dizer sempre que está tudo bem, conta a antiga engenheira da Azovstal ao Observador.
“Diz que os russos são boas pessoas. Acho que ela diz isso, porque a vizinha que lhe empresta o telemóvel está a ouvir tudo. Talvez a avó não queira ou não possa contar a verdade com ela ao lado. Até porque ela sempre foi a nossa ucraniana, uma patriota. Provavelmente, por segurança, ela adaptou-se, tendo em conta que tem outras pessoas junto a ela”.
É algo comum, conta ao Observador. A família diz conhecer outros casos de pessoas que, apesar de não concordarem com o que se está a passar, elogiam os russos para poderem continuar a viver, a ter acesso a comida, água e bens.
A muitos quilómetros de casa, já sem correrem risco de vida, os problemas de Igor e de Tatiana começam já a ser outros: o medo do futuro. Sempre gostaram de saber com o que contar ao fim do mês, de saber que têm estabilidade. E, por isso, a lógica de viver o presente e não o futuro, como lhes pediu um psicólogo logo após a saída de Azovstal, não tem sido fácil.
A partir de Bukovel, Tatiana confessa ter agora momentos em que vai abaixo, em que não consegue manter o otimismo com que chegou ao estacionamento do Epicentr, há precisamente um mês. “Emocionalmente, é muito difícil para mim compreender e aceitar essa forma de viver. Eu quero o máximo de estabilidade possível no país, porque se isso acontecer, eu também estarei estável. E quando essa estabilidade voltar…[suspira] a vida continuará, mas vai ser preciso recomeçar tudo do zero”, diz, não escondendo uma desilusão na voz que contrasta com a última mensagem: “Ainda assim estou muito feliz, porque sobrevivemos e fugimos para a Ucrânia”.
Uma fuga à morte à boleia do autocarro da ONU
“Eles andavam já no quintal e a menina tem apenas 15 anos”
Antes da guerra, Yevhenia Vachshirivna perdeu muita gente. Tanta que a única família que lhe sobra é o filho, que está a combater, e Vika, a bisneta de 15 anos que cedo ficou ao seu cuidado. Agora, aos 70 anos, preferiu perder tudo o que conquistou na vida para não perder mais ninguém.
A neta, mãe de Vika, morreu há 3 anos, depois de ter adoecido; e a única filha de Yevhenia havia morrido antes disso ainda. Quando Vika ficou sem mãe o pai tinha também acabado de morrer, ainda que pouco saiba sobre as causas, dado que na altura já estavam separados. Quando tudo parecia já não poder piorar, Yevhenia perdeu o marido — “faz agora 2 anos”.
Foi por isso que quando se apercebeu que os russos dominavam já a sua aldeia nem pensou duas vezes em sair. “Deixei tudo e fugi. Eles já estavam a começar a cavar trincheiras no meu quintal. Estavam a começar a preparar a segunda linha de defesa, os soldados andavam de um lado para o outro e, afinal de contas, a minha menina tem apenas 15 anos, tive medo de ficar”.
Aproveitando a passagem dos autocarros da ONU que vinham da Azovstal, a reformada de 70 anos — antiga funcionária dos caminhos de ferro, em Kherson — conseguiu dois lugares para viajar de Vasilivka até Zaporíjia. Com uma ajuda preciosa: “O presidente da junta é que parou o autocarro para que eu e a minha neta fossemos retiradas, foi assim que saímos. Graças a Deus, eu não estive em Azovstal”.
O quarto bom e barato num bairro da capital e a depressão
A viagem maior começou depois de Zaporíjia e acabou num quarto perdido em Kiev — nem elas sabem bem onde vivem agora. “Lá eu não tinha onde viver, então viemos para Kiev. Nas primeiras duas semanas, a Igreja recebeu-nos e deu-nos alojamento”.
Depois disso, assim que recebeu o abono de família de Vika, decidiu ir à procura de um quarto na internet, porque, apesar da exceção que lhe abriram nos primeiros dias, não era suposto terem um quarto da igreja só para as duas.
“É com esse dinheiro que me tenho aguentado, porque ainda não consegui receber a reforma dos últimos 2 meses. O vale foi para a minha caixa de correio, na aldeia. Já tentei falar com os correios — Ukraposhta — para eles enviarem para mim, mas nada feito. Ninguém faz nada. A única coisa que consegui é a partir de junho passar a receber a reforma na minha conta bancária, mas o valor do mês de abril e maio ficou na aldeia”. E, sem esse valor, o que sobra, depois de pagar o quarto, não chega a 100 euros.
Desde que chegaram a Kiev a rotina é o principal problema. O medo de Yevhenia é, agora, o de perder a neta para uma depressão. “Está a ficar depressiva, por tudo o que está a acontecer. Ela não conhece ninguém e é uma adolescente. Fica sentada no quarto o dia todo. Eu não tenho possibilidades para lhe comprar nada. É tudo acumulado, ela nem roupa tem, está nua e descalça [expressão ucraniana, que significa que a pessoa não tem roupa]. E na ajuda humanitária não há roupa que a menina consiga aproveitar — ou é pequeno, ou é grande, ou é velho…”
“Não fazemos nada aqui. Sei que estão lá os russos, mas prefiro voltar”
O bairro de Kiev — que a reformada apenas sabe que se chama Lisovyi Masyv — parece-lhe bom, sobretudo tendo em conta o preço que paga pelo quarto, mas Vika queixa-se de quase tudo. “Quero muito regressar a casa. Não estou habituada a isto. Eu quero voltar, não tenho outros planos”, conta ao Observador, descrevendo como é o seu dia-a-dia no bairro da capital.
“Hoje acordei, almocei, fomos ao supermercado, regressámos a casa e pronto. E, em geral, os meus dias são assim. Não fazemos praticamente nada. A avó fica sentada a ver televisão e eu no telemóvel. Nem sequer penso em começar uma vida nova em Kiev”, conta Vika.
A adolescente está ciente de tudo, dos riscos de ficar e dos que vai correr num possível regresso: “Eu tenho noção que estão lá os russos, mas quero regressar. Já estivemos sob ocupação durante um mês, tornou-se hábito”.
As emoções que sentiu quando fugiu estão a escapar-lhe — lembra-se ainda do “’Yey’ saímos do território ocupado!” que gritou por dentro quando chegou ao estacionamento do Epicentr, em Zaporíjia, mas a vida que leva agora, privada de amigos, também não é boa. Quando se pergunta diretamente se voltaria, caso os russos permitissem a entrada na aldeia, ainda diz que teria sempre de avaliar antes do regresso. Até porque nos últimos dias perdeu o contacto com os amigos que lá deixou, depois de o sinal ter sido cortado de um dia para o outro.
Yevhenia já não consegue falar com as vizinhas. “Está tudo em baixo”
Yevhenia também não consegue falar com quem ficou desde segunda-feira, mas até onde soube a sua casa continua inteira. “Até este momento a casa está bem e ninguém a ocupou. Sei que os russos se alojaram nas casas vazias no início e no final da aldeia. Ao pé da estrada, sobretudo, passa imenso equipamento, porque é uma ligação entre Melitopol e Zaporíjia. Os bombardeamentos foram todos mais próximos de Vasilivka. E quando acontecem, contam-me, a estrada até treme. Agora nem é possível sair de lá”.
Mas isso era o que sabia até a aldeia ficar sem comunicações. “Está tudo em baixo e agora não tenho contacto com ninguém. Até ontem [segunda-feira] sabia que eles tinham luz e água, mas entretanto ficou tudo sem sinal e já não sei como eles estão, não há serviço nem internet. Eu ligava frequentemente às minhas amigas e vizinhas — falávamos de manhã e à noite”, conta.
Tudo isso vai reforçando a ideia de que fez o certo, de que fez bem em sair naquela altura — ainda que a vida da aldeia não lhe saia nem por um segundo da cabeça. “Ter de deixar tudo, deixar a casa, a horta, o jardim. Está tudo a crescer e a florescer e eu abandonei tudo. Como é que eu posso sentir-me? A minha neta está com uma depressão. Não tenho ninguém aqui comigo, são todos desconhecidos. Eu própria não sei como sobrevivo”, diz, caindo num choro que não consegue travar.