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A “marcha de justiça” de Yevgeny Prigozhin até Moscovo chegou ao fim pouco mais de 24 horas — ainda que tumultuosas — depois de ter começado. Para “evitar um banho de sangue”, assim o definiu o próprio líder do grupo Wagner, os seus combatentes recuaram quando se encontravam a cerca de 200 quilómetros da capital russa, mas o futuro de Prigozhin e da sua companhia privada apresenta-se agora muito incerto.
Como parte de um acordo mediado com o Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, o líder do grupo Wagner conseguiu ver aceites três exigências: o caso aberto pela procuradoria-geral russa contra si vai cair, os seus combatentes que participaram na insurreição terão imunidade legal e o parlamento russo irá discutir a situação da companhia militar privada. No entanto, e apesar de o Kremlin ter admitido mudanças nas chefias militares russas, mantém-se no cargo o ministro da Defesa e grande adversário de Prigozhin, que se vê agora afastado da Rússia e enviado para a Bielorrússia.
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Nesta mudança Diana Soller, especialista em assuntos internacionais, vê uma espécie de exílio. “É uma forma de tirar Prigozhin da Rússia e, ao mesmo tempo, mantê-lo controlado pelos homens de mão de Lukashenko — um dos líderes internacionais de maior confiança de Putin”, refere em declarações ao Observador. Para já não é claro qual será o papel de Prigozhin no país vizinho nem qual será o papel da sua companhia privada, que deverá manter-se para já afastada dos combates da Ucrânia, numa altura em que já se tinha retirado da cidade de Bakhmut, onde manteve operações durante vários meses.
Futuro de Prigozhin é incerto, mas Putin ainda poderá ter “planos” que o contemplam
Ao final da noite de sábado o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, anunciou que Yevgeny Prigozhin tinha concordado partir para a Bielorrússia como parte de um acordo para pôr fim à revolta armada. Na declaração era referido que a segurança pessoal do líder do grupo Wagner fora assegurada tanto pelo Presidente russo, como pelo bielorrusso. Desde então Prigozhin remeteu-se para uma postura silenciosa, muito diferente da que assumiu em mais de um ano de guerra na Ucrânia, em que se tornou hábito publicar comentários diários através da conta de Telegram.
Não é claro onde se encontra o empresário que durante vários anos foi conhecido como “o cozinheiro de Putin” — por ser habitual o Presidente russo levar chefes de Estado a jantar nos seus restaurantes. Foi visto pela última vez à saída da cidade de Rostov on Don, onde os seus mercenários ocuparam temporariamente um quartel general, e desde então há muitas perguntas por responder sobre o seu futuro, nomeadamente se irá partir da Rússia sozinho ou acompanhado. “Não sabemos quem exatamente é que se está a mudar para a Bielorrússia. É só Prigozhin e a sua equipa de segurança ou uma parte considerável do seu exército?”, questionou o analista Artyom Shraibman, membro do think tank Carnegie Russia Eurasia Center em entrevista ao jornal The Guardian. “Assumo que não será o seu exército, que seria uma ameaça para Lukashenko. Ele não iria tolerar mercenários imprevisíveis no seu território”, acrescentou.
Conhecido por dar nas vistas e muitas vezes falar sem filtros — desde o início da invasão da Ucrânia tem sido imparável nas críticas à liderança russa –, Prigozhin pode não se contentar em permanecer durante um longo período de tempo na Bielorrússia. A própria notícia da sua partida foi avançada sem data de retorno, mas alguns analistas creem que esta não é a sua única opção. “Poderá permanecer ad eternum na Bielorrússia, mas Putin também pode ter planos para ele”, aponta Diana Soller, referindo-se à possibilidade de o líder russo ainda acreditar que Prigozhin pode ter utilidade na Ucrânia.
A especialista em relações internacionais deixa claro que ainda há muitas “ponta soltas” por atar, mas que Prigozhin saiu relativamente incólume do confronto com a liderança militar russa. Apesar da cedência em abandonar o território russo, o líder dos Wagner conseguiu escapar sem grandes consequências face ao ato de rebelião, punido com até 20 anos de prisão segundo a lei russa. “Ainda que o exílio seja uma pena pesada, ele não foi destituído dos bens, aparentemente, e continua em liberdade. E tudo isto tendo em conta o discurso que Putin fez na manhã seguinte à insurreição, com palavras muito duras e com promessas de castigos muito severos que acabaram por não se verificar”, sublinhou.
Há quem pense por outro lado que, mesmo afastado, na Bielorrússia, Prigozhin continue a ser considerado um incómodo para o regime russo. A insurreição do empresário foi vista amplamente como um “desafio direto” ao Presidente russo, como o descreveu inclusivamente o secretário de Estado norte-americano, e mostrou um regime russo mais frágil, em que Putin parece já não ser um líder absolutamente incontestado. Assim, mesmo a centenas de quilómetros do Kremlin, o líder dos Wagner pode não dormir completamente descansado. “Prigozhin pode estar preocupado quanto a beber um copo de chá que não esteja a ser controlado por ele. Não acho que ele esteja seguro em qualquer lado”, disse ainda analista Artyom Shraibman.
A maior parte dos especialistas internacionais não parece pensar, porém, que este seja o fim da linha para Prigozhin, acreditando que é possível que dê a volta por cima e volte a ser uma figura com alguma importância. Se na Rússia ou no exterior, uma vez que os seus mercenários têm uma forte presença em África ou no Médio Oriente, ainda é uma incógnita. Para já o seu destino está em “standby“, sublinha Diana Soller: “Depende um pouco de como correr a vida de Putin. Os destinos destes dois homens acabam por estar agora muito ligados”.
O que se segue para o grupo Wagner?
Numa fase inicial poucos arriscam fazer previsões sobre o futuro do grupo Wagner, que tem uma rede de operações que se estende em vários continentes. “Há mais questões do que respostas”, admite Rob Lee, que acompanha há mais de um ano a evolução da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Numa série de publicações no Twitter, o analista do Foreign Policy Research Institute apontou, no entanto, que lhe parece claro que “a anterior relação entre o Kremlin e o grupo Wagner acabou”.
O conflito entre o líder do grupo Wagner e as chefias militares russas é bem conhecido. Yevgeny Prigozhin nunca escondeu e foi na verdade bastante vocal nas críticas dirigidas em particular ao ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e ao Chefe do Estado-maior, Valery Gerasimov, mas sempre pareceu moderar o tom quando o tema era o Presidente russo. Este sábado, porém, enquanto os seus combatentes marchavam em direção a Moscovo, sublinhava que “no que diz respeito à traição à pátria, o Presidente se enganou profundamente”.
Um dos principais motivos apontados para Prigozhin ter avançado com a insurreição foi a tentativa do Ministério de Defesa russo para integrar o grupo Wagner nas forças regulares russas. Em vez de correr o risco de perder totalmente o controlo sobre a companhia privada que fundou em 2014, “terá decidido arriscar usar as suas forças numa tentativa de mudar a liderança do Ministério da Defesa”, aponta o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês). A tentativa terá mesmo sido planeada com alguma antecedência, considera o think tank norte-americano, remetendo para a coordenação e velocidade durante os movimentos observados na insurreição, que o Presidente russo descreveu como “traiçoeira”.
Para o ISW, o acordo mediado pelo Presidente bielorrusso para fazer recuar o motim “deverá eliminar o grupo Wagner como um ator independente liderado por Prigozhin na sua forma atual”, apesar de admitir que alguns elementos da organização possam perdurar. “O acordo mediado por Lukashenko retira notavelmente Prigozhin do controlo do grupo Wagner em troca de deixar cair as acusações criminais de rebelião e traição. O acordo, se executado como Peskov o anunciou, subordina uma parte do grupo Wagner ao Ministério da Defesa russo, como o ministro Shoigu sempre desejou”, refere o mais recente relatório do think tank.
De facto, quando o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov anunciou no sábado os termos do acordo entre Lukashenko e Prigozhin, revelou também que àqueles que não se juntaram na marcha sobre Moscovo será oferecido um contrato com o Ministério da Defesa russo. Não é claro se esses elementos estão interessados em juntar-se às forças regulares russas, nem de que modo estas iriam agir confrontadas com a integração de ex-mercenários. A questão maior coloca-se quanto ao futuro dos combatentes de Prigozhin que apoiaram a insurreição e sobre os quais se sabe apenas que vão receber um perdão.
Para este último grupo, o think tank norte-americano prevê quatro possíveis cenários: podem acabar por assinar contratos com o Ministério da Defesa a título pessoal; desmobilizar na Rússia, viajar para a Bielorrússia; ou ser mobilizados para o exterior e apoiar as operações que o grupo Wagner mantinha em África ou no Médio Oriente.
Sobre o futuro dos restantes, a clareza não é maior. O grupo Wagner é uma “companhia de combate independente” com diferentes condições do exército russo, destacou em declarações à CNN um major reformado do exército norte-americano. “Talvez alguns se dispersem. São leais a Prigozhin, não ao país, não à missão”, apontou Mike Lyons. Os últimos meses em que o grupo Wagner combateu na Ucrânia são a prova disso, com vários soldados, incluindo alguns recrutados diretamente nas prisões russas, a mostrarem-se disponíveis para regressar à linha da frente mesmo depois de acabarem os contratos. “É o grupo Wagner ou nada”, sublinhou um antigo comandante do grupo Wagner ao The Guardian, defendendo que os soldados não lutariam pelo exército russo.
Sobre o futuro da companhia militar privada, Diana Soller vê dois cenários que deverão decorrer em paralelo. Por um lado, as operações na Ucrânia tenderão a desaparecer — pelo menos para já — e, por outro lado, poderão vir a ter um desempenho e presença superior em países onde já mantinham ações, muitos deles com historial de guerras e violência. “Diria que o grupo Wagner se vai manter, não sabemos é se com Prigozhin à frente ou com outra pessoa. Não se desmantela um grupo desta natureza de um momento para o outro”, defende.
Se existir veracidade nas contas de Prigozhin, trata-se de um grupo com cerca de 25 mil homens. Foi este o número que garantiu que comandava quando começou a marcha sobre Moscovo. A posição dos combatentes do Wagner é neste momento incerta e é sabido apenas que depois dos acontecimentos de sábado já abandonaram Rostov on Don, onde juntamente com Prigozhin chegaram a ser aplaudidos. Também foram vistos a partir de Voronezh e de Lipetsk, regiões onde tinham estabelecido posições ao longo das últimas 24 horas.
#Wagner mercenaries continue to leave the territory of the #Voronezh region. pic.twitter.com/kAHwkY0OsH
— NEXTA (@nexta_tv) June 25, 2023
Maus resultados russos na Ucrânia? Um paradoxo para Prigozhin
A curta insurreição encabeçada por Yevgeny Prigozhin surge numa altura em que os combates na Ucrânia prosseguem de forma lenta. As tropas de Kiev lançaram a tão aguardada contraofensiva para libertar os territórios sob ocupação, mas o progresso não tem sido o esperado. “Algumas pessoas querem algo como num filme de Hollywood, mas as coisas não acontecem dessa maneira“, avisou o Presidente Volodymyr Zelensky numa entrevista recente à BBC, reconhecendo que o progresso da contraofensiva estava a ser “mais lento do que o desejado”.
Depois de celebrar vitória na recuperação de várias pequenas povoações na região de Donetsk e Zaporíjia na primeira semana da contraofensiva, Kiev remete-se a uma posição mais cautelosa, enquanto ainda se aguarda a chegada ao campo de batalha da maior parte das novas brigadas armadas com equipamentos modernos e treinadas ao longo de vários meses pelos Estados Unidos e aliados da NATO. O próprio coronel-general Oleksandr Syrskyi, que comanda as unidades terrestre ucranianas, admitiu que as forças principais ainda não estão envolvidas nos combates.
Na sequência da ação armada de Prigozhin, a guerra na Ucrânia ganhou uma nova dimensão para o Kremlin. “Uma vitória no terreno é a única fonte de legitimação que Putin pode ter agora, especialmente numa sociedade que vive da glorificação da guerra e do patriotismo. Depois de um episódio destes é natural que líderes como Putin procurem um momento que lhes retribua uma certa aura de invencibilidade”, aponta a especialista em relações internacionais Diana Soller.
Também para o líder dos Wagner a evolução da guerra na Ucrânia ganhou uma nova importância, ainda que de forma paradoxal. Na perspetiva da analista, os maus resultados russos no evoluir do conflito podem significar a reintegração de Prigozhin e dos seus combatentes no terreno. Por outro lado, o empresário também se pode tornar um “bode expiatório” caso os combates comecem a desfavorecer significativamente as tropas russas.
Na rebelião dos Wagner, Kiev viu uma “janela de oportunidade” para agir, com as autoridades ucranianas a anunciar no sábado avanços em várias direções da frente leste. Segundo a vice-ministra da Defesa, Hanna Maliar, a ofensiva dirigiu-se simultaneamente para várias áreas, inclusive em direção à cidade de Bakhmut, enquanto do lado russo prosseguiam intensos bombardeamentos contra as tropas ucranianas. No mesmo dia o próprio Ministério da Defesa russo emitiu uma nota a acusar a Ucrânia de se “aproveitar da provocação de Prigozhin para desorganizar a situação” em Bakhmut. Acusando o regime de Kiev de empreender operações ofensivas, ressalvou, contudo, que o “inimigo foi derrotado com ataques aéreos e de artilharia”.
Neste momento é no eixo de Velyka Novosilka (região de Donetsk) que as tropas ucranianas alcançaram os resultados mais notórios, sendo esta a direção que as autoridades partilharam sucessos na libertação de várias pequenas povoações nas últimas duas semanas. Começaram por seguir pela localidade de Neskuchne e depois para Blahodatne, prosseguindo para Makarivka — agora todas nas mãos das forças ucranianas — num percurso que parece avançar, ainda que lentamente, rio a baixo, a caminho da cidade, sob ocupação, de Mariupol.
Também têm sido registados progressos na região de Zaporíjia, perto da cidade de Orikhiv, que na sexta-feira foi bombardeada pelas forças russas num ataque que destruiu duas casas e danificou mais de 30 edifícios. Não muito longe, somam-se relatos de intensos combates em Mala Tokmachka. Este setor é especialmente relevante na estratégia ucraniana, porque fica a cerca de 32 quilómetros a norte da cidade estratégica de Tokmak — no corredor principal para a cidade de Melitopol (que está ocupada). Se os ucranianos conseguirem ultrapassar os campos minados em Mala Tokmachka e alcançarem Tokmak e de seguida Melitopol, terão uma hipótese de dividir ao meio as forças russas na Ucrânia.
Ultrapassada a insurreição, Moscovo prossegue o esforço para continuar a defesa das posições construídas ao longo dos últimos meses, enquanto Kiev se mantém irredutível na tarefa de expulsar os russos dos cerca de 20% de território que ocupam. As dificuldades já eram antecipadas e as condições no campo de batalha são agora mais desafiantes. Os sistemas de trincheiras, fossos e campos minados que a Rússia construiu ao longo de vários meses, garantem que a Ucrânia não terá uma tarefa fácil. Já o terreno plano, com pouca cobertura na frente sudoeste também cria problemas, deixando os ucranianos expostos a ataques russos.
As linhas de defesa russas estendem-se por centenas de quilómetros. Isso inclui, por exemplo, uma extensa zona de defesa de 9 quilómetros de comprimento a norte da cidade de Armyansk, na estreita ponte terrestre que liga a Crimeia à região de Kherson, como mostram imagens do Ministério da Defesa britânico.
Russian Defensive Positions North of Armyansk: Area in Detail. pic.twitter.com/nsCFIuNU67
— Ministry of Defence ???????? (@DefenceHQ) June 21, 2023
Esta tem sido a grande aposta da Rússia, que não parou de construir novas linhas de defesa. Mapas divulgados esta semana pelo analista Brady Africk, especialista do Foreign and Defense Policy Studies, mostram como entre o mês de maio e junho as tropas russas foram estabelecendo novas fortificações perto de cidades como Semyhiria (Donetsk), Kreminna (Lugansk) e Andriivka (Zaporíjia).
In Zaporizhzhia Oblast, Russian forces built new defenses outside Andriivka.
These positions intersect the T0815 highway which leads further south in Russian-occupied Ukraine. (4/5) pic.twitter.com/7sBIHoj8Im
— Brady Africk (@bradyafr) June 22, 2023
Estas fortificações “representam um grande desafio tático para as operações ofensivas ucranianas”, sublinha o think tank United Services Institute (RUSI) num relatório recente. Apesar dos obstáculos, alguns analistas apontam que as defesas russas não são impenetráveis, mostrando-se confiantes nas capacidades das tropas de Kiev para as superar. É o caso de Mark Krammer, membro do Davis Center for Russian and Eurasian Studies na Universidade de Harvard, que ao Observador refere que as unidades de explosivos e as unidades blindadas ucranianas estão a preparar-se há meses para atacar essas posições com uma variedade de técnicas. O objetivo, explica, é abrir brechas e depois ampliá-las: “Vão certamente tentar cercar e destruir os ocupantes russos”.
Com o grupo Wagner agora aparentemente à margem — já se tinham retirado das posições em Bakhmut há várias semanas –, o desafio pode aumentar para a Rússia. Foi na verdade esta força que conseguiu trazer a maior vitória ao Kremlin em meses de intensos combates na Ucrânia, precisamente em Bakhmut. Resta saber como vão prosseguir agora os combates, numa altura em que a sua presença no território ucraniano pode deixar de existir.