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A cimeira dos BRICS, a primeira presencial desde a pandemia de Covid-19, arranca esta terça-feira na África do Sul e a ausência do Presidente russo, sob o qual pende um mandado de detenção internacional por crimes de guerra na Ucrânia, promete não passar despercebida. Na verdade já está a dar que falar, com o chefe de Estado do Brasil a assumir que desejava discutir pessoalmente a paz mundial com Vladimir Putin, no contexto de mais de um ano de guerra na Ucrânia.
O governo sul-africano ainda tentou contornar o obstáculo imposto em março pelo Tribunal Penal Internacional, mas à falta de garantias suficientes Putin decidiu não arriscar aparecer no evento onde vão estar presentes mais de 60 líderes de países da África, América Latina, Ásia e várias dezenas de altas individualidades, incluindo o secretário-geral das Nações Unidas. Na cimeira, em que a diplomacia russa se vê representada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, o Presidente russo sai claramente fragilizado, segundo defendem especialistas ouvidos pelo Observador. Este era um encontro que o líder russo não queria perder, especialmente num contexto de discussão de um possível alargamento a novos membros — que não é de todo consensual entre os parceiros.
Ausência de Putin é uma “humilhação diplomática”
“Não acho que a minha presença na cimeira dos BRICS seja mais importante do que na Rússia”. Foi com estas palavras, dirigidas aos jornalistas, que o chefe de Estado russo procurou desvalorizar no mês passado a sua ausência no encontro do bloco — que vai juntar em Joanesburgo os Presidentes da África do Sul, Cyril Ramaphosa, da China, Xi Jinping, do Brasil, Lula da Silva, e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi.
Ainda houve alguma especulação sobre a possibilidade de o líder russo participar presencialmente na cimeira, como estava planeado antes de o Tribunal Penal Internacional — que tem a África do Sul como um dos signatários — avançar com um mandado de detenção internacional. O governo sul-africano bem tentou dar a volta à situação, publicamente recusou prender Putin, alegando que seria como “convidar um amigo a casa e depois prendê-lo”, e chegou mesmo a anunciar uma saída do TPI que não se concretizou. No entanto, nos bastidores também fez esforços para persuadir o líder russo a evitar a deslocação para evitar problemas, segundo revelaram alguns oficiais sul-africanos. Vladimir Putin preferiu não arriscar e no final do mês passado o Presidente Ramaphosa anunciou que por “acordo mútuo” Putin não estaria presente, com o Kremlin a acrescentar que iria acompanhar a cimeira à distância, numa “participação plena”.
O governo sul-africano até podia estar disposto a contornar as obrigações para com o TPI, mas o mesmo não se podia dizer sobre o sistema judicial. “Putin deu todos os sinais de querer ir, mas neste caso ficou bastante claro que foi forçado a evitá-lo, visto que na África do Sul continua a existir separação de poderes. Os tribunais e muitos ativistas sul africanos tornaram claro que não iam deixar escapar a oportunidade de Putin estar lá para que fosse executado um mandado de detenção”, explica Bruno Cardoso Reis. Para o historiador, isto é um sinal claro de que, mesmo a nível do Sul Global e do BRICS, a Rússia não tem a vida facilitada.
“No fundo é uma humilhação pública. Os BRICS são o palco diplomático ideal para Putin, que ao contrário do G20 não têm potências ocidentais, potências que estão a apoiar a Ucrânia, portanto aqui seria o sítio ideal”, explica. De modo semelhante, Diana Soller, especialista em assuntos internacionais, refere que se trata de uma “ausência de peso”, a ausência de um grande apoiante da organização formalizada em 2009. “É de certa forma uma vitória das instituições que defendem os valores ocidentais e que impediram o líder russo de se deslocar”.
O TPI emitiu em março deste ano um mandado de detenção para a captura de Vladimir Putin por crimes de guerra cometidos no território ucraniano. Face a algumas expectativas da ineficácia desta medida, uma vez que o líder russo pode simplesmente evitar deslocar-se para os países signatários, Bruno Cardoso Reis destaca como foi possível frustrar a intenção do líder russo viajar até à África do Sul. “Pensar o que é aconteceu no caso de uma grande potência como a Rússia, um país com grandes capacidades militares, o maior país do mundo, isto não é completamente irrelevante. Teve consequências. Impediu o Presidente russo de ir a uma cimeira que para ele é politicamente importante. Eu tenderia a ver aqui o copo meio cheio, sobretudo quando as expectativas eram muito baixas e por vezes de total ineficácia”, indica.
Lula da Silva desejava discutir paz pessoalmente com Putin na cimeira dos BRICS
Se o Presidente da Rússia vai estar ausente, ainda que contra a sua vontade, os convidados para a cimeira dos BRICS já começaram a chegar a África do Sul. O chefe de Estado do Brasil aterrou esta segunda-feira à tarde com grandes expectativas para o evento, apesar de ver frustrado o desejo de conversar pessoalmente com o homólogo russo sobre a paz mundial. Foi o próprio Lula da Silva que o admitiu no domingo numa entrevista ao jornal sul-africano Sunday Times. “Lavrov [ministro dos Negócios Estrangeiros russo] é um diplomata muito importante, mas seria essencial que a Rússia participasse desse encontro com o seu presidente. Nós vamos discutir temas globais como a paz e a luta contra a desigualdade e eu gostaria muito de discuti-los pessoalmente com o presidente Putin”, afirmou.
Diana Soller destaca a grande importância destas declarações sobre uma solução de paz, notando que o líder brasileiro nunca se dispôs a falar pessoalmente com o Presidente Volodymyr Zelensky, que já o desafiou a visitar a Ucrânia várias vezes. “Assumiu um posicionamento que, na verdade, já não é novidade, uma posição pró-russa, que Lula mascara como neutralidade, mas que não é“, sublinha, acrescentando que vê nestas palavras uma crítica velada ao TPI, como uma organização que segue os posicionamentos do Ocidente.
A especialista em assuntos internacionais lembra que esta tem sido a posição de Lula desde que foi eleito para um primeiro mandato, em 2002, e que em nada mudou agora que está a cumprir o terceiro. Tudo parte, acrescenta, do facto de privilegiar uma relação com a China e uma eventual ordem chinesa no futuro, em que a Rússia acaba por sair beneficiada. “O Brasil acaba por fazer o papel de grande apoiante da Rússia, embora nunca o diga desta forma e se mostre a favor da paz. Há um alinhamento persistente com as posições chinesas, mas da parte do Brasil isto expressa-se por uma diplomacia pró-russa e anti-americana muito mais vocal do que a chinesa”.
Esta postura, afirma, tem prejudicado particularmente o Brasil no contexto da guerra na Ucrânia e o país acaba por estar “cada vez mais isolado” no panorama internacional. “Tem uma posição particularmente singular. Mesmo países que aparentemente assumiam uma postura mais próxima da Rússia, como é o caso de vários estados africanos, deixaram muito claro perante Vladimir Putin na cimeira África-Rússia que são a favor do direito internacional e da carta das Nações Unidas, que consideram que a Rússia é responsável e não terá os mesmos direitos negociais que a Ucrânia”. Apesar disso, espera que Lula da Silva continue a fazer o papel de “porta-voz” das potências a quem convém que a Rússia saia fortalecida da guerra, vendo nisso um fortalecimento da ordem chinesa.
Na ausência de Putin na cimeira, o líder brasileiro vê-se obrigado a lidar com o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, que se tem assumido como a “face mais aceitável da política externa russa”, refere ainda Bruno Cardoso Reis. No encontro dos BRICS o historiador não espera de Sergei Lavrov, visto como uma figura mais moderada e contida, mais do que continuar a fazer o número de diplomata que até agora tem seguido. Aponta, no entanto, a existência de dúvidas sobre a sua atual relevância. “Para o chefe da diplomacia de um país é muito importante que os outros países o vejam como alguém que tem plena confiança e real influência sobre quem realmente decide. E há a perceção de que com esta guerra Lavrov perdeu alguma influência”, acrescenta.
O desejo de expansão dos BRICS que opõe a China e Índia e leva a Rússia a sonhar com adesão do Irão ou Venezuela
Na cimeira dos BRICS a relação entre a China e Índia, que nunca foi conhecida pelos melhores termos, poderá estar em destaque com uma nova fonte de discordância: a possível expansão do bloco. Este deverá ser um dos temas em destaque no encontro e poderá acrescentar mais problemas, com a China a pressionar o bloco a alargar-se no caminho para se tornar um rival do G7, enquanto a Índia mantém algumas reservas.
“Se expandirmos os BRICS para representar uma parcela do PIB mundial semelhante à do G7, a nossa voz coletiva no mundo ficará mais forte”, disse ao Financial Times um oficial chinês, sob condição de anonimato. Pelo contrário, se o grupo seguir a abordagem da Índia, poderá promover uma maior cooperação com o G7 e discutir maneiras de reformar o sistema económico e financeiro internacional e lidar com problemas globais, sublinhou o especialista Hung Q. Tran num artigo sobre o desacordo dos dois países em matéria da expansão, publicado pelo think tank Atlantic Council.
O confronto entre os dois países não é novidade, sobretudo tendo em conta a disputa de fronteiras, destaca Diana Soller. “Especialmente a Índia, sendo o estado mais fraco, vê a China como a ameaça e o rival mais perigoso. Isto vê-se não só quanto à integridade territorial, mas também à segurança indiana, uma vez que são competidores na compra de matérias primas”, aponta.
A especialista lembra que o facto de ambos os países pertencerem aos BRICS foi, por um lado, fruto das circunstâncias e que não se deve olhar para o bloco do mesmo modo que se olha para uma aliança ocidental. “É uma organização internacional muito mais circunstancial, que acaba por se formalizar em 2009 e acompanhar a evolução do sistema internacional, mas isso não faz propriamente com que as relações entre os estados que a compõem sejam particularmente diferentes por causa dessa existência.”
Entre um país impulsionador do alargamento e outro que mantém reservas, a Rússia tem-se assumido claramente a favor da expansão. Esta abertura, que representa uma mudança da postura russa, não pode ser separada do contexto internacional atual, defende Bruno Reis Cardoso. “A Rússia quer fazer passar a mensagem de que não está isolada diplomaticamente, de que tem apoio no Sul Global, mesmo que isso seja uma narrativa no mínimo exagerada, uma vez que a maior parte desses países não estão dispostos a dar a Moscovo nada parecido com o apoio que o Ocidente dá à Ucrânia”, refere.
No contexto da cimeira, e de um possível alargamento, foram estendidos convites para a participação de 67 líderes provenientes de África, América Latina e Ásia, como revelou a ministra dos Negócios Estrangeiros de África do Sul, Naledi Pandor. Entre eles o do Irão, um dos potenciais candidatos a membro e um nome que consta na lista de favoritos da Rússia, à semelhança da Venezuela. Prova disso foi a recente reunião por vídeochamada entre o Presidente russo e o homólogo iraniano, em que a possível adesão do Irão aos BRICS foi um tema em destaque, segundo avançou a imprensa estatal russa. A vontade russa, acrescenta Bruno Cardoso Reis, não se pode separar de um desejo de ver uma maior rivalidade com o Ocidente. “Moscovo tem interesse em que este grupo se constitua como um bloco hostil ao Ocidente. Quantos mais países com problemas semelhantes aos da Rússia com os estados ocidentais fizerem parte do bloco melhor.”