O melhor livro é aquele que tem uma história que nos envolve e nos faz percorrer rapidamente as páginas com a curiosidade do próximo acontecimento. O leitor conversa com o livro, partilhando pensamentos e palavras escritas, mas existem livros com os quais se pode manter um diálogo real, ouvir a voz, apreciar o sorriso e ver o brilho no olhar. São os Livros Vivos da Ameixoeira, cada um com uma narrativa própria, uma origem diferente, representativos da história de um território no limite da cidade de Lisboa.
O Observador aproveita o momento em que Tesouros da Ameixoeira e Livros Vivos se mostram na Feira do Livro de Lisboa, a 5 e 6 de junho, para lhe apresentar algumas das histórias desta biblioteca.
Nesta biblioteca, criada em 2012, há livros para todos os gostos, prontos a serem requisitados: líderes de movimentos associativos, pessoas com mobilidade reduzida, diferentes etnias e religiões, professores e educadores, músicos e desportistas, um pastor e uma queijeira. São, neste momento, 13 livros, mas já existem outros em vista. Em comum têm o território – a Ameixoeira -, mesmo que não residam no bairro.
Num bairro marcado pelas origens diversificadas dos habitantes – migrantes nacionais, imigrantes de África ou da Europa de Leste e pessoas dos programas de realojamento social -, é evidente a falta de identificação com o território e os conflitos entre grupos. “Contar histórias de pessoas concretas faz com que se criem relações e se deixem de fazer generalizações. Serve para descontruir esteriótipos”, diz Ana Ngom, técnica do Projeto de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira – K’Cidade, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Aos poucos foram-se reunindo os tesouros do território: os fósseis (com 18 milhões de anos), as antigas quintas, os edifícios históricos, as pessoas e as respetivas culturas. Com estes tesouros alimentavam-se os três momentos da vida do território: tempo do mar, tempo rural e tempo urbano. Em 2008, nascia então o grupo Tesouros da Ameixoeira que gere, entre outras atividades que visam a inclusão social, a Biblioteca de Livros Vivos.
O fadista cigano que ficou sem voz
“Sou ciganito, mas acho bonito ouvir o fado a trinar. Sou ciganito, mas acho bonito e gosto muito de o cantar”, assim cantava José Maia no final dos anos 60. Foi o primeiro cigano a gravar um disco de fado em Portugal, quando tinha apenas 15 anos, mas já acompanhava alguns do maiores artistas da época. Um problema nas cordas vocais ditou o fim precoce da promissora carreira. Agora, enquanto Livro Vivo, usa a voz para contar esta história.
Tinha apenas dez anos quando, em 1962, começou a cantar nas tabernas de Moscavide a troco de uns tostões. O regedor de Moscavide ainda tentou que fosse à escola, mas as reguadas da professora fizeram com que desistisse ainda no segundo ano. O que queria mesmo era cantar e aos 13 anos ganhava a primeira quantia avultada. Estava a cantar numa taberna quando recebeu, de “uns senhores da Sacor” (a antiga refinaria de Cabo Ruivo), 2.500 escudos (o que em dinheiro atual equivale a quase 600 euros). “Dei o dinheiro à minha mãe e ela ia ficando maluca”, conta José Maia.
Das tabernas de Moscavide a Alfama. E depois de uma estreia no cine-teatro Monumental, em 1966, chegou à casa de fados 1001 no Bairro Alto, onde ganhava 500 escudos por noite (cerca de 117 euros nos dias de hoje). Numa dessas noites tinha na assistência os atores Francisco Nicholson, Armando Cortez e Raul Solnado, que lhe pagaram 500 escudos para gravar um disco. Saiu em 1967.
Fez muitos espetáculos pelo país, mas o que mais o marcou foi o do Pavilhão Rosa Mota. Por um lado, porque a digressão incluía artistas conceituados: Madalena Iglesias, Simone de Oliveira, António Calvário e António Mourão. Por outro lado, porque entrou no palco a chorar, não de emoção mas devido ao ralhete que o Vasco Morgado lhe deu. À hora do espetáculo estava a jogar bilhar num café.
Depois dos 18 anos passou a cantar, além do fado, o flamenco, porque era mais divertido para as boîtes onde atuava. Mas há cerca de 20 anos, uma amigdalite mal curada, estragou-lhe definitivamente as cordas vocais. Ainda canta para a família, mas ao fim de duas ou três músicas fica rouco. Não se recusou, porém, a usar a voz nos momentos em que foi chamado a falar como Livro Vivo, fosse num encontro em Palmela, na Feira do Livro de Lisboa ou em eventos na Ameixoeira.
A professora do bairro
O sorriso envergonhado acompanha a sinceridade com que se deixa ler. Embora tenha uma capa rústica de cortiça, por ter vindo da aldeia, este livro tem nas palavras a candura de quem é educador, não só de profissão, mas de modo de vida. Fátima Cunha é, e talvez sempre tenha sido, um Livro Vivo. “Quando falo com toda a gente sinto-me livro. Faço uma interação a pensar como um Livro Vivo e estou a ter prazer com isso.”
Chegou ao território há mais de 20 anos quando foi colocada numa escola das Galinheiras e ficou completamente apaixonada pelas pessoas, por serem tão genuínas. “O que mais me impressionou foi a crueza e a sinceridade no olhar e nas palavras – para nos chamar nomes ou para amar completamente”, diz Fátima Cunha. Obrigada a ir embora ao fim do primeiro ano, por ter terminado o contrato, a professora não descansou enquanto não conseguiu voltar. Tinha sido um ano inesquecível.
Fátima Cunha chegou à Ameixoeira recheada do que as experiências anteriores lhe tinham fornecido. A primeira foi como professora no estabelecimento prisional de Alcoentre. “Tenho as melhores recordações do que lá aprendi e senti.” Depois de quatro ou cinco anos nas escolas das aldeias da zona oeste, de onde é natural, veio para Lisboa e esteve na Voz do Operário, onde teve oportunidade de trabalhar numa escola ativa, com outro tipo de abordagem. “Na Voz do Operário aprendi mais sobre a questão da cidadania e sobre dar voz às pessoas que não a têm.”
Mas nas Galinheiras o ambiente era muito diferente. “Eu nem fazia ideia do que eram bairros de realojamento”, diz a professora. Há momentos em que a realidade ainda a surpreende, mas faz por esquecer as coisas mais difíceis.
A participação de Fátima Cunha na escola, no grupo comunitário ou em outros projetos do bairro tem servido para aumentar a confiança de alunos e familiares e da comunidade em geral. Por ser tão boa referência no bairro, pareceu lógico ao grupo Tesouros da Ameixoeira, do qual também faz parte, que fosse um Livro Vivo. “Se eu fosse um objeto [um livro] as pessoas já me tinham visto por aqui muitas vezes, já tinham interagido comigo, já me tinham lido”, diz Fátima Cunha.
Enquanto elemento dos Tesouros da Ameixoeira começou por se interessar mais pelos tesouros patrimoniais, mas sabe que também existe um tesouro escondido em cada pessoa. “Qualquer pessoa acaba por ser um livro e o território é uma grande biblioteca.” Com o tempo têm-se procurado oferecer uma leitura melhor, tornou-se um livro mais trabalhado, mais depurado. “O Livro Vivo é interativo, dá e recebe.” Enquanto é lido, o Livro Vivo também lê as emoções do leitor, lê nas entrelinhas.
Cair do céu sem perder a vontade de viver
Chegou ao bairro da Ameixoeira, em Lisboa, em setembro de 2006, ainda pouco ciente de como seria a vida a partir daí. Nos hospitais por onde passou, Sek Sar manteve sempre uma sensação de conforto: “Ainda não me tinha apercebido da realidade, das dificuldades que iria encontrar no meu dia-a-dia e na rua”, afirma. Mas não hesitou em aceitar o desafio de criar no bairro onde passaria a morar melhores condições para as pessoas que, tal como ele, se deslocavam em cadeiras de rodas.
Foi num sábado, depois das aulas, em fevereiro de 2002, que cair de um embondeiro mudou a vida de Sek Sar. Era hora de almoço e, juntamente com o grupo de amigos, decidiu trepar a uma das árvores que havia no recreio da escola árabe da ilha Bassoul, no Senegal, como tantas vezes tinha feito. Subia aos embondeiros para brincar ou para apanhar os frutos (mukua) que vendia às senhoras que faziam os gelados tradicionais. Com esta queda começava para Sek Sar uma verdadeira odisseia, de hospital em hospital, à procura de um tratamento eficaz.
O jovem de 14 anos ficou completamente paralisado. “Só mexia os olhos”, diz. A imobilidade era reforçada pelo gesso que o prendeu durante os meses que esteve no hospital de Dakar (no Senegal) logo depois do acidente. Sem ver melhoras, a mãe conseguiu levá-lo para o hospital da capital da Guiné-Bissau de onde eram naturais. Mas continuavam sem notar avanços. Só com o internamento no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão durante quase quatro anos conseguiu recuperar a mobilidade dos braços e tronco.
A história de um jovem que apesar do trágico acidente vive com alegria e com a constante preocupação de ajudar os outros poderia dar um livro, mas neste caso Sek Sar é o próprio livro – um Livro Vivo. “Ser um Livro Vivo é revelar um pouco da minha história e deste lugar onde eu vivo. E se for um incentivo para ajudar alguém melhor ainda”, revela. “Há sempre qualquer coisa que se pode descobrir na Ameixoeira, na sua zona histórica ou através das histórias das pessoas que aqui moram.”
Mesmo com os movimentos mais dificultados pela falta de exercícios de fisioterapia, nada consegue impedir o jovem guineense de se manter ativo no bairro onde vive. “Quando nasceu o projeto [dos Livros Vivos] já conheciam a minha história e acharam que fazia sentido partilhá-la.”
Continua um lutador mas não o mesmo que na ilha Bassoul, no Senegal, vencia as provas de luta livre. “Da minha geração era o melhor, trazia sempre um prémio. O meu sonho era ser campeão de luta livre”, lembrando as competições que opunham a ilha onde vivia às ilhas próximas, o bairro onde morava aos bairros vizinhos, ou a escola árabe que frequentava à escola francesa.
Agora a luta é outra. Sek Sar é presidente da Associação Grupo Esperança Direitos Iguais (AGEDI), que tem como principal preocupação criar melhores condições para as pessoas com mobilidade reduzida – criar rampas, rebaixar passeios, instalar cadeiras adaptadas às banheiras. Além disso, a associação procura sensibilizar a população em geral para o problema e servir de ponte entre as famílias e os assistentes sociais. Só na Ameixoeira identificou 73 famílias com problemas de mobilidade.
Para esta e outras questões da vida, Sek sabe que: “Tudo é feito à base de sacrifício, nada cai do céu. Temos de trabalhar e lutar pela vida.”
O pastor da Ameixoeira
São nove da manhã e nem as nuvens negras que se aproximam impedem Abel Vicente de sair de casa. Numa mão traz o cajado para se apoiar, na outra vem prevenido com o chapéu-de-chuva. Pelo monte já andam as ovelhas e a Traquina, a cadela do pastor. Olha em volta para contemplar a paisagem, mas só vê prédios.
Conheceu a Ameixoeira, nos limites da cidade de Lisboa, há 56 anos quando tinha apenas dez. “Quando vim para aqui em 1958 não havia prédio nenhum. Nem aqui, nem ali”, diz Abel Vicente apontando para oeste, em direção ao concelho de Odivelas, onde nasceu. O terreno onde as ovelhas pastam, outrora a Quinta da Torrinha com 16 hectares, pertence à Câmara Municipal de Lisboa, que o mantém em semi-abandono.
O dia de trabalho começou às seis da manhã, mas, no pico do verão, a essa hora já estará no monte com as ovelhas porque os animais reagem mal a temperaturas elevadas. “É um animal que quando dá o calor não come nada. [No verão] quando chega as nove horas já não comem”, afirma o pastor. Depois de duas ou três horas passadas no pasto voltam para casa e da parte da tarde vão para outro monte. “Elas não gostam de andar sempre no mesmo sítio.”
O trabalho, as rotinas e os animais, são as componentes da história que Abel Vicente vive e dá a viver enquanto Livro Vivo. Um livro campestre, símbolo do “tempo rural” (um dos três tempos escolhidos para representar o território, rural, do mar e urbano), que viu a Ameixoeira passar de campo a cidade. Nas memórias físicas da quinta havia bilhas de leite e de azeite que ofereceu à exposição dos Tesouros da Ameixoeira.
A rotina só é quebrada quando as crianças vão à quinta. São duas ou três turmas de cada vez que vêm a pé das escolas das Galinheiras e quando chegam “querem ver tudo e mexer em tudo”. Enchem o pastor de perguntas sobre os animais, a horta ou as árvores de fruto que aproveita para lhes mostrar. Gostam de ver os borregos mamar e os pintos pequeninos. Abel gosta destas visitas. E as crianças também. Quando passam no monte, algumas já adultas e com filhos, lembram-se dele e das ovelhas.
Abel Vicente, que encara o que faz mais como uma forma de ocupar o tempo livre, não hesitará em vender as ovelhas quando já não tiver condições para as criar. “Como dizia o meu pai: ‘De um momento para o outro meto-as no bolso’.” O único filho também não tem tempo para os animais, está ocupado com outros afazeres em Angola – é director desportivo para o futebol do Clube Recreativo Desportivo do Libolo, na província de Kwanza-Sul. Nas épocas de 2010-2011 e 2011-2012, Bruno Vicente, adjunto do treinador português Mariano Barreto, sagrou-se campeão de Angola.
O pastor gosta mais de apanhar o ar da rua, mesmo que frio, do que o ar condicionado dos edifícios. E as ovelhas também sentem a falta se não puderem vir para o monte. “Se chegar àquela hora e elas não saírem começam logo numa gritaria”, refere Abel Vicente, enquanto olha com ternura os animais: a Bonita, a Estrela, a Grandona, a Fusca ou a Andorinha. “Mais ou menos todas têm nome. As pessoas dizem que são todas iguais mas não, cada ovelha tem uma cara diferente, há sempre um pequeno detalhe.”
Uma história com 18 milhões de anos
Mário Cachão gosta de desafios. Sobretudo de lançá-los. Mas desta vez foi ele que foi desafiado, ainda por cima para um projeto totalmente diferente daquilo a que estava habituado. O professor de paleontologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa tinha sido convidado a colaborar em um projeto de inclusão social na Ameixoeira. O único ponto comum com o trabalho académico eram os fósseis. “Mas era óbvio que iria colaborar”, diz.
Uma professora da escola das Galinheiras conversava com um técnico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) junto à Casa da Cultura na Ameixoeira quando começaram a prestar atenção às pedras no chão – eram conchas fossilizadas com 18 milhões de anos. Na equipa do K’Cidade começaram logo a surgir ideias para usar os fósseis como facilitador dos projetos de inclusão social. Só precisavam de validar a descoberta.
Fazer divulgação de temas ligados à geologia e à paleontologia não era novo para Mário Cachão, mas nunca o tinha feito num contexto de integração social. Mesmo assim não hesitou em aceitar o convite. “Tenho este defeito de me atirar de cabeça e depois ver o que dá”, confessa com um sorriso.
Ao longo do tempo a parceria foi ganhando forma assim como a missão do grupo dos Tesouros da Ameixoeira e o paleontólogo admite que tem ganho muito com esta relação. “Tomei consciência da importância de desenvolver um conjunto de kits pedagógicos”, diz, referindo-se aos kits Rocha Amiga que tem levado a todas as escolas do país para onde é convidado, incluindo as escolas da Ameixoeira e Galinheiras.
Convidar Mário Cachão para ser um Livro Vivo fazia sentido para a equipa do K’Cidade, pela participação no grupo Tesouros da Ameixoeira e na comunidade, e porque era a única pessoa que podiam associar ao “tempo do mar” – o primeiro de três tempos escolhidos para representar a Ameixoeira. Neste contexto vê-se mais como um capítulo anexo, mas assume a importância de ser um “elemento dissonante” no seio dos restantes livros. A diversidade é chave neste projeto.
Para o geólogo, a chave são os desafios, por isso mesmo escolheu esta profissão. Já em criança se interrogava sobre a origem das rochas que via na praia, entre Algés e Dafundo, e quando descobriu que a geologia podia ser uma profissão, e não apenas um interesse de colecionista, não hesitou. Sempre se sentiu um naturalista, com interesse em vários domínios, incluindo a biologia, mas foi a geologia que falou mais alto.