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Uma central “tão segura que poder-se-ia ter construído em plena Praça Vermelha de Moscovo”. Era assim que o regime soviético descrevia a Central Nuclear de Chernobyl, construída em 1972, na Ucrânia, e a mais potente do mundo na altura.
O que aconteceu no dia 26 de abril de 1986, no reator número quatro da central, é sobejamente conhecido. Uma explosão, um desastre nuclear que afetou países um pouco por todo o mundo, outro que podia ter aniquilado toda a Europa e que foi evitado, um número de vítimas que ainda hoje continua a subir e uma região que se tornou uma zona fantasmagórica. No entanto, a quantidade de informação existente sobre a tragédia é incomparavelmente inferior à magnitude do desastre. E esse facto pode ter feito mais uma vítima — a própria União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
O maior desastre nuclear que o mundo já conheceu
Naquela madrugada, os 176 funcionários do bloco quatro da central nuclear receberam ordens para proceder a um teste no sistema de alimentação automático de combustível do reator, com o objetivo de poupar energia da estrutura. Com os sistemas de segurança desativados, deu-se início a uma intensa subida da temperatura dentro do reator, até que as sobreaquecidas barras de combustível nuclear aí presentes foram colocadas nas águas de refrigeração, o que, aliado às violações dos regulamentos de segurança, provocou uma série de explosões no local. Como consequência, foi formado um fluxo de vapor radioativo que foi expelido pela explosão o que fez com que uma autêntica chuva de partículas radioativas fosse lançada a uma distância superior a 1 quilómetro de altura e com uma quantidade de radioatividade equivalente a entre 100 e 500 bombas atómicas como as lançadas em Hiroshima e Nagasaki.
Por volta das cinco da manhã desse dia, Mikhail Gorbachev, líder soviético na altura, foi acordado por um telefonema informando-o que tinha deflagrado um incêndio na usina nuclear de Chernobyl. Durante as horas que se seguiram, nunca lhe foi referido que tinha acontecido uma explosão. Estas informações erradas tiveram, nas palavras do líder soviético, consequências “dramáticas”. Mais do que isso, quando questionados sobre a situação na zona, os especialistas e as autoridades responsáveis pela segurança garantiam a Gorbachev que tudo estava em ordem e que, inclusivamente, o reator voltaria a estar operacional num curto espaço de tempo.
A central nuclear ficava localizada a cerca de 130 quilómetros a norte de Kiev e a cerca de 20 quilómetros da fronteira com a Bielorrússia, país que viria a ser o mais afetado pela propagação da radioatividade. Mas a cidade mais próxima era Pripyat, a 3 quilómetros, com quase 50 mil habitantes, na sua maioria familiares e operadores da usina em Chernobyl. Na manhã que se seguiu às explosões, a cidade acordou como se de um dia normal se tratasse. A única diferença foi um sabor metálico na boca e os enjoos que muitas pessoas começaram a sentir. Os soldados começavam a entrar em Pripyat, utilizando máscaras de proteção, e a população observava o cenário com um misto de perplexidade e incompreensão — por esta altura existiam apenas rumores de um incêndio e que algumas pessoas tinham morrido durante o mesmo. Mas não existia qualquer informação oficial.
Durante a tarde de dia 27 de abril, os militares começaram a medir o nível de radioatividade no ar em Pripyat. E os resultados apontavam para níveis 15 mil vezes superiores ao considerado normal. Na noite desse mesmo dia, era já 600 mil vezes superior ao aconselhável — acredita-se que a população recebeu, só durante aquele dia, doses 50 vezes maiores do que a considerada inofensiva.
Perante estes resultados, Gorbachev formou uma comissão de análise ao desastre, com objetivo de criar uma estratégia para minimizar as consequências. Valery Legasov, um conceituado químico soviético, foi o escolhido para liderar esta comissão e teve um papel fundamental na informação prestada ao Governo e nas decisões tomadas para evitar um segundo acidente de proporções gigantescas. Em agosto de 1986, numa reunião extraordinária da Agência Internacional de Energia Atómica, Legasov ofereceu, pela primeira vez do lado soviético, um relatório aproximado sobre as consequências reais do acidente de Chernobyl. Em 1988, dois anos depois da tragédia, enforcou-se, deixando apenas algumas gravações com pormenores desconhecidos sobre uma catástrofe nuclear potencialmente apocalíptica. A partir daqui iniciaram-se os rumores de que o químico tinha sido alvo de variadas pressões políticas para omitir grande parte do que sabia. O que terá culminado no seu suicídio.
Só no final da tarde do dia seguinte às explosões se avançou para a evacuação total dos quase 50 mil habitantes de Pripyat. O que, para uma tragédia nuclear desta dimensão, era já demasiado tempo depois do recomendado. Todos tinham sido já expostos a níveis de radiação capazes de desencadear doenças como cancro.
Enquanto isto acontecia, as nuvens radioativas começaram a espalhar-se pelos países vizinhos. E, no dia 28, chegavam à Suécia. As autoridades do país detetaram quase imediatamente a subida do nível de radioatividade no território, mas não sabiam a origem, porque, quase 60 horas depois do acidente, não existia qualquer comunicado internacional por parte da União Soviética. Assim, foi a Suécia que alertou as autoridades internacionais para estes níveis. E os russos viram-se obrigados a avisar o mundo sobre o desastre que tinha ocorrido.
Quando a sobrevivência da Europa esteve em jogo
Gorbachev ordenou que todas as informações sobre Chernobyl lhe fossem transmitidas pessoalmente, destacando até o KGB para o efeito. Apenas dois dias depois do acidente, as informações que chegavam ao líder passaram a ser precisas.
Por esta altura, toda a Ucrânia e Bielorrússia podiam já estar contaminadas. No entanto, as informações sobre a situação apareciam apenas em notícias de rodapé nos jornais soviéticos e davam conta que tudo estava controlado. Em Kiev, no dia 1 de maio desse ano, realizou-se até a tradicional parada de celebração do Dia do Trabalhador, que juntava milhares de pessoas nas ruas — até hoje nunca foi realizado nenhum estudo para calcular a quantidade de pessoas que foram expostas à radiação nesse dia. Poucos anos mais tarde, Volodymyr Cherbinski, primeiro secretário do Partido Comunista Ucraniano, suicidou-se.
Na parte inferior do reator afetado, milhares de toneladas de magma continuavam a ser queimadas, libertando ininterruptamente gases radioativos para a atmosfera. Toda a Europa poderia ser contaminada, dependendo da direção dos ventos. Mais de 700 mil militares e trabalhadores (ficaram conhecidos como “liquidadores”) foram destacados para controlar o incêndio e selar o reator. Mas o risco de uma segunda explosão, ainda mais devastadora do que a primeira, aumentava a cada segundo. Alguns cientistas que analisaram a situação calcularam que, a ocorrer, a explosão varreria do mapa a cidade de Minsk, a 320 quilómetros de distância, e tornaria a Europa inabitável. Era a sobrevivência do continente que estava em jogo.
As centenas de milhares de pessoas, de bombeiros a militares, passando por civis, que tentaram evitar uma tragédia sem precedentes, colocaram em prática um plano que consistia, num primeiro momento, em retirar a água da parte inferior do reator e depois selar a fenda aí presente, através de chumbo, que derreteria com as altas temperaturas. Grande parte dos homens que embarcou nesta missão suicida ainda hoje sofre as consequências. Outros acabaram por morrer — calcula-se que 40 mil destes homens morreram devido ao trabalho realizado, com muitos a terminar com a própria vida, e outros 70 mil ficaram incapacitados.
Parecia que se estava num cenário onde se resolvia um problema e surgia outro logo a seguir. Apesar da missão bem-sucedida de selar a fenda e impedir uma explosão, o incêndio não tinha terminado. Por isso, o magma continuava a deslocar-se para baixo, correndo agora o risco de chegar ao lençol de água subterrâneo, o que contaminaria todos os rios nas regiões próximas até ao Mar Negro. A acontecer, os danos seriam incalculáveis. A única solução era chegar à zona destruída, o que era uma missão potencialmente suicida. Assim, 1o mil mineiros russos e ucranianos ficaram incumbidos da missão de construir túneis subterrâneos para chegar ao reator e instalar um dispositivo de refrigeração, de maneira a reduzir a temperatura do magma. Calcula-se que um quarto destes homens morreu antes de completarem os 40 anos de idade.
A Europa sobreviveu, mas a União Soviética não
Em 1990, a jornalista e política, Alla Yaroshinskaya, divulgou uma série de documentos confidenciais do Politburo do Comité Central do Partido Comunista Soviético, que revelavam uma enorme estratégia de encobrimento e uma deliberada política de desinformação sobre o acidente de Chernobyl. Apesar dos sucessivos desmentidos, esta situação não surpreendeu a população nem a comunidade internacional, principalmente nos anos seguintes. Se esta era uma prática conhecida de um regime fechado como o soviético, as mortes como as dos homens que trabalharam no local depois das explosões, e de muitas outras pessoas ao longo dos anos devido à radiação, nunca foram contabilizadas em nenhuma estatística oficial.
Tudo isto contribuiu para que a União Soviética não sobrevivesse em termos políticos e enquanto regime. Pouco tempo antes do desastre de Chernobyl, Gorbachev iniciou uma política de abertura do regime com a instauração da chamada Perestroika, juntamente com a Glasnost. A primeira tinha como objetivo uma liberalização económica em termos internacionais, prevendo-se até o início de uma cooperação com os Estados Unidos da América, principal inimigo da URSS durante os anos de Guerra Fria. A Glasnost, por sua vez, tinha como objetivo complementar a vertente económica com uma maior transparência ao nível do Governo, abrindo caminho à liberdade de expressão do povo russo e a uma abertura política. Estas medidas são comummente conhecidas como o início do fim da União Soviética.
Pode parecer uma contradição, mas o desastre nuclear de Chernobyl ofereceu a legitimidade necessária às políticas levadas a cabo por Gorbachev, que eram alvo de violentas críticas por parte da ala mais radical do Partido Comunista.
Ora, depois de se verificar a cronologia dos dias, semanas, meses e anos que se seguiram ao acidente, a falta de informação que era transmitida, quer à população, quer ao próprio líder, pode ter contribuído para o acelerar das consequências. Gorbachev chegou a exigir que toda a informação sobre os acontecimentos lhe fosse entregue pessoalmente e nada podia ser deixado de fora -—esta era claramente um comportamento na linha da Glasnost.
Nas suas memórias, publicadas em 1996, o líder soviético defendeu: “O desastre nuclear em Chernobyl foi talvez, mais do que o meu lançamento da Perestroika, a causa real do colapso da União Soviética cinco anos depois”. Por isso, na sua opinião, existe “um período antes do desastre, e outro completamente diferente depois”. A explicação para esta afirmação é também dada por Gorbatchev: “O desastre de Chernobyl, mais do que tudo, abriu a possibilidade para uma muito maior liberdade de expressão, até ao ponto de que o sistema, tal como o conhecíamos, não poder mais existir”. Em 1991 um dos maiores impérios da história chegou ao fim.
Uma potencial catástrofe nuclear terá sido transformada na maior vitória política e no legado de Gorbachev. Para além disso, reforçou ainda mais a convicção do líder sobre a necessidade de reduzir o armamento nuclear em todo o mundo e “mostrou os terríveis riscos do poder nuclear, mesmo quando criado para fins não-militares. Agora podemos imaginar com muito mais clareza o que poderia acontecer se uma bomba nuclear explodisse”.
Chernobyl teve consequências humanas, ambientais e económicas que ainda hoje se fazem sentir. Tornou, por exemplo, uma cidade como Pripyat inabitável, segundo calculam alguns cientistas, para os próximos 900 anos e expeliu uma quantidade de radiação que chegou a países como Espanha, França ou a Grã-Bretanha. As Nações Unidas chegaram a calcular que, até 2002, existiram 2 mil casos de cancro da tiroide relacionados com o acidente e que esse número poderia aumentar para entre 8 a 10 mil casos nos anos seguintes — esta estimativa foi, no entanto, contestada por algumas organizações não-governamentais. Para além disso, a dificuldade de contabilizar o número de pessoas afetadas pelo desastre aumenta quando se tenta calcular a quantidade de crianças nascidas com mutações genéticas, ou até os impactos económicos em famílias que tiveram de abandonar tudo o que tinham para fugir da radiação. Muitas delas vivem, ainda hoje, na miséria.