Assim que o telemóvel recebeu um SMS a dizer que iria ser vacinada em breve, Fernanda Robalo foi dominada pela surpresa. É que além de ter apenas 58 anos, não há nada na sua saúde que, à partida, a faça integrar um grupo prioritário da vacinação. Pouco depois acabaria por saber que o irmão, sete anos mais novo, também fora chamado, enquanto a mãe, de 86, continua à espera. E o que têm em comum? Os dois irmãos sofrem de apneia do sono e usam um equipamento ventilador enquanto dormem.
A doença não está incluída na lista de prioridades da vacina, mas pode ter feito com que Fernanda e o irmão Emmanuel, assim como tantos outros utentes que sofrem de apneia e que usam um aparelho à noite, tenham sido erradamente incluídos na lista de prioritários ao lado de outros doentes que sofrem de doença respiratória crónica e que precisam de suporte ventilatório ou oxigenoterapia de longa duração. O erro da inclusão destes doentes nas listas foi detetado ainda em fevereiro em muitos centros de saúde do país, e só depois de um esclarecimento das autoridades de saúde foi corrigido. No entanto, nessa altura, alguns já tinham sido vacinados e outros estavam prestes a ser, por isso optou-se por não voltar atrás — como aparentemente aconteceu com Fernanda, que irá tomar a segunda dose em maio.
A utente foi vacinada no centro de saúde de Rio de Mouro, em Sintra; o irmão foi vacinado no Pinhal Novo, concelho de Palmela, ambos na jurisdição da Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa e Vale do Tejo. Mas em Coimbra, da ARS do Centro, o cenário foi semelhante.
Centros de Saúde foram informados que doentes com apneia não eram prioritários
O médico de Medicina Geral e Familiar Rui Nogueira, ao serviço do Centro de Saúde Norton de Matos, foi alertado para o erro pelo próprio Agrupamento de Centros de Saúde do Baixo Mondego, que terá recebido informação das autoridades de saúde — pouco depois de o Ministério da Saúde disponibilizar um simulador online em que basta inserir o nome, o número de utente e a data de nascimento para receber a informação de se é prioritário nesta primeira fase de vacinação, o que aconteceu a 15 de fevereiro.
Nessa circular explicava-se categoricamente a todos os médicos que os doentes com “Síndrome da Apneia ou Hipopneia do Sono” estavam excluídos da lista de prioritários. Dos 1.550 doentes que Rui Nogueira tem a seu cargo, 136 tinham sido selecionados para serem vacinados como prioritários por terem mais de 50 anos e determinadas doenças associadas, como insuficiência cardíaca, doença coronária, insuficiência renal, doença pulmonar obstrutiva crónica ou doença respiratória crónica sob suporte ventilatório e/ou oxigénio. Depois de receber o aviso, o médico fez uma triagem dos nomes e dos 136 inicialmente elegíveis para a primeira fase da vacina ficou apenas com 77. Ou seja, tinha 59 doentes com apneia que tinham sido selecionados indevidamente para serem vacinados.
“Quando vieram esclarecer este aspeto, eu diria que já era tarde, porque alguns dos doentes já estavam listados e já tinham sido vacinados“, afirma o médico, sem precisar quantos. Isto porque as primeiras listas que foram colocadas na plataforma não terão sido verificadas pelos centros de saúde. “O que inicialmente estava previsto era que nós validávamos as listas, mas, como as disponibilizaram muito à pressa, deu erro”, acusa.
Na verdade, houve um duplo erro: por um lado, verificou-se que havia doentes que deviam estar incluídos nas listas e não estavam, e que foram depois colocados; por outro, estavam utentes na lista que não deviam estar, ou por “um erro” na introdução do código da doença na plataforma “ou por alguma razão”, justifica Rui Nogueira.
“Não deviam ter publicitado a lista sem ser aferida, uma coisa é incluir quem não estava, outra mais difícil é tirar. A inclusão dos doentes é fácil, a retirada é que não. As pessoas não percebem. O pecado original é terem divulgado as listas sem os médicos [as verem]”, reafirma, aproveitando para explicar que, nesta primeira fase de vacinação, pode haver dificuldades na definição das doenças prioritárias, mas o critério é pensar quem “são os grandes clientes das Unidades de Cuidados Intensivos”, dando como exemplos doentes com enfisema ou fibrose pulmonar.
Ao Observador, porém, a equipa de coordena o plano de vacinação não assume qualquer erro e admite apenas que tenham sido vacinadas pessoas com apneia do sono por também sofrerem de “alguma das doenças priorizadas para a Fase 1”. Contrariando o relato de quem está no terreno, a task force liderada pelo vice-almirante Henrique Gouveia e Melo diz que só por isso “é provável que também já tenham sido vacinadas pessoas com Apneia do Sono”, numa resposta por escrito.
Norma sempre excluiu apneia, mas tal não foi referido no plano de vacinação nem está no site da DGS
Contactado pelo Observador, o presidente da ARS do Algarve, Paulo Morgado, garante que a apneia foi sempre excluída do primeira fase de vacinação, não estando associada a uma doença respiratória considerada grave. O mesmo respondeu ao Observador a task force para a vacinação, numa primeira resposta. No entanto, o Plano de Vacinação divulgado pela Direção Geral da Saúde em dezembro não o refere, e fala apenas em doenças respiratórias crónicas sob suporte ventilatório, o que, para Rui Nogueira, poderá ter induzido alguns médicos em erro. “O que é a apneia? Não é uma doença respiratória crónicas sob suporte ventilatória?”, interroga.
As próprias normas da Direção Geral da Saúde não foram assim tão claras. Na norma de 30 janeiro são enunciados, logo na página 2, os quadros com as doenças que tornam um doente entre os 50 e os 79 anos prioritário nesta primeira fase da vacinação — a par dos maiores de 80 anos, dos profissionais de saúde, das forças e serviços de segurança, dos titulares de altos caros públicos ou órgãos de soberania. Logo nesse quadro aparecem referidas as doenças respiratórias crónicas que necessitam de suporte ventilatório, mas sem qualquer indicação de que não são todas.
A exceção só aparece assinalada mais à frente, na página 10, quando se volta a repetir a tabela das doenças. A mesma norma foi depois atualizada a 9 de fevereiro, passando a apneia a estar apresentada como a exceção a excluir das prioridades logo na página 4. No site da Direção Geral da Saúde, contudo, esta exceção continua a não estar indicada. O Observador tentou saber junto da Direção Geral da Saúde se a falta desta informação ou da sua clarificação podia estar a induzir a algum erro, mas até agora não obteve qualquer resposta.
Numa segunda resposta ao Observador, a equipa que coordena o plano de vacinação assume que, de facto, só a Norma 002/2021 da Direção Geral da Saúde (a de 30 de janeiro) veio recomendar “a não priorização das pessoas com Apneia do Sono, dado que outras doenças respiratórias têm um risco mais elevado de internamento e morte por Covid-10”.
Ainda assim, para o presidente da ARS Algarve “a norma é clara”. “São várias as doenças de base, se a pessoa estiver diagnosticada com a doença é incluída na Fase 1, e não é por fazer suporte ventilatório ou não. Muitas vezes há doentes que só o fazem porque têm uma obesidade ou hipertensão e isso não é motivo para se incluído”, explica. Ainda assim, Paulo Rebelo reconhece que “nem toda a gente lê bem as normas”.
Os códigos de cada doença que põem um nome na lista, ou não
Mas como funciona todo este processo? Cada vez que um doente é seguido por um médico, este deve colocar numa plataforma informática o código da doença que lhe foi diagnosticada. E são estes códigos (que estão referidos nas normas da DGS) que os Serviços Partilhados da Saúde do Ministério da Saúde vão buscar informaticamente para compor as listas de prioritários. “Estas patologias têm códigos, os médicos codificam estas patologias, estes códigos são colhidos informaticamente e [as pessoas] são incluídas na lista”, explica Paulo Rebelo.
Quem faz esse registo são os médicos da ARS, dos hospitais públicos e também dos privados. Depois, as ARS reveem os dados junto dos centros de saúde. “Há situações que é preciso rever e incluir”, admite, explicando que estas listas não são estáticas.
O médico de família Rui Nogueira explica algumas das razões para possíveis erros. É que o sistema depende de “códigos da consulta” que os médicos podem “não ter posto na altura da consulta”, por várias razões — tão simples quanto o sistema informático estar em baixo ou ter surgido uma qualquer situação na consulta que não permitiu ao médico fazê-lo. Ou mesmo um erro humano na introdução do código.
Ainda assim, estes códigos podem ser inseridos à posteriori, como aconteceu com vários utentes que se foram queixar aos centros de saúde indignados por não constarem nas listas, quando sofrem das doenças elencadas na norma dos prioritários. “São colocados na plataforma eletrónica das receitas que usamos, onde existe um ícone que foi feito para incluir os doentes. Tem de haver informação clínica que suporte essa inclusão, mas o processo administrativo é facílimo. São três cliques, 30 segundos”, explica Rui Nogueira, que já foi presidente da Associação de Medicina Geral e Familiar.
“Há pessoas que foram vacinadas sem saberem porquê”
Por outro lado, reconhece Paulo Rebelo, há sempre doentes que podem também não perceber a gravidade da doença que enfrentam e considerar exagerado integrar a lista de prioritários. “Há pessoas que estranham por que podem ser incluídas. Mas quando é registada uma patologia, ela é incluída na lista”, diz. Rui Nogueira corrobora: “Há pessoas que foram vacinadas sem saberem porquê, mas pode ser por não estarem a dar valor ao que têm ou por não perceberem bem o que têm. Há doenças que os médicos valorizam e que podem ser desvalorizadas pelos doentes”, reconhece.
O próprio método de vacinação usado em cada centro pode causar no utente uma sensação de desorganização ou mesmo de injustiça. Rui Nogueira explica que no centro de saúde onde trabalha há várias “frentes” de vacinação: uma para os maiores de 80 anos, que começou nos utentes de 100 anos e que estará agora nos de 83; e outra para os que têm mais de 50 anos e menos de 80 com doenças associadas, que começou nos 65 em ordem decrescente, porque, na altura, a vacina da Astrazeneca ainda não estava recomendada para maiores de 65 anos.
“O atraso mais significativo é nas pessoas de 65 a 79, deixadas para trás quando a Astrazeneca ainda não estava aprovada para estas pessoas. Esta diferença de tempo, não havendo estudos para mais de 65, ficaram suspensas”, diz. Acresce agora a suspensão da vacina, aplicada esta semana e levantada esta quinta-feira, que travou também o processo para as idades que agora a estavam a tomar.
Contactada pelo Observador, a ARS de Lisboa e Vale do Tejo remeteu esclarecimentos para a task force da vacinação. A ARS do Norte garantiu de que “todas as normas são seguidas à risca”, mas recusou revelar quantos doentes com apneia foram vacinados.
*com Marta Leite Ferreira