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Há grupos de investigação que prometem ter uma vacina em setembro ou dentro de um ano, mas nunca se desenvolveu uma em tão pouco tempo
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Há grupos de investigação que prometem ter uma vacina em setembro ou dentro de um ano, mas nunca se desenvolveu uma em tão pouco tempo

Getty Images/iStockphoto

Há grupos de investigação que prometem ter uma vacina em setembro ou dentro de um ano, mas nunca se desenvolveu uma em tão pouco tempo

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Vacinas. Dos resultados promissores ao que ainda pode correr mal

As empresas anunciam resultados promissores com poucos dados e os mercados reagem logo. Mas a incerteza sobre a vacina é tão grande que o vírus pode desaparecer antes de uma ser criada.

10 vacinas contra o novo coronavírus em ensaios clínicos de fase 1 ou 2 e mais 114 candidatas ainda numa fase de avaliação laboratorial. São as contas da Organização Mundial de Saúde, de 22 de maio. Nos próximos meses, à semelhança do que já está a acontecer, as empresas farmacêuticas e grupos de investigação vão anunciar os seus “resultados promissores”. Isto se o número de novos infetados não cair demasiado. Caso isso aconteça, pode ter de ser necessário infetar as pessoas deliberadamente para testar as novas vacinas.

Numa corrida em que todos querem ser o primeiro, não chega ter o melhor desempenho em cada etapa — é preciso anunciá-lo publicamente e com eficácia. O ideal é que a mensagem seja de tal forma entusiasmante que a atenção recebida se converta em dinheiro. E a estratégia parece estar a resultar. A empresa norte-americana Moderna anunciou os resultados do ensaio de fase 1 num comunicado de imprensa no dia 18 de maio e foi o suficiente para as ações da empresa terem subido quase 30% numa manhã e a bolsa de Wall Street ter encerrado o dia em forte alta. A farmacêutica sueco-britânica AstraZeneca já assegurou a venda de 400 milhões de doses da vacina que está a ser desenvolvida pela Universidade de Oxford. Esta notícia também lhes trouxe uma valorização de 3,64% nas ações na bolsa de Wall Street.

Donald Trump já deixou claro que quer uma vacina em circulação antes das eleições norte-americanas. E os cientistas, mesmo os que não estão diretamente envolvidos na investigação de novas vacinas, também se mostram otimistas — talvez não para uma vacina antes do outono, mas certamente para daqui a um ano. Otimistas, mas cautelosos quanto aos “resultados promissores”.

Moderna diz que vacina contra a Covid-19 revela resultados promissores

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Anunciar resultados em comunicados ou em conferências de imprensa, sem que tenham sido analisados por cientistas independentes e sem que sejam fornecidos dados suficientes, não é uma solução que deixe os investigadores confortáveis, como explicaram vários ao Observador. Mas foi a estratégia usada pela Moderna, a primeira farmacêutica a iniciar os ensaios clínicos de fase 1 para uma vacina contra o novo coronavírus. A empresa norte-americana deu indicação de alguns dados interessantes, mas deixou muitas questões na cabeça dos cientistas. Que quantidade de anticorpos detetaram? E o que é que isso significa? Certo é que, em 10 anos de existência, nenhuma das vacina da Moderna chegou ao ao mercado, nem tão pouco a ensaios clínicos de larga escala.

Moderna: os cientistas querem analisar os dados

Ver para crer. Os cientistas querem mesmo ver os números que apoiam aquilo que foi vagamente apresentado no comunicado e conferência de imprensa da farmacêutica Moderna.

Na procura de um certificado de qualidade, a comunidade científica prefere que os resultados sejam verificados por investigadores independentes (revisão por pares) antes de ser publicada numa revista científica. Mas a urgência de ter acesso à informação em tempos de pandemia tem feito com que muitos artigos sejam divulgados como pré-publicações, antes desta revisão por pares. Mesmo sem revisão, estes artigos apresentam muito mais dados (que podem ser verificados) do que se pode encontrar num comunicado de imprensa como o da Moderna.

Primeiro objetivo: avaliar a reação à vacina

A Moderna foi a primeira farmacêutica a iniciar os ensaios clínicos de fase 1 para uma vacina contra o SARS-CoV-2. Nesta fase, o objetivo principal era testar a sua segurança. Ou seja, se a vacina dada a voluntários saudáveis — entre os 18 e os 55 anos — não provocava efeitos adversos graves. Segundo o comunicado, a vacina “mRNA-1273 mostrou-se em geral segura e bem tolerada”. Foram registados apenas quatro casos de reações, em 45 voluntários, tendo três delas sido mais graves, mas sem constituírem ameaça à vida das pessoas. Como as reações mais graves aconteceram no grupo que estava a receber a dose mais alta, essa dose foi retirada dos próximos ensaios.

Mas é neste ponto que termina a confiança dos investigadores em relação ao resultados provisórios apresentados. E uma das dúvidas surge logo em relação ao próprio anúncio: porque é que a Moderna o fez sozinha, sem o parceiro no desenvolvimento da vacina, o Instituto Nacional das Doenças Alérgicas e Infecciosas (NIAID), parte dos Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos (NIH)?

“É estranho que tenha sido só um comunicado de imprensa. O NIAID é geralmente muito bom a fazer publicidade de descobertas importantes.”
Marc Veldhoen, imunologista no Instituto de Medicina Molecular

“É estranho que tenha sido só um comunicado de imprensa. O NIAID é geralmente muito bom a fazer publicidade a descobertas importantes”, diz ao Observador Marc Veldhoen, imunologista no Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa. O investigador admite que isto permite mostrar que estão a fazer alguma coisa, mas a falta de dados é “muito dececionante”.

O instituto norte-americano não emitiu nenhum esclarecimento sobre o assunto, mas o seu diretor, Anthony Fauci, disse durante uma audiência no Senado que “não era um tiro no escuro”. “Este é um vírus que induz uma resposta imune e as pessoas recuperam. O próprio facto de o corpo ser capaz de limpar espontaneamente o vírus diz-me que, pelo menos do ponto de vista conceptual, podemos estimular o corpo com uma vacina que induza uma resposta semelhante.”

A verdade é que os dados são de facto muito preliminares. Este ensaio clínico deveria envolver não só 45 pessoas entre os 18 e 55 anos, tal como é referido no comunicado, mas também 30 entre os 56 e os 70 anos e mais 30 acima dos 71 anos, sobre os quais nada é dito. Cada um destes grupos etários seria dividido para receber uma das três doses em estudo.

Segundo objetivo: avaliar a resposta imunitária

Ainda que o objetivo principal de um ensaio clínico de fase 1 seja avaliar se a vacina é segura e não causa efeitos secundários graves, também é possível fazer medições adicionais que podem fornecer pistas para as fases seguintes. Neste caso, os investigadores escolheram avaliar os anticorpos. E é aqui que os cientistas externos à experiência levantam mais dúvidas.

Ao 43.º dia, o nível de anticorpos com capacidade para reconhecer e se ligar ao vírus era tão bom ou melhor que nos doentes que tinham recuperado da doença, anunciava o comunicado, sem fornecer informação sobre a quantidade de anticorpos nos voluntários vacinados ou nos doentes que usaram como referência.

Os investigadores interrogaram-se imediatamente: que nível de anticorpos nos doentes em convalescença foi considerado? Das poucas coisas que já aprendemos com o SARS-CoV-2 é que os doentes podem ter respostas imunitárias muito diferentes, com maior ou menor produção de anticorpos, e as pessoas infetadas podem ir de assintomáticas a estados muito graves. Também já se percebeu que, em geral, as pessoas com doença mais grave e que estiveram internadas têm mais anticorpos em circulação.

“Todos queremos ter esperança numa vacina, mas ter oito pessoas em 45 deixa-me quase mais preocupado do que esperançoso.”
Marc Veldhoen, imunologista no Instituto de Medicina Molecular

Depois, analisaram os anticorpos neutralizantes, aqueles que realmente se querem estimular com uma vacina, porque são capazes de impedir que o vírus entre nas células humanas e se comece a replicar. Mas só o fizeram em oito voluntários.

“Todos queremos ter esperança numa vacina, mas ter oito pessoas [que desenvolveram anticorpos neutralizantes] em 45 [voluntários] deixa-me quase mais preocupado do que esperançoso”, diz Marc Veldhoen. O investigador sabe que avaliar a presença destes anticorpos leva tempo, mas pergunta: “Porque é que não esperaram mais uma semana até terem testado uns 20? Vinte não seria o mesmo que 100, mas já não seria mau”.

Mais uma vez, para definir um nível ótimo de resposta, a quantidade de anticorpos é comparada, segundo a Moderna, com os “níveis geralmente vistos no soro de doentes em convalescença”. Com tanta variabilidade nos doentes, os investigadores perguntam o que quer dizer “geralmente”. O imunologista Luís Delgado, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, vai mais longe e pergunta, à luz destes resultados, “se os anticorpos serão assim tão importantes” na resposta imunitária contra o coronavírus.

Milhares de milhões de dólares para as vacinas

O desenvolvimento de novas vacinas e os ensaios clínicos necessários são processos normalmente longos e dispendiosos. Mas o governo norte-americano está empenhado em encontrar uma vacina rapidamente e criou uma operação de financiamento especial para conseguir ter centenas de milhares de doses até ao final do ano — “Operation Warp Speed”.

Anthony Fauci já avisou que a vacina pode levar um ano ou um ano e meio a ser desenvolvida — isto se conseguirmos ser bem sucedidos. Mas Moncef Slaoui alimentou a esperança do Presidente norte-americano com os dados provisórios a que diz ter tido acesso, noticiou o jornal The Washingthon Post, a 15 de maio. Slaoui tinha saído da direção da Moderna para aceitar o cargo de coordenação científica da Operação “Warp Speed”. Tendo em conta os dados que foram revelados três dias depois, podia estar a referir-se à vacina da sua antiga empresa.

Os tais resultados promissores foram apresentados no dia 18 de maio e fizeram as ações da empresa subir, mas um artigo do STAT News em que especialistas questionavam a importância da informação dada pela farmacêutica fez com que as ações começassem a cair logo no dia seguinte. Só na sexta-feira voltaram a ter um pequeno aumento, depois de Anthony Fauci vir elogiar os resultados alcançados. “Embora os números sejam limitados, são boas notícias porque atingiram e ultrapassaram um obstáculo importante no desenvolvimento das vacinas”, disse Fauci. “Essa é a razão pela qual estou cautelosamente otimista quanto a isto.”

Em termos de financiamento, a Moderna conta já com 483 milhões de dólares (cerca de 440 milhões de euros) da norte-americana Autoridade de Pesquisa Avançada e Desenvolvimento Biomédico (BARDA), agora também ligada à Operação “Warp Speed”, para os ensaios clínicos de fase 2 e 3. A AstraZeneca também fechou um acordo com esta agência no valor de mais de mil milhões de dólares (cerca de 912 milhões de euros) para o desenvolvimento, produção e distribuição da vacina criada pela Universidade de Oxford. Para a AstraZeneca, que tem uma participação na Moderna desde 2013, somam-se as vantagens.

Farmacêutica AstraZeneca faz acordo para vender 400 milhões de vacinas aos EUA. Um quarto dos americanos desconfia da segurança

A BARDA e a Operação “Warp Speed” vão financiar o desenvolvimento das vacinas e medicamentos mais promissores — e mais relevantes para a população norte-americana —, mas a nomeação do coordenador científico levantou preocupações de conflitos de interesses. Moncef Slaoui já liderou o departamento de vacinas da farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK) e fazia parte da direção de várias empresas do ramo. O investigador de 60 anos saiu da Moderna, mas também saiu da direção do fabricante Lonza, agora parceiro da Moderna para a produção da vacina, e vai deixar de ser consultor da empresa Brii Biosciences, que tem ligações a empresários chineses de topo.

O especialista em biologia molecular e imunologia não está, no entanto, disposto a abdicar de algumas participações, como as ações que detém na GSK ou a ligação à empresa de capital Medicxi, cujos principais investidores são a GSK e a Johnson & Johnson — esta última também está a desenvolver uma vacina —, noticiou o jornal The New York Times. Mas Slaoui não é um funcionário do Estado, vai receber um dólar pelos serviços prestados, pelo que não será sujeito às mesmas regras de conflitos de interesse impostas aos funcionários públicos.

As promessas e dificuldades das outras vacinas

Nesta corrida que ainda agora começou é difícil dizer quem vai à frente ou prever quem vai conseguir uma vacina em primeiro lugar. Cada empresa tem a sua estratégia: umas usam o vírus SARS-CoV-2 enfraquecido ou inativado; outras usam um vírus conhecido e modificado onde incluem a parte do coronavírus que querem estudar; outras usam apenas partes das proteínas virais; outras ainda usam fragmentos do material genético do vírus (que vão entrar nas células humanas e produzir as proteínas virais). Seja qual for a estratégia, o objetivo final é sempre o mesmo: apresentar moléculas estranhas ao organismo de forma a que o sistema imunitário possa dar uma resposta adequada.

“Ainda é cedo para dizer se alguma estratégia vai funcionar melhor do que outra.”
Maria João Amorim, investigadora no Instituto Gulbenkian de Ciência

“Ainda é cedo para dizer se alguma estratégia vai funcionar melhor do que outra”, diz ao Observador Maria João Amorim, investigadora no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras. “Algumas estratégias já foram bastante testadas e funcionam para outros casos [como os vírus inativados] e há outras estratégias que são absolutamente inovadoras e para as quais não temos grandes dados [como o uso de material genético do vírus].”

A grande vantagem de usar fragmentos do material genético do vírus, como está a fazer a Moderna, é reduzir a quantidade de adjuvantes (os componentes da vacina que ajudam a fazer chegar o vírus ou as partes do vírus ao sistema imunitário e que estimulam a sua resposta), porque são estes componentes que, normalmente, desencadeiam os efeitos secundários adversos. A desvantagem é que se for usado ADN viral, este tem de entrar dentro dos núcleos das células humanas e há o risco de que se funda com o ADN humano. A Moderna usa ARN mensageiro, que não precisa de entrar nos núcleos e que já está pronto para transmitir à célula a informação de como produzir a proteína viral. Quando esta proteína aparece na superfície das células é detetada pelo sistema imune. Ainda não há, contudo, nenhuma vacina deste tipo no mercado.

O que os grupos de investigação procuram neste momento é que a sua vacina consiga estimular a produção de anticorpos neutralizantes, aqueles que se ligam ao vírus e que o impedem de entrar nas células. Na verdade, é como se colássemos um bocado de plasticina na chave do vírus e ele depois não a conseguisse usar na fechadura da célula.

Usar um vírus com a coroa de outro

A Moderna anunciou que foi possível detetar este tipo de anticorpos neutralizantes, mas os resultados e a forma como foram anunciados levantaram dúvidas. A equipa de Feng-Cai Zhu, do Centro para a Prevenção e Controlo de Doenças da província de Jiangsu (China), por sua vez, apresentou os resultados na conceituada revista científica The Lancet. O estudo que teve lugar em Wuhan usou um vírus modificado com proteínas da coroa do SARS-CoV-2 e conseguiu que o sistema imunitário dos voluntários produzisse anticorpos neutralizantes e células T específicas (outro componente importante da resposta imunitária). Os autores consideram que os resultados permitem avançar com esta abordagem para a próxima fase de ensaios clínicos.

China diz que está já a testar cinco vacinas em pessoas

Este ensaio, como o da Moderna, servia, no entanto, para avaliar a segurança da vacina. Dos 108 voluntários, 87 apresentaram efeitos secundários, fracos ou moderados, depois da vacinação — dor no local da picada, febre, cansaço, dor de cabeça e dores musculares —, sem diferenças significativas entre o tipo de dose dada, e que passaram naturalmente em pouco tempo.

Os autores reconhecem as limitações do trabalho, como o número reduzido de voluntários, o curto tempo em que os participantes foram seguidos depois da vacinação (28 dias) ou o facto de nenhum ter mais de 60 anos, quando o grupo de risco está precisamente acima desta idade. A equipa espera ter mais respostas à medida que avança para os ensaios clínicos de fase 2 e 3.

Os resultados em modelos animais

A equipa de Feng-Cai Zhu referiu ainda os resultados não publicados dos ensaios pré-clínicos com furões, em que sete dos oito furões vacinados não tinha sinais de vírus na colheita feita nas narinas — contra o grupo não vacinado, em que sete em oito indicavam a presença de vírus nas narinas. A ausência de vírus detetável na amostra recolhida nas narinas é um bom indicador de que o vírus foi neutralizado, ou seja, que depois da infeção não se conseguiu replicar.

Outra equipa chinesa, liderada pela empresa biotecnológica Sinovac, mostrou que uma vacina baseada no SARS-CoV-2 inativado levou à produção de anticorpos neutralizantes pelo sistema imunitário de ratos, ratazanas e macacos rhesus, segundo os resultados publicados na revista Science. A equipa concluiu também que, “embora ainda seja muito cedo para definir o melhor modelo animal para o estudo de infeções por SARS-CoV-2, os macacos rhesus que imitam sintomas do tipo Covid-19 após a infeção por SARS-CoV-2 parecem modelos animais promissores para o estudo da doença”.

Os macacos rhesus também foram usados por uma equipa do NIAID para testar a vacina ChAdOx1 nCoV-19 desenvolvida pela equipa do Instituto Jenner, na Universidade de Oxford (Reino Unido). Esta vacina também usa um vírus modificado a que se juntaram proteínas da coroa do SARS-CoV-2. Os macacos vacinados produziram anticorpos neutralizantes e não desenvolveram pneumonia quando foram expostos ao vírus, conforme uma pré-publicação (não revista por pares) no bioRxiv.

Macacos infetados ganharam anticorpos contra o vírus 14 dias depois de receberem a vacina da Universidade de Oxford

Mas todos os macacos, vacinados e não vacinados, apresentavam vestígios do material genético do vírus nas narinas — só não foi possível determinar se por ainda poderem ser transmissores do vírus ou se por terem sido expostos a uma carga viral muito grande (muito maior do que aconteceria em condições naturais). “Se apenas protegerem da doença pulmonar, já é uma vantagem”, diz ao Observador Luís Delgado, professor de Imunologia básica e clínica na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. “Mas não é este o tipo de vacina que se procura para o SARS-CoV-2, que é um vírus extremamente contagioso. Queremos uma vacina que corte a cadeia de infeção.”

Douglas Reed, especialista em aerobiologia no Centro para Investigação em Vacina da Universidade de Pittsburgh (Pensilvânia, Estados Unidos), levanta algumas dúvidas sobre os resultados em macacos, porque diz que estes só desenvolvem sintomas ligeiros quando infetados com coronavírus. E para perceber se as vacinas impedem mesmo a transmissão, seria preferível testar em furões e hamsters que são naturalmente suscetíveis e que parecem capazes de transmitir o vírus, diz à Nature.

A Moderna também fez ensaios laboratoriais, mas com ratos, e anunciou que tinha conseguido que a vacina impedisse a replicação do vírus nos pulmões. O problema aqui, como indica a Nature, é que o vírus SARS-CoV-2 (incluindo a proteína da coroa que muitas vacinas estão a usar) teve de ser modificado para poder infetar os ratos, o que pode mudar a resposta imunitária nos ratos e que dificulta a extrapolação dos resultados para os humanos.

O que aprendemos com experiências passadas

Os humanos convivem com os coronavírus há muito tempo, basta pensar que alguns deles conseguem provocar as vulgares constipações. O SARS e o MERS também são coronavírus, mas estes provocam infeções mais preocupantes. Ainda assim, não foi possível desenvolver uma vacina segura e eficaz para nenhum destes vírus, porque os surtos foram controlados antes que isso acontecesse. “Ninguém financia coisas que já não parecem muito relevantes”, diz Marc Veldhoen. Mas o investigador acredita que a ameaça agora é grande o suficiente para não se deixar passar.

Um dos problemas com o desenvolvimento de vacinas contra o SARS foi a resposta imunitária que desencadeavam: os animais vacinados apresentavam doenças mais severas depois de expostos ao vírus do que os animais não vacinados. A vacina contra o novo coronavírus, ainda que tenha como base as experiências da vacina contra o SARS terá de acautelar este aspeto. Nenhuma das experiências com macacos rhesus aqui referidas detetaram estes efeitos negativos.

“Não é este o tipo de vacina que se procura para o SARS-CoV-2, que é um vírus extremamente contagioso. Queremos uma vacina que corte a cadeia de infeção.”
Luís Delgado, professor de Imunologia básica e clínica na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Outro aspeto desconhecido sobre o novo coronavírus é a duração dos anticorpos, refere Marc Veldhoen. “Nos coronavírus das constipações, os anticorpos mantêm-se apenas alguns meses. No caso do SARS e MERS, aquilo que foi registado é que os anticorpos podiam durar entre seis meses e três anos.”

Espera-se, no entanto, que para os coronavírus, em particular o SARS-CoV-2, seja mais fácil preparar vacinas do que para o vírus da gripe. O vírus da gripe é altamente mutável, fazendo com que a cada ano o sistema imunitário tenha de estar a lidar com uma situação diferente. As mutações dos coronavírus não são tão radicais.

Porque é que é tão difícil desenvolver novas vacinas?

Desenvolver uma vacina pode demorar cinco ou 10 anos e, até agora, nenhuma foi conseguida em menos de quatro. Ainda assim, as apostas estão a ser feitas numa vacina que possa estar no mercado daqui a um ano. Há quem prometa ainda menos tempo, mas há passos que serão impossíveis de saltar, como os testes de segurança e eficácia. “Estou confiante que vamos ter uma vacina, mas não ficaria de todo chocada se passado um ano ou um ano e meio ainda não tivéssemos chegado lá”, diz a investigadora Maria João Amorim.

A investigadora — que também está a trabalhar com o novo coronavírus para descobrir aquilo de que ele pode precisar das células para se replicar e assim poder identificar o seu ponto fraco — diz que é preciso percebermos o que é que o SARS-CoV-2 faz ao sistema imunitário quando infeta uma pessoa. Há muita coisa por descobrir e é por isso que acha que ainda pode levar muito tempo até termos uma vacina.

Segurança

Avaliar a segurança é prioritário no desenvolvimento das vacinas, por isso é o foco da primeira fase dos ensaios clínicos e até da segunda, num grupo mais alargado. Mas a segurança não deixa de ser avaliada nas fases seguintes, nem quando as vacinas são introduzidas no mercado, porque o verdadeiro teste para os efeitos adversos raros é feito quando há um grande número de vacinas dado a pessoas muito diferentes e nem todas absolutamente saudáveis.

Com as vacinas, ainda mais do que com os medicamentos, a segurança tem de atingir o maior nível possível, porque se aceitamos ter alguns efeitos secundários com um medicamento que nos vai tratar uma doença pior, temos mais dificuldade em aceitar efeitos secundários num fármaco que deveria servir para nos proteger das doenças. Colocar uma vacina no mercado que não seja comprovadamente segura ou eficaz é arriscar que todo o processo de vacinação seja questionado, dizem os investigadores ao Observador.

Fact Check. Morreu a primeira voluntária que recebeu a vacina da Covid-19?

No caso da vacina contra o SARS-CoV-2 também é preciso ter em consideração que os eventos raros, que acontecem uma em cada 25 mil pessoas vacinadas, vão parecer muito mais comuns quando se vacinarem milhões de pessoas, alerta Arthur Caplan, bioético na Langone Health da Universidade de Nova Iorque (Estados Unidos), citado pela revista MIT Technology Review.

Olhando para as estratégias que estão a ser usadas para desenvolver uma vacina contra o coronavírus e aquilo que já se sabe sobre vacinas anteriores, Maria João Amorim explica que as diferenças:

  • Os vírus inativados são uma abordagem muito comum, mas complexa. Se não estiverem completamente atenuados podem combinar-se com vírus próximos e voltar a estar ativos. Se tudo correr bem, a resposta imunitária é mais completa porque o sistema imune teve contacto com todos os componentes do vírus.
  • Usar um vírus modificado com a proteína do vírus que se pretende combater é uma abordagem relativamente segura, porque o vírus foi modificado de forma a não causar danos nos humanos vacinados.
  • Para as vacinas que usam o material genético do vírus é preciso estar mais atento aos resultados dos testes de segurança, porque ainda não existe nenhuma vacina deste tipo no mercado e não se sabe que efeitos adversos podem ter a médio e longo prazo.

“Quando há uma abordagem nova é preciso uma informação de segurança bastante sólida”, diz Luís Delgado. “Tecnicamente [as vacinas à base de material genético] não são difíceis de produzir, mas ainda não há nenhuma vacina humana aprovada com esta tecnologia, o que levanta logo algumas dúvidas.”

Eficácia

“Se tivermos uma vacina que protege já é bastante bom”, diz Maria João Amorim. Mas não é exatamente isso que se espera da vacina contra o SARS-CoV-2. O que se quer é que a vacina provoque uma reação imunitária capaz de eliminar o vírus ou de o impedir de entrar nas células para que não se replique, impedindo assim que seja transmitido a outras pessoas.

Agora, que resposta é esta de que precisamos — anticorpos neutralizantes, células T ou outros componentes da resposta imune — e com que intensidade — por exemplo, número de anticorpos — ainda está por definir. Da mesma forma, não se sabe se a resposta provocada pela vacina se mantém e durante quanto tempo.

“Se tivermos uma vacina que protege já é bastante bom.”
Maria João Amorim, investigadora no Instituto Gulbenkian de Ciência

Estas respostas podem demorar mais a alcançar do que o desenvolvimento da própria vacina. E podem só ser dadas em ambiente de laboratório, que não é exatamente igual ao que acontece no organismo. Assim, e para testar se a vacina é eficaz ou não, é preciso escolher um ou mais grupos de pessoas na mesma população e que estejam expostos ao mesmo risco de infeção — por exemplo, os enfermeiros que tratam doentes com Covid-19 num hospital — e dividi-los em dois grupos: um que vai ser vacinado e outro que não. Como a probabilidade de serem expostos ao vírus é, à partida, equivalente, depois analisa-se em que grupo houve mais pessoas infetadas. Se for no grupo não vacinado, é porque a vacina terá conferido proteção.

Sobre a duração da imunidade, será no máximo tão duradoura quanto o tempo que passou desde o início do estudo. Se tivermos vacina daqui a seis meses, só podemos dizer que a imunidade dura seis meses. Para podermos dizer que as pessoas se mantiveram imunes durante um ano, temos de esperar 12 meses desde a vacinação. E assim por diante. Mas ninguém vai esperar tanto tempo para dar continuidade aos ensaios clínicos e eventualmente pôr uma vacina no mercado.

Ensaios clínicos

Há muitas coisas que podem correr mal durante um ensaio clínico, a começar pelos efeitos adversos severos. Mas não há nada pior para testar a eficácia de uma vacina do que já não ter a doença em circulação na população. E as medidas de contenção estão a ser tão eficazes um pouco por todo o mundo que é esse o risco que corremos neste momento: controlamos a pandemia, mas boicotamos a possibilidade de criar uma vacina que nos possa ser útil para prevenir as próximas vagas.

O número de novos infetados está a diminuir tão rapidamente no Reino Unido que os investigadores da Universidade de Oxford receiam não ter forma de confirmar se a vacinação funciona porque não haverá pessoas infetadas suficientes para o dizer. Isto compromete os prazos ambiciosos para ter a vacina ChAdOx1 nCoV-19 no mercado no mês de setembro.

Oxford: Coronavírus está a desaparecer demasiado rapidamente para se conseguir vacina

“Os ensaios clínicos têm de ser feitos durante a fase de propagação ativa da doença”, diz Luís Delgado. Infetar deliberadamente as pessoas levanta questões éticas, explica o imunologista, “especialmente quando ainda não existe um tratamento eficaz para a doença”.

Mas esta é uma hipótese possível. A Organização Mundial de Saúde já criou as orientações para que esse tipo de ensaios possa avançar e que incluem ser feito apenas com pessoas saudáveis e jovens (entre os 18 e os 30 anos), com o menor número de voluntários possível (100 poderá eventualmente ser suficiente) e com consentimento informado, entre outros requisitos. A ideia também é defendida por alguns especialistas no Reino Unido e não é descartada pela equipa de Oxford, refere o jornal The Guardian.

Porém, nem todos os especialistas britânicos concordam com a abordagem. Há critérios específicos que têm de ser cumpridos e esta situação não parece preenchê-los. “Em primeiro lugar, o vírus deve estar muito bem estudado e o seu comportamento clínico deve ser conhecido em pormenor. O vírus também deve ser incapaz de causar doenças graves em indivíduos saudáveis ou deve haver um medicamento altamente eficaz para eliminar a infeção. Nenhum desses critérios foi verificado na Covid-19. E ficaria muito preocupado se soubesse que os testes de desafio [infeção deliberada dos voluntários] estavam a ser planeados”, diz Eleanor Riley, imunologista na Universidade de Edinburgo, citada pelo The Guardian.

A verdade é que com a busca de vacinas por tantos grupos ao mesmo tempo e com tanto dinheiro dos Estados Unidos a impulsionar estes projetos, podem ser necessários mais de 150 mil voluntários para dar resposta a todos os ensaios clínicos, refere a Reuters.

“Os ensaios clínicos têm de ser feitos durante a fase de propagação ativa da doença.”
Luís Delgado, professor de Imunologia básica e clínica na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Produção em larga escala

E quando todos estes problemas estiverem ultrapassados e tivermos finalmente uma vacina aprovada e pronta a entrar no mercado é preciso considerar que nenhuma empresa conseguirá produzir de uma vez vacinas que sirvam todos os países, talvez nem mesmo os mais vulneráveis. E os países que mais investem no desenvolvimento das vacinas não estarão certamente disponíveis para enviar aquilo que produzem antes de vacinarem toda a população.

Na Europa, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) pediu uma “abordagem coordenada” entre os Estados-membros “para identificar aqueles que mais beneficiarão com a vacina”, noticiou a Lusa. De acordo com Guido Rasi, diretor executivo da EMA, “não haverá [logo] doses suficientes para toda a população”.

A produção de vacinas em quantidade suficiente para distribuir na Europa pode levar vários meses, lembrou Sergio Brusin, especialista principal do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) para resposta e operações de emergência. “É preciso haver uma produção segura, fazer a distribuição, priorizar a quem dar primeiro. É muito provável que isso só aconteça em 2021.”

E tudo isto se acreditarmos que vamos mesmo ter uma vacina contra o SARS-CoV-2. Marc Veldhoen prefere manter-se otimista, mas ao mesmo tempo realista: não acredita que a primeira vacina criada seja perfeita. Luís Delgado prefere pôr as fichas nos tratamentos, como anti-víricos e anticorpos produzidos em laboratório, porque serão mais fáceis de desenvolver e produzir. Maria João Amorim deixa no ar a dúvida: sabe-se tão pouco sobre o novo coronavírus que não sabemos como se vai estabelecer na população. “Vai tornar-se numa constipação normal ou vai continuar a atacar as pessoas mais suscetíveis de forma tão severa como temos vistos até aqui?”

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