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No último dia de 2024, ano que ficou marcado em Moçambique por uma revolta popular sem precedentes desde a independência de Portugal, as tréguas voltaram às ruas do país. Até dia 2 de janeiro, quando será conhecida a fase final, a “Ponta de Lança”, da contestação aos resultados eleitorais oficiais que deram a vitória a Daniel Chapo, o candidato da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), partido no poder há 49 anos.
No entanto, o ano não termina sem uma forma protesto. Nesta terça-feira à noite, às 23h45 os moçambicanos são chamados a unir-se cantando o hino nacional até o relógio entrar em 2025. O apelo foi feito por Venâncio Mondlane, o candidato independente, apoiado pelo partido Podemos, que diz ter vencido as eleições presidenciais a 9 de outubro e que, a partir do estrangeiro, tem liderado o movimento de repúdio aos dados da Comissão Nacional de Eleições validados pelo Conselho Constitucional a 23 de dezembro.
Venâncio Mondlane adia anúncio da “Ponta de Lança” e diz que “há pessoas a serem enterradas vivas”
Em parte incerta, Venâncio Mondlane falou com o Observador pelo telefone, mostrando-se determinado a voltar ao país, mesmo correndo risco de vida, contando como tem tido de atravessar várias fronteiras ou mudar de casa de três em três dias. Mantendo abertura para o diálogo, apesar de uma conversa inconclusiva com o atual Presidente Nyusi, confirma que já lhe ofereceram dinheiro para desistir da luta e armas para vencer um combate que até agora fez 277 mortes (dados de 29 de dezembro), centenas de feridos, milhares de detidos, e instalou o caos. Defende a anulação das eleições, convocação de novo sufrágio, e diz que vai governar a partir de 15 de janeiro.
Ouça aqui a entrevista na íntegra a Venâncio Mondlane
Há 55 dias, quando o Observador o entrevistou pela primeira vez, a 6 de novembro, dizia que havia ingredientes para uma revolução sem armas em Moçambique. Isso não aconteceu, o povo não tomou o poder e há muito sangue derramado. Na segunda-feira, na sua mais recente comunicação em direto no Facebook, dizia que são muitas as dúvidas sobre o caminho a seguir. Sente-se numa encruzilhada?
Não propriamente numa encruzilhada. O que está a acontecer é que, neste momento, as autoridades moçambicanas adotaram uma estratégia que precisa ter um outro tipo de abordagem do nosso lado. É uma estratégia de implantar o terror no meio da população, de dividir para reinar. As nossas manifestações, quando começaram a 21 de outubro, tinham o condão de, pela primeira vez depois da independência de Moçambique, criar um sentimento de unidade, um sentimento pátrio muito forte. A questão simbólica de cantar o hino nacional, cantar o hino de África, com as pessoas de mãos dadas em momentos específicos, de bater nas panelas, criou uma espécie de uniformização social, económica entre as pessoas.
Mas isso acabou…
Não posso dizer que acabou. Existe uma estratégia que visa quebrar esses laços que estavam a ser criados entre os moçambicanos em que estávamos todos afunilados para o mesmo objetivo. Agora, a estratégia é dividir os moçambicanos, colocando-os uns contra os outros. Agora está a ficar mais claro o que aconteceu no dia 24, depois do anúncio do Conselho Constitucional. As pilhagens que ocorreram foram protagonizadas, planificadas, pela Polícia da República de Moçambique. Vamos ver dois ou três casos só para concretizar o que estou a dizer.
Nós temos imagens, que se tornaram virais, de um BTR [carro blindado soviético] que arrombou os portões de um armazém, e era a própria polícia que incentivava as pessoas a entrarem.
Temos o caso chocante no bairro Benfica, na cidade de Maputo, em que num armazém de uma empresa que é representante de telemóveis e outro tipo de aparelhos, a polícia trancou mais de 60 pessoas dentro e ateou o fogo.
Temos a nossa central nacional de medicamentos, que se encontra no bairro Zimpeto, em Maputo, em que os portões foram derrubados, a população entrou, mas foi colocado fogo. Ora, não faz sentido, se a população precisa de medicamentos, que depois de saquear coloque fogo na maior central de medicamentos do país.
Há coisas que não fazem muito sentido. Numa das maiores empresas de empacotamento de vários produtos alimentares, a população entrou e depois ateou fogo. Se a pessoa está faminta, necessitada, não vai atear fogo. O mais lógico é que ela diga “vou roubar hoje, vou comer, eu preciso roubar amanhã também, então não vou colocar fogo numa empresa, no empreendimento, que eu sei que me vai dar possibilidades de roubar durante três, quatro, cinco dias”.
A “estratégia perversa” que “cria o terror e depois aparece como solução”
Mas as pilhagens não são todas da polícia ou de pessoas mandatadas pela Frelimo, convenhamos. E por outro lado, com as patrulhas dos bairros, parece que há aqui uma outra lei, um “faça-se justiça pelas próprias mãos”. Parece que os jovens não só sofrem às mãos da polícia, como também às dos vizinhos, da justiça dos bairros. Por um lado há ações para lançar o terror e o medo mas por outro parece que o poder caiu definitivamente nas ruas. Perdeu o controle das ruas?
Eu não poderia ser tão pretensioso e pensar que vou controlar toda a população que neste momento se está a manifestar. Eu dou indicativos das datas e também, mais ou menos, as formas, o padrão, em que as pessoas se vão manifestar. Agora, o que acontece? Logicamente que não são os elementos da polícia que fazem a pilhagem, porque eles são em minoria. A polícia é que derruba os portões e depois manda a população entrar e saquear. Ao longo deste tempo todo colocou-se o povo numa situação de miserabilidade, de pobreza extrema. Se tem um armazém de alimentos em que os portões são derrubados e depois se diz “olha, se vocês querem comer entrem e comam”, é lógico que as pessoas vão entrar e comer e quem olha para isto não vai perceber a estratégia, vai pensar que a população está a pilhar.
O que está a acontecer é o uso estratégico perverso da situação de miserabilidade das pessoas e levá-las a saquear empreendimentos privados. O objetivo é colocar a classe dos pequenos e médios empresários na situação de sentirem-se tão prejudicados com o movimento e se rebelarem não com as autoridades que planificaram isto, mas com o movimento contestatário. É perverso, porque é uma população que o próprio governo coloca na situação de miserável e usa a sua miserabilidade e a situação de famintos para que saqueie bens dos pequenos empresários para criar a divisão. Havia uma tendência para as pessoas estarem cada vez mais unidas, então era preciso quebrar essa tendência, essa empatia.
[Já saiu o terceiro episódio de “A Caça ao Estripador de Lisboa”, o novo Podcast Plus do Observador que conta a conturbada investigação ao assassino em série que há 30 anos aterrorizou o país e desafiou a PJ. Uma história de pistas falsas, escutas surpreendentes e armadilhas perigosas. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio.]
Ou seja, aquilo que as balas e o gás lacrimogénio não conseguiram, porque os manifestantes ficavam ainda mais revoltados, consegue-se através do medo e da desconfiança uns dos outros?
Sim, e isso não é novo, é o que se chama de “problema-reação-solução”. Quer dizer, eles próprios criam um problema que aterroriza as pessoas, veem a reação das mesmas pessoas e aparecem mais tarde como a solução desse problema. Como é que eles estão a fazer isto? Exemplo: soltam presos da maior cadeia do país. Isto cria uma reação de terror na população. O comandante-geral da polícia dá uma conferência da imprensa depois de libertar [versão oficial diz que os presos fugiram depois de um motim ou por ação de manifestantes] os presos, e passa uma mensagem, não de tranquilidade, não de serenidade, o que seria normal em qualquer responsável pela ordem e segurança do país, mas sim uma mensagem do terror. Foi como se estivesse a ser um porta-voz dos malfeitores.
Começa a dizer “olha, agora soltaram-se 1.500 presos, se cada um tiver acesso a 4 ou 5 casas, então na cidade de Maputo vai-se gerar um caos total”. Categoriza os presos, há os muito perigosos, incluindo 25 terroristas capturados em Cabo Delgado, e descreve o tipo de crimes, que podem fazer, eles vão começar agora a violar mulheres, vão fazer assaltos à mão armada. É o próprio comandante da Polícia que denuncia quais são as mensagens que eles próprios estavam a passar para os homens que tinham sido de forma propositada soltos da cadeia. Eles criam essa situação de terror e depois a população reage e eles próprios fazem as reuniões com base nos chamados secretários dos bairros, a incentivar patrulhas nos bairros.
Essas patrulhas são feitas como? São feitas com objetos contundentes. Os vizinhos começam a pegar em catanas e bastões e passam a vida toda a patrulhar o bairro. Logicamente, desvia a atenção. Já ninguém pensa nas manifestações, na injustiça eleitoral. E no meio disto, eles aparecem com a solução, a estrutura governativa, os chefes de quarteirão, os secretários do bairro, vem a polícia dizer que vai colocar ordem numa desordem e num perigo, que foi a própria polícia que causou.
“Os homens-bala que estão a ser enterrados vivos”
Na segunda-feira disse que havia pessoas a serem enterradas vivas, penso que estará a falar dos naparama [guerreiros tradicionais, que tiveram um papel importante na guerra civil moçambicana, do lado da Renamo, que mediante uma prática de feitiçaria acreditam que as balas não os matam]. Que situações foram estas?
Isto ocorreu em Nampula e na Zambézia. Eu tenho algumas dúvidas quando aos objetivos dos naparama, dos homens-bala. Numa primeira fase, dá a impressão de que se revoltaram contra as entidades governativas. Atacaram algumas esquadras, aparentemente não estavam a atacar a população. Nos últimos vídeos a que estamos a ter acesso, usando a ideia de que estão espalhados em tudo que é lugar, estão a fazer sequestros e raptos de jovens. Por exemplo, no distrito de Monapo, em Nampula, numa localidade que se chama Nacololo, ainda ontem [segunda-feira] foram sequestrados 45 jovens acusados de terem, no seu corpo, incisões com lâminas que são sinais de métodos mágicos para os tornar imunes às balas de armas convencionais. E a justificativa é que queriam fazer parte ou faziam parte do grupo que estava a passar por rituais mágicos para serem naparamas. Então, aqui, arranja-se também um móbil para que se comece a fazer sequestros e raptos seletivos, porque já existe uma justificativa, porque se os naparamas atacaram esquadras, eles podem sequestrar jovens como quiserem e executá-los.
Então, mas quem é que é enterrado vivo?
São estes jovens que são enterrados vivos, porque se diz que, “bom, já que vocês têm no vosso corpo as escoriações e não morrem com balas, pelo menos vocês vão morrer por baixo da terra”. E o mais curioso é que é a própria polícia que filma isso.
Quando começou esta luta, esperava que o curso dos acontecimentos trouxesse o país até este caos, havendo mesmo quem fale de uma certa haitização, por referência ao que se passa no Haiti?
Não, por uma razão muito simples: as nossas manifestações nunca visaram fazer nenhum tipo de caos no país. Desde o início que eram manifestações pacíficas e quando eu falei de uma revolução sem armas, era no sentido de conseguirmos ter um número de pessoas mobilizadas nas manifestações que obrigaria naturalmente o regime a ceder.
Mas isso não aconteceu, o regime já mostrou que não deixa o poder de forma alguma pela força das ruas. Até quando é que isto vai continuar?
Não podemos dizer que ainda não aconteceu, porque ainda não é um processo conclusivo. Há diferentes estratégias a ser implementadas. Desde as nossas primeiras manifestações, desde o 21 de outubro, quando depois do assassinato do meu advogado pessoal eu convoquei uma greve nacional, [a intenção nunca foi] uma manifestação para destruir absolutamente nada, nem privado, nem público.
Certo, a intenção era essa, mas a realidade é outra.
Sim, mas esta realidade, que é outra, não é uma realidade criada pelos manifestantes. É criada, induzida pelas autoridades policiais e pelo atual governo. As pessoas estão a deixar-se levar pelos efeitos e não olham para as causas. Por exemplo, no caso do armazém cujas portas foram arrombadas pela polícia. A população entrou e tirou arroz, e dizem “estão a saquear, a destruir os bens dos empresários”, mas ninguém, por exemplo, reparou que antes a polícia usou um carro blindado militar para destruir o portão e a própria polícia convocou as pessoas a entrar… Isto é importante, porque, se a gente se focar nos efeitos, vamos ficar sempre com a tendência de que se perdeu o controle, de que já se perdeu a direção das coisas, mas não. Por exemplo, se alguém diz “ah, mas agora está tudo mal por cá, homens-catana andam pelos bairros”, temos de perceber quem são esses homens-catana. São uma criação exatamente da própria polícia. É uma ideia que eles lançaram e as pessoas aterrorizadas já não dormem à noite a fazer as patrulhas e não encontram nenhum homem-catana, de dia as pessoas estão cansadas, e é de dia que fazemos a manifestações. Então, ninguém se vai manifestar por estar cansado.
Mas há ativistas que disseram que alguns dos reclusos foram munidos de catanas, por isso deve existir alguma base de verdade nisso, não?
Não tenho essa informação. Mas se foram armados de catanas, então também há aí mais uma razão de suspeita. Se eu estou evadido de uma cadeia, a tendência natural do ser humano normal é para tentar um ponto de fuga ou voar para a minha família ou fugir da área. A pessoa não vai sair da cadeia e a primeira coisa que faz é ir buscar uma catana para andar nos bairros a aterrorizar, isso não faz sentido nenhum.
“Por mim, já teria parado estas manifestações”
O número de mortes é elevado, de feridos e detidos também, os empresários de Moçambique dizem que pelo menos 500 empresas foram vandalizadas e/ou saqueadas e que, por causa disso, há 12 mil pessoas no desemprego e que vai haver escassez de bens, além de que os preços vão subir. Até onde é que está disposto a ir? Quanto mais sangue terá de ser derramado?
Por mim, pela minha sensibilidade, eu já teria parado as manifestações, mas a questão é que não estou a sacrificar-me por razões meramente pessoais. Há uma necessidade, há um grito de socorro, de uma população, que quer acabar com o atual sistema de coisas. E é por isso mesmo que nós, por exemplo, fizemos um ensaio ainda há pouco tempo, e dissemos “existe uma possibilidade de dar uma trégua de cinco dias, mas precisava de ouvir qual é a perceção que as pessoas têm”. Então, nós recebemos quase 50 mil e-mails e 70% das pessoas querem que as manifestações continuem. As pessoas têm um claro sentimento de que o partido está a governar de forma ilegítima ao longo de 30 anos e que a Frelimo se tornou claramente uma organização criminosa, disso não há dúvidas nenhumas. Depois, as pessoas sentem que o ambiente de insegurança, mesmo antes deste movimento, era extremo. Há um sentimento, uma perceção de que o problema do conflito em Cabo Delgado foi criado, porque não é um terrorismo convencional que se tem visto em outras esferas, é um terrorismo induzido por interesses económicos da atual elite económica de Moçambique. E há os raptos e sequestros que há mais de 11 anos vêm criando um ambiente de instabilidade no país. Portanto, há uma instabilidade total e depois, por outro lado, a miserabilidade em que o povo se encontra em contrapeso com a descoberta de novos recursos naturais que são dos maiores do mundo. Então, as ruas tiveram a convicção de que têm de se manifestar, de se rebelar, de protestar contra esse sistema de coisas.
Certo, mas há mais de dois meses que estão nas ruas a protestar e não está a resultar. Até quando?
Depende. Como é que se faz a medição exata do tempo ideal para uma manifestação? Depende. No Malawi foram três meses. Claro que não houve tantas mortes como em Moçambique. Houve uma tentativa de fraude eleitoral, o povo foi para a rua e o exército acabou se juntando ao povo.
E aqui o exército não se está a juntar ao povo, contrariamente à sua expectativa inicial.
Mas houve realidades em que foi um mês, uma semana, dois dias. Estamos a falar de fenómenos sociológicos e não propriamente fórmulas de um laboratório ou uma fórmula química, não é tão linear como é que estes fenómenos ocorrem ou como é que eles se consumam.
“Posso não governar em termos convencionais, mas certamente que eu vou governar”
Tem havido uma grande pressão e várias vozes a pedirem diálogo. No dia 18, quando esteve numa conversa organizada no Parlamento Europeu, disse que o Presidente moçambicano lhe tinha telefonado. O que que saiu dessa conversa? O que que lhe disse Filipe Nyusi?
Dessa conversa não saiu nada. Foi uma conversa amena, mas, em termos concretos, tudo ficou tal e qual. A única questão que o Presidente fincava era que tínhamos que esperar pelos resultados do Conselho Constitucional. Mas todas as manifestações, tudo quanto ocorreu, era exatamente porque estávamos à procura de encontrar uma forma de entendimento, que não fosse arrastar o caso até ter a decisão do Conselho Constitucional. Porque em todo o processo, desde o início — desde a votação até ao Conselho Constitucional são mais ou menos 5 a 6 etapas —, tínhamos irregularidades registadas, não só por nós, até por missões internacionais de observação eleitoral. Isso significa que o processo já vinha viciado desde a primeira etapa, a do chamado apuramento parcial. Então, esperar pelo anúncio dos resultados definitivos e a proclamação dos mesmos era esperar pelo anúncio de um resultado cujo processo estava visivelmente viciado. Eu insisti noutra abordagem, mas ele dizia que não, então a coisa ficou por aí.
E entretanto, nesta segunda-feira, os quatro partidos da oposição, incluindo o
Podemos [Partido Otimista para o Desenvolvimento de Moçambique], que o apoia, reuniram-se com o presidente Nyusi e disseram que iriam dialogar. Isto é um movimento à sua margem? Sente-se isolado?
Não, não me sinto isolado, porque tive conhecimento e dei a minha opinião. Graças a Deus, todos os partidos que estiveram neste encontro foram unânimes em dizer que não reconheciam os resultados.
Tem-se dito sempre aberto ao diálogo nos seus termos, referindo que nem o Presidente Nyusi nem a Frelimo aceitam dialogar. Tem havido vários apelos para que as duas partes façam cedências. Está disposto a ceder em algum ponto?
Se for realmente diálogo, temos que estar dispostos a ceder, haverá naturalmente ganhos e cedências. O único problema é que, como não tenho os termos de referência do que eles podem propor, fica um pouco difícil, mas em termos de princípio, sim. No diálogo, temos sempre que ir abertos não para impor a nossa vontade, mas também para saber qual é o equilíbrio que podemos encontrar.
Disse que vai tomar posse a 15 de janeiro. Como?
Já tivemos alguns debates online relativamente aos aspetos constitucionais de uma tomada de posse paralela. Temos um draft já elaborado, para a criação de um tribunal popular — porque tem de ser um órgão judicial a dar posse —, nesse sentido.
Mas é simbólico, não vai governar, ou o país vai ter dois presidentes?
Posso não governar em termos convencionais, mas certamente que eu vou governar, como se tem visto até agora, já fizemos um ensaio disso. Se for eu a dizer que amanhã vamos parar a atividade laboral, e se for o Presidente da República a dizer que vamos trabalhar, a gente já sabe a quem é que as pessoas vão obedecer. Isso é governar.
Então, de facto, sempre tem o poder da rua… Saiu do país depois de ser atacado com gás lacrimogénio, quando dava uma conferência de imprensa, depois disso sofreu algumas tentativas de assassinato, mas diz que a 15 de janeiro, o dia da tomada de posse Daniel Chapo, já estará em Moçambique para essa tomada de posse paralela. Já não receia pela sua vida? O que é que mudou?
Desde o início que queria voltar a Moçambique, inclusive, no dia 7 de novembro. Mas começaram a chover vídeos, áudios, e-mails das pessoas a dizer que não, até a proibir-me de voltar e eu não voltei a pedido dos moçambicanos.
Mas não tem medo de ser assassinado agora?
Em algum momento eu terei de voltar, eu não vou estar no exílio para sempre. E estas manifestações eram para ver se até a tomada de posse podia haver alguma mudança naquilo que eram os resultados falsos anunciados pela Comissão Nacional de Eleições. Terminado este período, porque é que eu tenho de continuar no exílio? Não faz sentido, eu volto ao país. Agora, se isso resultar, digamos assim, numa tentativa contra a minha vida física… bom, são os riscos por que passam todos aqueles que carregam causas comuns.
Por isso está disposto a morrer?
Sim, quer dizer, não porque seja um masoquista, um suicida, mas no sentido de que não vou ficar no exílio para sempre, e volto ao país. Só Deus sabe o futuro, mas eu volto ao país.
“O mais pacífico seria anulação das eleições e convocar novo ato eleitoral”
Tem sempre falado em tirar a Frelimo do poder, a questão é: está preparado para governar, tem uma equipa, um governo-sombra?
Sim. Logo depois de nós fazermos a contagem paralela — as eleições foram no dia 9, nós no dia 10, 11 já tínhamos uma boa parte da contagem paralela feita, estávamos a 25 % do total —, demos uma conferência de imprensa. E eu disse claramente que já tinha uma equipa formada para um diálogo para a transição governativa, portanto, já temos uma equipa preparada, pelo menos nos sectores chave de governação. Não posso neste momento dar a conhecer essa equipa por razões óbvias.
O que pode acontecer até 15 de janeiro? Porque a luta pela verdade eleitoral parece ter chegad0 ao fim, o Conselho Constitucional, a última instância, já validou os resultados da Comissão Nacional de Eleições. Está disposto a manter estas manifestações pacíficas até então. Assume o poder no Tribunal Popular a 15 de janeiro, mas qual seria o cenário ideal para si, para isto acabar? A Frelimo pedir desculpa e convocar novas eleições? Um governo de unidade nacional?
Claro que o nosso primeiro ponto era a reposição da verdade eleitoral. E algumas organizações da sociedade civil já tinham dado tópicos de como se chegar a isso. Poderia ser uma recontagem, poderia ser a partir de uma auditoria forense. Caso fosse inviável, o mais pacífico seria uma anulação das eleições e, naturalmente, convocar novo ato eleitoral.
“Se for para a defesa do povo”, oferta de ajuda armada “seria bem-vinda”
Tem-se afirmado sempre como pacifista, no entanto, numa das suas lives, parece ter aberto a porta a um armamento das suas hostes de apoio. Depois clarificou, disse que colocaram essas hipóteses à sua disposição, que estavam disponíveis, mas que tem resistido. Já alguém lhe ofereceu armas?
Ah, armas não, quer dizer, eu também nunca faria isso. Quando grupos paramilitares, ou grupos ligados às forças de segurança me falam de um golpe de Estado movido pelos militares, sempre digo que não será a minha opção. Sou civil e a minha luta vai ser sempre puramente civil. Chegar ao poder por via de forças militares não fazia sentido absolutamente nenhum. Agora, face a estes assassinatos, já recebi vários contactos a dizer “nós podemos defender a população, o que acha? Nós podemos, com a força das armas — são pessoas qualificadas, desde ex-guerrilheiros da Renamo a algumas forças do atual exército — defender a população que está a ser chacinada”. Nunca dei uma resposta sobre isso. Quando falei no assunto [na live] foi no sentido de, se isto continuar desta forma, a gente vai pedir apoio também a essas forças que já existem para defender a população.
Então, aceita essa possibilidade, de se armar?
Não, não no sentido de eu armar-me ou criar um exército paralelo, isso nunca eu farei, ou criar um movimento rebelde, isso nunca farei. O que estou a dizer é que, dentro das forças de defesa e segurança, existem pessoas que dizem claramente que queriam defender a população, queriam se rebelar contra isso.
Mas está disponível a aceitar essa oferta ou não?
Essa não é uma oferta no sentido de uma força à minha disposição. Essa seria uma iniciativa dessas mesmas forças, elas próprias, digamos, usando meios que conhecem para defender a população. Eu penso que, se for para a defesa do povo que está sendo chacinado, isso seria bem-vindo, sim. Seria bem-vindo.
Natal foi em oração, passagem do ano a cantar o hino
Na sua última live, disse que não havia dinheiro nenhum do mundo que o fizesse abdicar da sua luta pelo povo. Já lhe ofereceram dinheiro para desistir deste processo de contestação?
Já me fizeram algumas propostas. De como é que poderia deixar as coisas correrem e ter alguns privilégios pessoais.
Quem é que lhe fez essas propostas?
Não posso dizer. (risos) Não convém aumentar a legião de inimigos nessa altura, mas isso é uma coisa que tem acontecido comigo ao longo da minha história como político, não só como político, mas ainda como comentador da televisão, sempre houve oferta materiais, financeiras, isso sempre aconteceu comigo.
Na última live, disse também que vivia um calvário e que se sujeitava a uma vida muito complicada por causa dos seus valores. Quer explicar-nos que calvário é esse? Como é que tem vivido?
Sim, é um calvário, no sentido de ter de atravessar constantemente fronteiras. Ter de estar a mudar sempre de localização, de acomodação, é uma vida não muito simples. Ficas três dias num sítio e tens de pegar nas malas e mudar, tens de ter vários vistos, cruzar fronteiras, é uma vida muito complicada. É muito difícil, é realmente martirizada, mas tem de ser feita.
Ainda falando no seu calvário, é cristão, como é que passou o seu Natal?
O meu Natal… (risos) Passei onde estou, orando. O mais importante aqui não é, propriamente, ter uma mesa faustosa, ou ter ali um presépio de Pai Natal, mas a comunhão espiritual, portanto, meditando, orando, e passei bem.
E como é que vai ser a passagem de ano? Já pediu aos moçambicanos
para cantarem o hino a partir das 23h45. O que vai fazer?
Vou fazer o mesmo, também estarei, onde estiver, a cantar o hino. Só isso.
“Temos elementos para o governo português perceber que o posicionamento não podia ter sido aquele”
O que é que responde aos que dizem que é um político de extrema direita, com pendor populista?
Adjetivos são tantos… Ainda há pouco tempo alguém que fez um photoshop e pôs-me uma casaca a dizer das SS alemãs, que eu era um discípulo do Hitler… esse tipo de adjetivos aparecem sobretudo quando se é uma figura pública. O que importa é saber os valores concretos que estou a defender. Eles têm de falar disso, das metas, dos objetivos. Aí vamos perceber se sou realmente de extrema direita, com pendor populista ou não. O que é que nós estamos aqui a defender? Estamos a defender a verdade eleitoral. Isto não tem nada a ver com a ideologia, a política não é nenhuma doutrina. Estamos a defender que Moçambique cesse os raptos e sequestros que existem há mais de 13 anos, martirizando a população. Estamos a dizer que nós queremos a despartidarização de todas as funções públicas que foram tomadas pela Frelimo ao longo de 50 anos. Queremos uma política fiscal para beneficiar o desenvolvimento local. Já apresentei propostas concretas sobre o que tipo de educação que queremos, o tipo de sistema de saúde que queremos.
Isso faz parte do seu programa eleitoral.
Não sei se isto é ser populista, eu acho que é aquilo de que o país está a precisar. Temos um país riquíssimo em termos recursos naturais, uma população jovem com potencial de trabalho muito grande e o país miserável. Querer tirar o país dessa situação não sei se é populismo.
Uma última questão, não gostou da atitude do governo português depois do anúncio do Conselho Constitucional, criticou-a, mas depois disse que teria sido por falta de informação. Alguma coisa mudou desde 23 de dezembro? Alguém o contactou?
Não, de forma alguma. O que aconteceu com o governo português aconteceu também com muitos moçambicanos. No dia 24, cerca de 40 a 45 % dos moçambicanos estavam a ficar um bocadinho desapontados com os objetivos dos protestos. Porquê? Porque se criou a ideia de que os protestos se cingiam apenas a saques, a destruição de bens, por aí fora. Mas já no dia 25 as coisas começaram a ficar claras, quando começam a aparecer provas, evidências de que muitos dos saques, destruições tinham sido preparadas e promovidas pelas próprias forças de defesa e segurança.
Mondlane critica declarações de Marcelo e Montenegro sobre eleições em Moçambique
Mas a reação do governo português foi ainda no dia 23…
Nessa altura, não havia motivos para a fazer. Acho que já se debateu demais isso em Portugal, os portugueses já fizeram críticas mais do que suficientes sobre o assunto. Mas eu creio que, olhando para o cenário pós dia 24, temos elementos mais do que suficientes para o governo português perceber que o posicionamento não podia ter sido aquele. Há muitas provas, elementos que estão à disposição pública, hoje, que não havia antes, que mostram, por exemplo, que no dia 24, no âmbito das manifestações, foram descobertos, em várias sedes do Partido Frelimo, cartões de eleitores e editais falsificados. Essa informação, por exemplo, não existia antes do dia 23, mas agora está disponível. Há novos elementos e a forma da atuação do próprio regime [a ter em conta pelo governo português]: quem ganha eleições de forma legítima não precisa tornar-se sanguinário; se se torna sanguinário, faz uma repressão no extremo da brutalidade e da violação mais profunda dos direitos humanos, é um indicativo de que esse regime não foi eleito de forma legítima, porque, se o fosse, de forma livre, não precisava de repreender a própria população. Se a população acredita neles, votou neles, basta uma palavra deles para obedecer e entrar na tranquilidade.