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Volodya chega de noite, ao volante de um Zaporozec, um carro soviético barulhento, muito longe do que se esperaria ser conduzido por um estudante da academia de espionagem do KGB. Dava demasiado nas vistas. Volodya— petit nom de Vladimir Vladimirovitch Putin — não conhecia Sergei, apenas o seu irmão mais velho. Foi suficiente para, depois de receber o telefonema, ir ao seu encontro sem hesitar. Naquela noite de 1977, quando São Petersburgo ainda era Leninegrado, e a Rússia União Soviética, a ligação entre os dois jovens era quase criminosa.
Sergei decidiu fugir, ainda que temporariamente, do quartel onde cumpria o serviço militar obrigatório e aventurar-se na noite com o novo amigo, depois de pular um muro. Sair sem autorização superior era perigoso. Estava a um passo de ser considerado um desertor. A única diferença é que Sergei planeava sair e voltar a entrar sem que ninguém desse conta. Naquela madrugada, os dois jovens passaram horas a passear e a cantar.
Nesse dia há 46 anos, os dois estariam ainda muito longe de imaginar o que lhes traria o futuro: Volodya, 25 anos, viria a ser o Presidente do país em 2000. O amigo de Vladimir Putin, então com 26 anos, tornar-se-ia um violoncelista famoso, criador da Casa da Música de São Petersburgo. Sergei Roldugin viria também a ser envolvido em esquemas fraudulentos que envolvem milhares de milhões de euros e cujo rasto do dinheiro leva ao seu grande amigo Volodya.
Em março deste ano, com muito atraso em relação às revelações feitas nos Panama Papers (2016) pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, sobre a fortuna inexplicável de Sergei Roldugin, quatro funcionários do Gazprombank começaram a ser julgados na Suíça. Suspeita: terem falhado em perceber que poderia haver lavagem de dinheiro através das contas do velho amigo de Putin.
Ouça aqui o podcast “A História do Dia” sobre a amizade entre estes dois homens.
Depois de ter alinhado nas sanções europeias e norte-americanas a oligarcas e empresas russos, este passo poderia até ser visto como mais uma das ações reveladoras da perda da neutralidade suíça em relação à guerra na Ucrânia. Mas não. Como explicou ao Observador Sacha Zala, um dos mais conceituados historiadores suíços, e diretor do Centro de Pesquisa de Documentos Diplomáticos, neutralidade política e ser um país neutral, que não participa numa guerra, são coisas distintas.
O violoncelista famoso, que ficou conhecido como “a carteira” de Putin, por se suspeitar de que é um dos muitos amigos do Presidente que encobre a sua fortuna, tem também outro cognome. A Novaya Gazeta, jornal russo, pediu a uma fonte próxima de Roldugin para o descrever com uma palavra: “Chame-lhe ‘o cuidador’. Isso funciona.”
Uma amizade de quase 50 anos. “Ele é como um irmão”
“Na verdade, a forma como conheci Putin teve um tom ligeiramente criminoso”, confessou Roldugin, rindo, numa entrevista de 2014 ao jornal russo Evening Kazan.
Evgeny, irmão de Sergei, foi colega de Putin na Academia Red Banner, onde eram formados os espiões russos. Quando Sergei se mudou para a cidade, o irmão mais velho — que morreu em 2020 com Covid-19, na Letónia — deu-lhe o contacto de Putin e sugeriu que os dois se conhecessem. Nessa altura, Evgeny já era agente do KGB.
“Passámos a noite a conduzir. A cantar músicas”, recordou Roldugin na mesma entrevista. “Tínhamos tanto prazer em cantar. E Volodya tinha um excelente ouvido.”
Numa biografia de 2000 sobre Vladimir Putin, Roldugin é uma das principais fontes, já que conhece o Presidente russo há quase meio século. E volta a recordar como se tornaram amigos. “Volodya estudou com o meu irmão. Eu morava numa cidade diferente e quando vim para Leninegrado, o meu irmão falou-me de Vovka. Acho que foi em 1977. Conhecemo-nos e nunca mais nos separámos. Ele é como um irmão. Antigamente, quando não tinha para onde ir, ia ter com ele, dormia e comia em sua casa.”
Mesmo sem ligações de sangue entre ambos, Roldugin ajudou Putin a construir as suas relações. Não fosse o músico querer impressionar uma jovem hospedeira que conheceu em Kaliningrado e talvez a Senhora Putina fosse outra e Maria e Katerina, as filhas, nunca tivessem nascido.
Roldugin queria mostrar o seu carro novo, o primeiro que possuiu, à jovem hospedeira — um Zhiguli, fabricado na União Soviética, inspirado no Fiat 124. A rapariga aceitou e juntos foram ao Teatro Lensoviético. Não foram sozinhos. A amiga de Roldugin trouxe uma colega da Aeroflot, “a bela Luda”, recordou o músico numa entrevista, que ele teve o cuidado de sentar ao lado de Vladimir. Em 1983, soaram os sinos da igreja e a jovem passou a ser Lyudmila Putina.
Em abril de 1985, quando a sua primogénita nasceu, Vladimir Putin já era agente do KGB. Roldugin lembra-se bem desse dia. Os dois casais foram para uma dacha (casa de campo) perto de Vyborg, com a recém-nascida Maria (Masha). “Fomos para lá e ficámos juntos: Volodya, Luda, eu, a minha mulher. Claro que comemoramos o nascimento de Masha. Dançámos muito a noite toda.”
Não tardou a que o casal Putin marcasse o batismo da filha. Os padrinhos foram Sergei e a mulher Irina, e uma foto guardou para sempre esse momento íntimo: Putin com Masha ao colo, Luda com o bouquet. Sergei e Irina ladeiam-nos.
Putin torna-se Presidente, o músico torna-se milionário
Com o colapso da União Soviética, Vladimir Putin, já depois de ter sido agente infiltrado do KGB, começa a subir a escada do poder político. Foi primeiro-ministro da Rússia e, em 2000, tornou-se Presidente. Com a sua ascensão, muitos dos seus amigos ganharam milhões de rublos.
Roldugin, que seguia uma carreira musical de sucesso, vê a sua conta bancária aumentar, sem que isso tivesse algo a ver com os seus ganhos profissionais. Em 1984, tornou-se solista da Orquestra do Teatro de Ópera Kirov. Mais tarde, professor e reitor no Conservatório de São Petersburgo. Foi ainda maestro convidado da Orquestra do Teatro Mariinsky e nomeado Artista do Povo da Rússia.
No fim dos seus concertos, é habitual que a audiência o procure nos bastidores, precisando de proteção da segurança. E há sempre alguém que, sabendo que é íntimo do Presidente, tenta meter uma cunha. “Tenho muito medo de perguntas sobre Putin. Sou músico. Não posso e não vou pedir a Volodya para ajudar ninguém. Ofereceram-me inúmeras coisas em troca de tais serviços. Ofereceram-me aviões. É inútil.”
Apesar disso — e mesmo que tenha dito ao New York Times, em 2014, “não sou empresário, não tenho milhões” —, Roldugin reconhece que o amigo Presidente o ajudou. Um desses exemplos é a Casa da Música de São Petersburgo, um pedido que fez diretamente a Putin, já nos anos 2000. A cidade precisava daquela infraestrutura e o Presidente poderia facilitar a doação.
A escolha recaiu sobre um edifício do século XIX, o palácio do Grão-Duque Alexei Alexandrovich. Cerca de 17 milhões de euros foram usados para a recuperação do espaço e, em 2009, Roldugin servia de anfitrião a Putin e Dmitry Medvedev, mostrando-lhes a casa pronta, da qual se tornou diretor artístico.
Quando questionado diretamente sobre se teria sido capaz de erguer o projeto sem o apoio do amigo, Roldugin é sincero: “Claro que não. Volodya aprovou a minha ideia e ajudou muito, muito a implementá-la.” Ali, trabalha-se com jovens músicos e promovem-se novos talentos.
“Sempre ajudámos músicos talentosos. Procuramos mecenas, bons instrumentos, organizamos espetáculos com orquestras para solistas, digressões… Esta é uma causa muito necessária e nobre, na minha opinião. E Vladimir Vladimirovich deu-nos o seu patrocínio”, disse na mesma entrevista.
Panama Papers e o julgamento na Suíça
No início de março deste ano, a justiça suíça atuou. Quatro funcionários do banco russo Gazprombank, com altas funções na filial suíça, foram acusados de ter violado a lei do país e de ter facilitado a Sergei Roldugin a ocultação de dinheiro que estaria ligado a Vladimir Putin.
Foram acusados três russos e um suíço e a imprensa internacional aponta o nome de Roman Abdulin, CEO do banco à data dos factos, como um dos visados no processo e a braços com um julgamento judicial em curso. No entanto, a lei suíça impede que os seus nomes sejam revelados. Abdulin chegou ao Gazprombank em 2002, depois de vários anos a trabalhar na empresa de auditoria Arthur Andersen. Em 2008, mudou-se para Zurique, onde vive com a mulher e um filho.
Seja qual for a identidade dos funcionários do banco russo, o que está em causa é o incumprimento de deveres legais para garantir que as contas não envolviam atividade suspeita ou criminosa. As verificações devem ser ainda mais rigorosas se o cliente em causa for um PEP — pessoa politicamente exposta —, que é exatamente o caso do amigo de Vladimir Putin.
O que os Panama Papers revelaram em 2016, e que agora a justiça suíça averigua, são também os questionários feitos ao violoncelista. Há duas perguntas em concreto em que a resposta foi ‘não’ e que deviam ter feito soar alarmes: “O beneficiário efetivo é um PEP ou VIP?”; “Ele tem alguma relação com PEP ou VIP?” O motivo é simples: a lei do país obriga os bancos a rejeitar contas se houver dúvidas sobre quem que é o verdadeiro proprietário do dinheiro ou qual a sua fonte. Se se tratar de um PEP, as contas devem ser geridas com enorme cuidado.
Ao não fazerem as devidas verificações, e sendo conhecida a amizade entre o músico e o Presidente russo, os funcionários poderão ser considerados culpados de ajudar Roldugin a deixar passar milhões pelas suas contas suíças. O castigo? Sete meses de pena suspensa. “Todas as provas apontam para que Sergei Roldugin não seja o verdadeiro dono dos fundos”, disse o procurador Jan Hoffman durante a audiência.
A primeira vez que foi questionado, pelos jornalistas da Novaya Gazeta, não ficou claro se Roldugin sabia a quantidade de dinheiro que passava pelas suas contas ou se era apenas um testa de ferro. “Rapazes, honestamente, não posso comentar neste momento. Tenho que ver e descobrir o que posso dizer e o que não posso. Entendo que o assunto é sério. Você faz negócios ou não? De onde é o dinheiro? Quem são eles? Eu sei de tudo isso. Isso tudo é delicado”, foi a sua resposta.
Dias mais tarde, quando Roldugin falou em público pela primeira vez sobre o assunto, e confrontado com os nomes de empresas offshores com as quais teria negócios, o violoncelista não negou. “Estava ligado a esse negócio há muito tempo. Antes da Perestroika. Aconteceu. E então cresceu e essas coisas aconteceram”, afirmou, embora a investigação jornalística tenha mostrado que muitas transações aconteceram entre 2006 e 2009. A Perestroika foi uma política económica introduzida na União Soviética por Mikhail Gorbachev, em 1986. Além disso, Roldugin afirmou que o dinheiro era usado para subsidiar a Casa da Música.
“Claro que eu andava por aí a implorar a todos os meus amigos que me dessem dinheiro porque tudo é caro. Os instrumentos musicais são caros, os professores são caros e eu só queria as melhores coisas, os melhores instrumentos, os melhores professores e nada mais para os nossos rapazes e para os nossos músicos”, disse o músico.
“Estou feliz que isto tenha caído em cima de mim. Não há nada em que me possam apanhar, está tudo à mostra. De qualquer forma, sou de facto rico — rico com o talento da Rússia.”
Segundo os Panama Papers, Roldugin armazenou até 2 mil milhões de dólares em empresas offshore.