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Walter Robinson, o editor da equipa Spotlight que liderou os vários repórteres que levaram a cabo a extensa investigação que ficaria imortalizada em filme

LightRocket via Getty Images

Walter Robinson, o editor da equipa Spotlight que liderou os vários repórteres que levaram a cabo a extensa investigação que ficaria imortalizada em filme

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Walter Robinson, jornalista do caso Spotlight: "Há evidências de que João Paulo II, Bento XVI e o Papa Francisco foram cúmplices dos abusos"

Em entrevista ao Observador, Walter Robinson, o editor que liderou a equipa Spotlight e expôs os abusos sexuais na Igreja Católica dos EUA em 2002, deixa duras críticas à atuação do Papa Francisco.

A 6 de janeiro de 2002, o jornal norte-americano Boston Globe publicou o artigo que, pela primeira vez, deixou a Igreja Católica publicamente a braços com o maior escândalo da sua história recente. A reportagem, assinada pelo jornalista Michael Rezendes, contava como a arquidiocese de Boston tolerou centenas de casos de abusos sexuais cometidos pelo padre John J. Geoghan, ocultando os crimes e transferindo o padre de paróquia em paróquia. Aquele foi o primeiro de uma série de textos produzidos pela equipa Spotlight, uma unidade de investigação do jornal, que em dezembro do mesmo ano levariam à demissão do cardeal Bernard Francis Law.

Na altura, Walter Robinson era o editor da equipa Spotlight e liderou os vários repórteres que levaram a cabo a extensa investigação que ficaria imortalizada no filme Spotlight, de 2015, e que em 2003 recebeu o Prémio Pulitzer de Serviço Público. Hoje, quase duas décadas depois, Robinson admite que aquele trabalho abriu uma Caixa de Pandora mas lamenta que a Igreja Católica tenha demorado tanto tempo a reagir. “A Igreja pensa em décadas, em séculos”, diz o jornalista de 74 anos, que após uma pausa de alguns anos para ensinar jornalismo na Northeastern University, em Boston, regressou ao Boston Globe para ser grande repórter. Esta sexta-feira, Walter Robinson dá uma palestra na Universidade Católica em Lisboa sobre liberdade de imprensa e jornalismo de investigação.

Antes, o ex-editor da equipa que deu a conhecer ao mundo a verdadeira dimensão dos abusos sexuais na Igreja Católica falou com o Observador sobre o Papa Francisco, os ritmos da Igreja e o combate à pedofilia, dentro e fora da dimensão religiosa. Ao atual pontífice, Walter Robinson deixa duras críticas: demorou muito tempo a agir, falhou ao convocar uma “reunião urgente” para seis meses depois e acabou por criar regras para “agradar a toda a gente” que não agradaram a ninguém. “A Igreja ainda tem uma visão — e isto é sublinhado na lei do Papa Francisco — de que as autoridades civis não têm o direito de julgar a Igreja”, afirma mesmo o jornalista, que diz só não ter ficado desiludido com o resultado da inédita reunião que decorreu em fevereiro deste ano no Vaticano porque “não esperava muito mais”.

Walter Robinson foi editor da equipa Spotlight, que em 2002 revelou como a Igreja Católica nos EUA ocultou centenas de casos de abuso sexual

AFP via Getty Images

O que pensa das novas leis aprovadas pelo Vaticano depois do encontro de fevereiro?
Na maioria dos países, não existe um verdadeiro incentivo na lei para que as pessoas se cheguem à frente, denunciem às autoridades e deixem alguém de fora da Igreja decidir o que é um castigo adequado. O Papa, parece-me claro, tentou chegar a regras destinadas a agradar a toda a gente. E, por isso, não agradou a ninguém.

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Estamos a falar da obrigatoriedade de denúncia dentro do Estado do Vaticano e também de regras para a denúncia obrigatória aos superiores dentro da Igreja.
Em maio foram promulgados os requisitos do encontro de fevereiro, de que os abusos devem ser comunicados aos superiores. Mas não dizem nada sobre as autoridades civis. E não há nenhuma obrigatoriedade de alguma coisa ser tornada pública, é deixado ao critério dos arcebispos a decisão sobre a culpabilidade dos bispos que possam ter ocultado casos.

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"A Igreja ainda tem uma visão — e isto é sublinhado na lei do Papa Francisco — de que as autoridades civis não têm o direito de julgar a Igreja. Apenas a Igreja pode julgar os seus. Esse é um problema."
Walter Robinson

Apesar de no encontro de fevereiro ter havido apelos, até de cardeais, para que os casos fossem públicos por causa da responsabilização dos bispos.
Exatamente. E não há punições claras. Escrevi um artigo de opinião, antes do encontro de fevereiro, para o Die Zeit, o jornal alemão. Um bispo pode ser afastado, se for culpado de ocultação. Mas não diz que vai ser. Por isso, em muitos países, como os Estados Unidos, como a Austrália, e cada vez mais em países como a Polónia ou como a Alemanha, em que há muito mais raiva das pessoas, a Igreja ainda não está disposta a fornecer uma informação pública completa sobre isto.

Demorou quase duas décadas, de 2002 a 2019, desde a publicação das reportagens do Boston Globe, para o Vaticano agir com uma posição de peso. Porque é que demorou tanto tempo? É o Papa Francisco que está mais disposto a tentar resolver este assunto do que Bento XVI ou João Paulo II?
Inicialmente, a Igreja estava em negação completa relativamente ao facto de ter um problema. Em Roma, quando o escândalo rebentou nos Estados Unidos, a visão do Vaticano foi: ‘Porque é que acharíamos que a América não iria ter este problema? Porque a América é demasiado secular, anti-religiosa, os católicos não levam a sua religião a sério’. Até os bispos americanos, no seu relatório de 2004, afirmavam que a culpa dos abusos era da revolução sexual. Ou seja, tudo exceto colocar a responsabilidade onde ela verdadeiramente estava: nos bispos e nos cardeais que sabiam que isto estava a acontecer e nunca fizeram nada relativamente a isto. Tudo para chegar à resposta sobre a pergunta mais abrangente que fez: a Igreja ainda tem uma visão — e isto é sublinhado na lei do Papa Francisco — de que as autoridades civis não têm o direito de julgar a Igreja. Apenas a Igreja pode julgar os seus. Esse é um problema. O outro problema é que os líderes da Igreja, em particular antes do Papa Francisco, estavam, eles próprios, diretamente envolvidos. Como penso que saberá, há evidências de que o Papa João Paulo II, quando era arcebispo de Cracóvia, também mudou padres de paróquia em paróquia quando eles foram apanhados a abusar sexualmente de crianças. Há evidências de que o Papa Bento XVI, quando era arcebispo de Munique, fez o mesmo. E o Papa Francisco — que foi eleito Papa em 2013 —, quando o escândalo rebentou nos EUA em 2002 e ele era arcebispo de Buenos Aires, emitiu um comunicado a dizer que nenhum padre da sua arquidiocese tinha abusado de crianças. Temos pelo menos uma geração inteira de líderes da Igreja que foram cúmplices do encobrimento e que, em muitos casos, permitiram e facilitaram o abuso ao manter os padres no ativo.

"Há evidências de que o Papa João Paulo II, quando era arcebispo de Cracóvia, também mudou padres de paróquia em paróquia quando eles foram apanhados a abusar sexualmente de crianças. Há evidências de que o Papa Bento XVI, quando era arcebispo de Munique, fez o mesmo. E o Papa Francisco — que foi eleito Papa em 2013 —, quando o escândalo rebentou nos EUA em 2002 e ele era arcebispo de Buenos Aires, emitiu um comunicado a dizer que nenhum padre da sua arquidiocese tinha abusado de crianças."

Mas o Papa Francisco foi aquele que, dos três, teve uma atitude mais forte, ou não?
As evidências são contraditórias. O Papa Francisco teve um discurso melhor, mas em alguns momentos deixou passar sinais contraditórios sobre até que ponto é sério relativamente a este assunto. O exemplo mais claro aconteceu quando foi ao Chile e disse efetivamente que acreditava no padre e no bispo, e não nas vítimas.

E teve de pedir desculpa.
Oh! Politicamente, foi uma coisa horrível de se dizer. Ele tem um cardeal em Boston que, como sabe, é o líder da Comissão Pontifícia para a Proteção dos Menores. Mas, no Vaticano, a comissão do cardeal Seán O’Malley tem sido consistentemente bloqueada por fações mais conservadoras. A dado momento, o órgão do Vaticano responsável pelos novos bispos emitiu uma diretiva a dizer que os novos bispos não tinham nenhuma obrigação de comunicar situações de abuso a qualquer autoridade civil, em nenhum lugar. Portanto, aqui temos, na Igreja Católica, nos Estados Unidos e noutros países, a obrigação de comunicar às autoridades, e o Vaticano a dizer aos novos bispos que não têm de o fazer.

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A Igreja Católica devia ter, nas normas internas, a indicação de que todos os casos devem ser comunicados às autoridades?
Claro! Esse é o meu ponto de vista. Nos EUA, neste momento, eles são obrigados a fazê-lo. Em todos os estados dos EUA há leis diferentes, mas a lei, genericamente, diz que qualquer pessoa que trabalhe com crianças — e isso inclui, obviamente, médicos, enfermeiros, professores, assistentes sociais — e tenha qualquer indicação de que a criança tenha sofrido abusos ou sido negligenciada, tem de comunicar às autoridades. E se o enfermeiro ou o professor não comunicar pode ser acusado de crime. É um ato criminal alguém que cuida de crianças não comunicar. O que descobrimos em 2002 é que, durante 12 ou 15 anos, os ministros protestantes e os rabinos judeus apoiaram todos os anos uma mudança na lei para que passasse a incluir os membros do clero. E, todos os anos — e nunca ninguém descobriu isto —, os lobistas da Igreja, dos cardeais, garantiram que aquela legislação não avançava. Quando a história saiu, em 2002, a legislação foi rapidamente aprovada pela Câmara dos Representantes, pelo Senado, e assinada pelo governador. Mas se a lei tivesse estado em vigor nos 12 ou 15 anos anteriores, o cardeal e todos os bispos que trabalhavam para ele tinham ido para a prisão. Isso foi o que eles fizeram para garantir que não eram obrigados a comunicar às autoridades.

Muitas vezes, o argumento usado é a proteção do segredo de confissão. Qual é o seu ponto de vista relativamente a isso?
Concordo com essa proteção legal, que existe nos EUA, mas não me consigo lembrar de um único caso em que a informação obtida pela arquidiocese relativamente a abusos cometidos por um padre tenha sido recebida através de algo dito numa confissão. Acredito que haja casos em que um pai, uma mãe ou uma criança vão à confissão, mas vão confessar os próprios pecados, não os pecados do padre que abusou. Será que houve padres a ouvir em confissão coisas sobre outros padres? É possível. Mas em todos os casos de que temos conhecimento, a Igreja descobriu porque os pais se queixaram ao padre, porque um advogado telefonou, porque a polícia telefonou e disse ‘se não mudarem o padre fulano de sítio, nós prendemo-lo’. Isto aconteceu. Temos os registos pessoais de todos estes padres. Nestes casos, os registos mostram que a Igreja sabia e mudou os padres de sítio.

As reportagens do Boston Globe em 2002 foram um ponto de viragem neste assunto? Diria que funcionaram como catalisador para trabalhos jornalísticos que foram feitos a partir daí em todo o mundo sobre os abusos na Igreja?
Penso que sim. Como que abrimos uma Caixa de Pandora. O que nós descobrimos foi a enormidade do problema e que a Igreja o tinha ocultado. E isso agora está documentado em muitos lugares por todo o mundo. Não sabíamos isto na altura, mas quando começámos a publicar, no início de 2002, era aquilo a que se chamava o início da era da Internet. As nossas reportagens estavam online. Viu o filme Spotlight?

Sim.
O filme acaba com os telefones a tocar, lembra-se? Nas primeiras duas ou três semanas recebemos chamadas de 300 vítimas só em Boston. E foi como as chamadas que vocês atenderam depois da vossa reportagem. Na maioria das vezes, talvez em 75% dos casos, nós fomos a primeira pessoa a quem as vítimas contaram a história. Mas o que nos surpreendeu, mais do que o número de pessoas, foi o facto de termos recebido, logo depois, emails de muitos pontos dos EUA e de todo o mundo. Houve vítimas em Itália, na Irlanda, na Austrália, na Nova Zelândia, até na Índia, que tem uma população católica relativamente pequena. Lembro-me de quando o Papa convocou esta reunião de fevereiro — foi em setembro do ano anterior — e disse que era preciso fazer uma reunião urgente. E marcaram-na para seis meses depois. Se nós os dois decidíssemos fazer uma reunião urgente, provavelmente fazíamos a reunião ao final do dia de hoje.

"Nas primeiras duas ou três semanas recebemos chamadas de 300 vítimas só em Boston. Na maioria das vezes, talvez em 75% dos casos, nós fomos a primeira pessoa a quem as vítimas contaram a história"
Walter Robinson

Mas é a mesma Igreja que demorou quase duas décadas a reagir em força a um escândalo que começou a ser divulgado em 2002. São os timings da Igreja, não?
A Igreja pensa em décadas, em séculos. Tem havido muita discussão à volta do fim do celibato, este Papa tem falado disso. E agora estão ativamente a falar disso para os padres na Amazónia, como se não estivessem a ficar sem padres em todo o resto do mundo. Estamos a falar de algo que está em vigor há quase mil anos. Pode ainda demorar 200 anos até eles eliminarem completamente o celibato, que é um dos grandes problemas da Igreja.

Padres casados, mulheres mais presentes — e uma estátua roubada. O que fica da reunião que pode mudar a Igreja Católica?

Qual é o papel dos jornalistas na descoberta da verdade neste assunto? Se jornais como o Boston Globe não tivessem feito o que fizeram, saberíamos o que sabemos hoje sobre os abusos sexuais na Igreja?
Gosto de acreditar que, se não tivéssemos tropeçado na enormidade deste problema, alguém o teria feito, mas não posso ter a certeza. Penso que, sem o trabalho dos jornalistas de investigação, provavelmente muito pouco disto seria conhecido. O tipo de pressão pública que forçou pelo menos a Igreja Católica norte-americana a levar a cabo algumas grandes reformas não teria sido possível sem as investigações jornalísticas.

E a Igreja ainda olha para os jornalistas como o inimigo em vez de colaborar na descoberta da verdade?
A diferença é que há 18 anos eles declaravam publicamente que nós éramos o inimigo. Agora, as relações públicas deles são melhores. Acho que ainda falam da imprensa como o inimigo, mas não nos tratam publicamente dessa forma. Na verdade, quando o filme saiu, o jornal e a rádio do Vaticano fizeram uma crítica positiva. Cardeais como Seán O’Malley disseram que todos os católicos deviam ver aquilo. Não sei se acreditavam mesmo naquilo ou se estavam a dizer aquilo apenas por uma questão de relações públicas. Nos Estados Unidos, muitos bispos ainda não foram honestos. Houve um caso aqui no início do ano em que o bispo de Buffalo, em Nova Iorque, revelou publicamente que 42 padres tinham abusado de crianças. A secretária-executiva do próprio bispo tornou-se uma denunciante e tornou público que na verdade eram 117 padres. No Colorado, há duas semanas, as três dioceses do Estado entregaram voluntariamente os seus registos ao procurador-geral — o que é diferente de ser o procurador que os tivesse obrigado a entregar os registos. No final, o procurador produziu um relatório que, logo no início, diz ‘nós sabemos que não nos entregaram tudo’. E falam, no estado inteiro do Colorado, de 43 padres ao longo de 60 anos. Quando olhei para estes números, ri-me. Porque isso é cerca de 2% dos padres. Claramente a Igreja escondeu alguma coisa, não há dúvidas de que a Igreja não mostrou tudo. Só quando as dioceses são obrigadas a entregar a informação. É uma instituição que ainda não está confortável com a transparência.

"Há 18 anos eles declaravam publicamente que nós éramos o inimigo. Agora, as relações públicas deles são melhores. Acho que ainda falam da imprensa como o inimigo, mas não nos tratam publicamente dessa forma."
Walter Robinson

E o Papa Francisco? Parece-lhe que ele quer mesmo resolver o problema?
Acho que se ele quisesse seguir em frente e garantir que todos os bispos o seguiam, tinha aprovado um decreto. Mas, claramente, o que saiu daquele encontro de fevereiro em termos das novas regras foi uma tentativa, essencialmente, de deixar todos os bispos contentes. Especialmente para incluir os bispos de lugares como Portugal. Eles não têm de revelar nada além do que já revelaram. É uma forma de manter o assunto dentro de casa. É o provérbio da raposa no galinheiro.

20 anos depois da vossa investigação, ficou desiludido com o encontro no Vaticano?
Não posso dizer que fiquei desiludido. Não esperava muito mais. Acho que os católicos estão desiludidos. Entendo-o enquanto jornalista: aqui está o que eles fizeram até agora, aqui está a lentidão com que a verdade tem sido revelada e as reformas têm sido implementadas. Era uma questão de expectativas.

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