O céu está nublado no bairro com 16 prédios iguais e uma dezena de vivendas em que predominam o branco e o castanho. Em frente, está a ria de Ferrol, assim como um enorme estaleiro por trás. Criado há 53 anos para albergar trabalhadores da indústria naval, este foi o local em que conviveram (e ainda convivem) operários e as suas famílias. E também as suas ideias políticas, tipicamente de esquerda e com uma forte componente sindical, elementos que, na década de 70, se mantiveram na clandestinidade por conta da ditadura franquista.
Uma das famílias que mais dinamizava politicamente a região era a Díaz. Suso e Carmela viviam no bloco nove. E foram eles que, em maio de 1971, pouco depois de se mudarem, tiveram a primeira criança no bairro: Yolanda Díaz, que hoje é a líder da coligação Sumar e vice-ministra do governo espanhol. “Ainda me lembro dela pequenina, era muito boazinha e simpática”, conta ao Observador, María Sardina, de 84 anos, enquanto tomava um café, na manhã desta quarta-feira.
“Vivo neste bairro há 53 anos, desde que se formou. Trabalhava no estaleiro”, prosseguiu María, olhando para o sítio que um dia foi o seu local de trabalho, em Fene, a cerca de seis quilómetros de Ferrol, a cidade natal do ‘caudilho’ Francisco Franco. “Na altura, havia muitos terrenos e casas muito baratas. Viemos todos os trabalhadores juntos para aqui e também os pais da Yolanda”, referiu a mulher, hoje reformada.
Com um sorriso no rosto, María Sardina — apelido que, sublinha,” se escreve como o peixe” — lembra-se bem do casal Díaz. “A família ajudava muito no sindicato e nas manifestações”, descreve, lembrando igualmente a amizade que um dos seus filhos mantinha com Yolanda, até a família desta mudar-se para Santiago de Compostela, na sequência do divórcio dos pais. “Mas ela até era bastante tímida, saía pouco de casa. E isso nota-se nos comícios”, atirava a dona do café, metendo-se na conversa, ainda que pedindo para não ser identificada.
Sempre que se fala sobre Yolanda Díaz com aqueles que se cruzaram na sua vida, a política é um dos primeiros temas que surge na conversa. Aliás, foi nesse universo que Pílar Díaz, ex-presidente da câmara de Mugardos, uma localidade a cerca de 12 quilómetros do bairro São Valentim, conheceu a líder da coligação de esquerda Sumar. “Conhecemo-nos quando tínhamos entre 15 a 16 anos em Santiago de Compostela. Ela e eu militávamos na Juventude Comunista, no caso dela é de tradição familiar”, disse a antiga política que hoje é proprietária do restaurante Oescabeche, em frente à ria de Ferrol.
Envergando uma t-shirt com o ideólogo do comunismo Karl Marx, Pílar Díaz (que, apesar do apelido, não tem qualquer ligação de sangue com Yolanda) dá mais detalhes sobre a família, com a qual manteve uma relação de amizade. “O seu pai representava a comissão de trabalhadores navais e tinha uma participação sindical muito importante”, lembrou, salientando o papel na “luta contra a ditadura” de Suso Díaz, que chegou a estar preso por motivos políticos. “A Yolanda sempre viveu num ambiente politizado [por influência] dos seus pais.”
O sindicalismo e a luta contra o franquismo do pai — juntamente com o meio operário onde cresceu — são dois fatores que ajudam a compreender a ideologia mais à esquerda da líder do Sumar. Mas que qualidades possui Yolanda Díaz e que caminhos é que a galega, ainda ministra do Trabalho, percorreu para ser hoje a mulher que se propõe novamente a governar ao lado do socialista Pedro Sánchez?
A “trabalhadora incansável” com “capacidade para negociar”
Jaquinzinhos, raia, pescada. Os almoços já tinham sido todos servidos na tarde desta quarta-feira n’Oescabeche. Lola González, que trabalha no restaurante, começa por confidenciar ao Observador que gosta muito de Portugal e que vai atravessar a fronteira no final de agosto. “Vamos à festa do Avante. Vamos sempre todos os anos, menos em 2022, por causa do negócio. Vamos ficar a dormir em Almada.”
Enquanto isso, Pilar Díaz saía da cozinha do restaurante, despia o avental e sentava-se para conversar. Relativamente a Yolanda Díaz, a antiga autarca fez um longo silêncio quando se perguntou sobre as características da personalidade da líder do Sumar. “É uma pessoa constante, tenaz e trabalhadora. Ninguém pode negar isso”, enumerou, acrescentando: “Depois, para chegar onde chegou, é necessário ter carácter”.
Quem trabalha hoje em dia com Yolanda Díaz concorda com a ideia de que a líder do Sumar é uma workaholic determinada. A atual presidente nacional do Sumar e cabeça de lista do partido na Corunha, Marta Lois, confessou ao Observador que a amiga, que conhece desde os tempos da universidade em Santiago de Compostela, é “muito trabalhadora”. “Até mais do que devia, até nos preocupamos com ela”.
No centro recreativo e de formação de artesãos, numa das avenidas mais movimentadas da Corunha, a coligação Sumar realizou um evento partidário dedicado a discutir as questões económicas no final do dia desta quarta-feira. Num palco vermelho frente a cadeiras também elas vermelhas, Marta Lois deixou duras críticas às ideias neoliberais seguidas pelo antigo governante Mariano Rajoy, apelando ao voto em Yolanda Díaz para diminuir as desigualdades sociais.
Ao lado de Marta Lois, e apresentando os dez principais pontos do programa Sumar para a economia, estava Manuel Lago, número dois nas listas eleitorais da Corunha pelo Sumar, que replicou as críticas ao neoliberalismo, lamentando ainda que os “retrógrados das cavernas” do VOX possam chegar ao poder. Frente a cerca de 80 pessoas, o momento do discurso que mais entusiasmou a sala aconteceu quando, no final do seu discurso, o economista garantiu que a esquerda ia “ganhar as eleições”.
Este desejo vem de alguém cuja carreira que se confunde com a de Yolanda Díaz. No final do evento, quando já se estavam a arrumar as cadeiras do centro recreativo, o economista partilhou ao Observador que conhece a líder do Sumar “há muito tempo”, desde que ela tinha 15 anos. “Foi quando comecei a trabalhar”, recordou, numa altura em que se envolveu no meio sindical: “O comissário geral do sindicato era o pai dela. Na altura, era conhecida como a filha de Suso Díaz”.
A ligação entre os dois nunca mais se perdeu. Manuel Lago ainda hoje acompanha politicamente e é um dos assessores, no âmbito económico, de Yolanda Díaz. “Estive sempre com ela ao longo da sua carreira política: no parlamento galego, no parlamento de Espanha e agora como ministra do Trabalho”.
Lidando diariamente com a líder do Sumar, Manuel Lago não lhe poupou elogios: “A Yolanda demonstrou, nestes quatro anos de governo, muitas das suas qualidades: é muito preparada, por conta da sua grande experiência política e profissional. Foi advogada, começou como vereadora em Ferrol, foi deputada na Galiza e, por fim, deputada no Congresso. É uma mulher muito preparada, muito decidida e que gosta de coisas claras”.
Uma característica que ressalta em Yolanda Díaz é a maneira “extraordinária” como firma acordos e constrói pontes. “Tem uma capacidade de diálogo incrível. Conseguiu acordos com os sindicatos e com o patronato em temas muito importantes, como o salário mínimo, a reforma laboral, os regulamentos de igualdade”, elencou Manuel Lago, que sinaliza que esta “capacidade de diálogo e de acordo” é um elemento que a torna uma “dirigente política de elevada qualidade”.
No entender de Marta Lois, que falou em galego com o Observador no final do evento partidário, a amiga que conheceu há 25 anos tem uma “capacidade de diálogo” que lhe permite falar com todos os “agentes sindicais e sociais”. “A política não é sempre confronto para marcar posições. As políticas são feitos concretos, são melhorias nas vidas das pessoas”, enalteceu a presidente do Sumar com um sorriso no rosto, cunhando uma expressão para este comportamento: “Políticas úteis”.
A par das “convicções fortes”, a sua capacidade para negociar tornou-a na “melhor ministra do trabalho durante a democracia”, na opinião de Marta Lois. Sem nunca nomear nenhum dos adversários de Yolanda Díaz, a presidente do Sumar realça que os espanhóis estão “cansados de tanto ruído” — e querem uma convergência de políticas progressistas, em vez de um clima crispado marcado por trocas de acusações.
Sumar: o “apêndice” do PSOE ou um projeto político com futuro?
É junto ao bloco 9 do bairro de São Valentim que, esta quarta-feira, as amigas Neli Casas e María Cristina López conversam sobre temas da atualidade. Aceitando falar com o Observador, a primeira, de forma expansiva, fez questão de contar de que conheceu Yolanda Díaz quando esta era criança. “Conheci-a quando vim viver para aqui. Era uma criança normal. Tinha um pai lutador, que esteve na prisão e [ela] criou-se na luta, defendendo os trabalhadores e os seus interesses.”
Já María Cristina López não se lembra de se ter cruzado com Yolanda Díaz, ainda que faça uma avaliação positiva do seu trabalho enquanto ministra do Trabalho: “É a que mais cuida do povo”. A amiga concorda e elabora: “É do melhorzinho que temos. É aquela que mais fez pela subida dos salários, pelas horas extraordinárias, pelas empresas… A reforma laboral foi a cara dela. O PSOE fez coisas bem, mas fez porque a esquerda pressionava”.
Criticando logo a seguir as políticas neoliberais de direita, Neli Casas, de 61 anos, que trabalha num tribunal, recordou a crise financeira que atingiu Espanha em meados da década passada. “Antes, fiquei sem o 14.º mês e, no meu trabalho, tive de despejar uma quantidade de famílias. Tive de lhes retirar as casas e elas tinham de continuar a pagar”, lamentou com amargura na voz, contrapondo com o que aconteceu depois da pandemia, já com um governo de esquerda. “As pessoas e as empresas estiveram protegidas. Somos uma das economias europeias que mais cresce”, notou, questionando: “Como é que o Feijóo pode estar a subir nas sondagens tendo em conta isto?”
“Melhorámos com o Sánchez e com a Yolanda”, concordou María Cristina López. Sobre a dupla entre o socialista e a líder do Sumar, Neli Casas tem uma opinião semelhante; os dois podem “equilibrar-se”. “Não gosto de maiorias absolutas nem de um lado, nem de outro”. “Este país não sabe o que é um parlamento. Houve sempre o bipartidarismo e tem de governar um ou outro. Espanha está formada por grupos políticos que são votados por pessoas e eles devem representar o máximo de visões possíveis”, explicou a mulher de 61 anos, que, entre risos, até chegou a desabafar: “Estou a falar muito, não estou?” “Não há problema, é disso que os jornalistas gostam”, respondeu a amiga.
Entre os apoiantes de Yolanda Díaz, tal como fica patente na conversa entre as duas amigas que vivem no Bairro São Valentim, existe a convicção de que a aliança com Pedro Sánchez foi bastante positiva para Espanha. Mesmo no núcleo duro, é quase um facto de que a coligação se vai repetir se o PSOE e o Sumar conseguirem os deputados suficientes para formarem maioria. Marta Lois destacou que a chegada da esquerda ‘à esquerda dos socialistas’ a um governo permitiu “mudar o paradigma neoliberal” que vingava “desde a transição democrática”. “Até os socialistas apostaram em políticas neoliberais.”
Questionado sobre se os socialistas aceitariam o programa apresentado durante cerca de 40 minutos no centro recreativo e de formação de artesãos da Corunha — que contou com propostas como o fim da temporalidade ou a redução da jornada de trabalho —, Manuel Lago não tem qualquer dúvida. “As medidas surgem da própria experiência do governo”, insistiu o assessor de Yolanda Díaz. “Não são ideias teóricas. Nós já demonstrámos que seremos capazes de fazer o que prometemos”, esclareceu com grande entusiasmo, ressalvando, ainda assim, que “é certo é que a profundidade e a rapidez com quem se adotam vai depender da coligação de forças entre PSOE e Sumar”.
“Ao PSOE dá-lhe trabalho avançar com medidas progressistas”, atirou Manuel Lago, lançando um sorriso irónico: “É certo que quanto mais deputados, quanto mais peso tiver o Sumar no governo, mais fácil será tomar essas medidas”.
Com experiência na política local, Pilar Díaz, que durante a conversa com o Observador cumprimentou vários clientes que iam entrando no restaurante e dos quais sabia os nomes de cor, teve “sempre claro” que o PSOE é um “parceiro necessário para a mudança, mas apenas para articular políticas de esquerda”. “É o sócio necessário porque não há outro”, disse, encolhendo os ombros.
Ainda assim, a antiga autarca advertiu que o Sumar não se pode transformar “num apêndice do PSOE”. “Há diferenças importantes. Durante muito tempo, esse partido foi de esquerda durante a campanha eleitoral, mas foi de centro-direita quando tinha de governar”, lamentou, acrescentando, no entanto, que isso não aconteceu com Pedro Sánchez. Mesmo assim, Pilar Díaz não baixou a guarda aos socialistas: “Se um dia tiverem um bom resultado, como fizeram noutras ocasiões, não vão olhar para a esquerda. Não somos os aliados prioritários do partido socialista. Mas a necessidade é uma virtude.”
Formada em abril de 2022, a coligação Sumar — que não é apenas a força partidária criada por Yolanda Díaz com o mesmo nome — é uma maneira de unir o que Pilar Díaz chama a “esquerda alternativa”. Nesse quadrante, as pessoas são “bastantes complicadas”, afirmou a proprietária do restaurante, entrando numa espécie de autocrítica: “Não somos capazes de superar as diferenças. Damos mais valor às matizes. Andamos sempre a realçar as diferenças e acabamos a fazer ruturas”.
Ora, a ex-autarca de Mugardas louvou precisamente a capacidade de Yolanda Díaz manter a esquerda aglutinada, ainda para mais tendo em conta um panorama independentista. “Numa sociedade tão mediatizada, ter uma líder, ter uma dirigente que aglutine é necessário. A verdade é que ela se consolidou”, reforçou Pilar Díaz, ao mesmo tempo que tocava o telemóvel. “Peço imenso desculpa, vou ter de atender.”
Naquele restaurante com paredes azuis e com quadros à venda de “artistas locais”, como explicou Lola González ao Observador, há a esperança de que a esquerda alternativa espanhola esqueça as divisões — e que o Sumar seja uma forma de, como defende Pilar Díaz, “assentar a esquerda” e que permita firmar acordos progressistas com o partido socialista. “Isso foi bom para as gerações futuras. Normaliza uma situação que há tempos era impensável”, vincou a dona do restaurante Oescabeche.
No centro da Corunha, no evento em que estiveram presentes um dos braços direitos de Yolanda Díaz, no centro recreativo, sentia-se também uma grande esperança. “O Sumar está aqui para ficar. Não tenho nenhuma dúvida”, prometeu Manuel Lago, que já tem outras ambições. “Vai ser a organização que vai articular as posições da esquerda em Espanha. O Sumar nutre-se de experiências anteriores de esquerda, como o Unidas Podemos”, assinalou o assessor económico, fazendo uma pausa, para depois continuar: “E amplia essa experiência. Há 15 partidos muitos deles locais. Isso reflete bem a realidade de Espanha”.
Resultado de uma “fusão entre o novo trabalhismo”, com “um feminismo combativo de massas” e uma “aposta nas medidas ambientais”, respeitando a “identididade de cada nação”, como descreveu Manuel Lago, o Sumar não é sinónimo de Yolanda Díaz — vai para além disso, acrescentou Marta Lois.
“Ela tem inteligência política para contar com uma equipa de especialistas com muitos conhecimentos”, reforçou Marta Lois, apontando para o economista, que conversava, na altura, com múltiplos apoiantes. “A Yolanda teve a capacidade de rodear-se de pessoas com experiência e com projeto político.”
Entre eles os dois, as expectativas são altas para a primeira criança que nasceu no bairro operário na Espanha de Francisco Franco. “Ela vai ser a primeira a liderar um governo em Espanha. Já é mais do que tempo para uma mulher feminista alcançar o topo da política em Espanha”, prevê o assessor que viu crescer e acompanhou de perto a trajetória — de Ferrol até Madrid — de Yolanda Díaz.