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Zeffirelli: "Os críticos não deviam existir"

Em 1987, o realizador italiano, que morreu a 15 de junho, esteve em Lisboa. Republicamos a entrevista que então deu a Maria João Avillez, uma conversa sobre cinema, ópera e Madonna.

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[O Observador agradece ao Expresso a cedência do texto que segue, tal como foi publicado a 26 de setembro de 1987]

Franco Zeffirelli é porventura o paradigma de um certo gosto “artístico” que encontra adeptos no grande público mas desagrada maioria dos críticos de cinema. De passagem por Lisboa, para filmar algumas cenas de uma longa-metragem sobre a vida de Toscanini, Zeffirelli fala-nos de si, dos seus filmes, do sucesso que o envaidece e espanta, do talento que afirma ter mas que poucos lhe reconhecem. Fala, enfim, da crítica que abomina e o incomoda a ponto de dizer: “Esbofetearia um filho se ele quisesse ser crítico”.

Tem um olhar incrivelmente azul, uma cabeça revolta e loura, veste uns jeans deslavados e é um homem sem idade.

Está em Lisboa para filmar algumas cenas do Jovem Toscanini mas passa esta tarde de domingo melancólica e quase outonal, na suite que ocupa num hotel da capital, habitada hoje também por duas cadelinhas — Bambina e Ginger, mãe e filha — com quem ele é particularmente terno.

Franco ‘Zeffirelli é acima de tudo um visualista mais de que um realizador de cinema, um esteta mais do que um criador.

Não tem uma obra original mas teve pelos menos o mérito de se aperceber dos seus próprios limites e seguiu a sua (imensa) intuição: as suas principais obras são o resultado de ter transposto para o cinema o que já existia e possuía um peso específico e uma identidade própria: Shakespeare, por exemplo, (A Fera Amansada e Romeu e Julieta) ou óperas como A Traviata ou Othello. De caminho convidou os melhores para trabalhar, gesto que lhe trouxe fama e proveito e assinou diversas e prestigiadas encenações de óperas nos principais palcos mundiais. Caloroso, amável, Zeffirelli é um excelente conversador desde que… a sua personalidade e o seu “talento” sejam o nervo da conversa. No dia seguinte, no navio Gil Eanes — improvisado plateau — foi um espetáculo assistir ao seu gesto truculento e sobretudo à sua imensa alegria: atento, olho azul brilhante, os sentidos alerta, ele espiava, espreitava, rondava, sentia. Dirigia:

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“Atention! Stand by! Mottore!”…

Assim mesmo, em três línguas. O cinema também é uma indústria…

[Uma cena do filme “A Vida do Jovem Toscanini”, de 1988:]

Ei-lo inesperadamente em Lisboa, e a filmar. Porquê?
Trata-se de um filme sobre Toscanini de cuja vida contarei alguns episódios. Comecei a andar à volta desta história há cerca de três anos, ainda antes de realizar o meu último filme, Othello, com Placido Domingo e Katia Ricciarelli.

Sempre a música por detrás dos seus filmes… numa ligação quase indissociável…
[sorriso] Sim… Mas esta história é fabulosa. Ouça: Toscanini, apenas com 18 anos, segue para o Brasil integrado numa Companhia de Ópera, como ensaiador e violoncelista. Na noite da estreia, o maestro adoece e Toscanini é chamado para o substituir. Também na mesma noite, a soprano russa, Nadina Bulicioff, que interpretava a figura da escrava na Aida, interrompeu a sua representação para anunciar, diante do público e do Imperador Pedro de Bragança, que assistia ao espetáculo, que ia libertar as suas sete escravas e lhes ofereceria a liberdade… Esta estreia significava ainda o come-back de Nadina, afastada há muito do palco… a estreia, súbita, de Toscanini como maestro e a própria estreia da companhia do Brasil… Eis todo um encadeado de emoções, tensões… uma série de circunstâncias sublimes… para um filme!

Quer ver esta gravura? [Levanta-se, mostra-me a fotocópia de uma gravura da época com todos os personagens em cena no momento em que a soprano anuncia a sua decisão de libertar as escravas sob o olhar atónito do Imperador, sentado no camarote real…] Mas Toscanini era um génio, sabia 58 óperas de cor! Conheci-o no fim da sua vida no Scala e fi-lo falar muitas vezes deste episódio mas a verdade é que, de cada vez, ele me dava uma versão algo diferente… [ri]. 

Porque não filmou no Brasil? Chegou a pensar nisso ao que sei…
Oh! Já não existe o Rio desse tempo… não era possível. Em contrapartida vim encontrar aqui, intactos, muitos restos desse mesmo mundo. Na Figueira da Foz, por exemplo, onde já filmei as cenas passadas na casa da soprano, deparei com toda uma atmosfera de um mundo colonial já totalmente perdido. É uma casa tipicamente portuguesa à qual apenas acrescentei alguns azulejos para realçar o esplendor e a beleza…

"Por favor não me fale nos críticos, incomodam-me... E digo-lhe mesmo mais: esse métier não devia sequer existir... Os críticos são quase sempre uns empecilhos e até uns frustrados! Não contribuem em nada, rigorosamente nada, para a construção, a criação... para o fenómeno da criação artística..."

O papel da soprano russa é desempenhado por Elizabeth Taylor, é isso?
[ri] É, mas infelizmente para si, ela não filma nada em Portugal, mas em Itália… Philipe Noiret será o Imperador e Toscanini é feito por Thomas Howell. E ainda há uma excelente jovem, Sophie Ward…

Sete câmaras no teatro

Insisto: já quase não se separa, nos seus filmes, da música, da ópera… do lírico…
Mas se dediquei tanto da minha alma e do meu coração à música, à ópera!… Comecei no Scala há mais de trinta anos… encenando a Cenerentola de Rossini, e depois fui por aí fora… até ao Covent Garden, ao Met. de Nova Iorque, ao Scala outra vez… Trabalhei com a Callas, a Joan Sutherland, a Ricciareli, Teresa Stratas, José Carreras, Domingo…

E esse encadeado de situações foi o imperativo para filmar óperas? Para as transpor para o cinema?
Houve apesar de tudo como um déclic… Em 1976, fez-se pela primeira vez a transmissão em direto da minha encenação para o Scala, de Othelo, com Placido Domingo e sob a regência de Kleber… Oh!, foi sublime, sete câmaras no teatro… e 20 milhões de telespectadores a assistirem! Foi um choque, que me evidenciou esta verdade indubitável: a ópera que é um espetáculo iminentemente popular só pode afinal ser visto por alguns eleitos… Não, não é tanto por razões financeiras, deve-se muito mais ao facto de que, regra geral há apenas meia dúzia de representações de uma ópera. E a partir dessa transmissão em direto do Scala, os números trouxeram-me a verdade, uma outra verdade e fui totalmente”apanhado” por isso… Até aí, eu quedava-me mais pelos palcos, pelas encenações operáticas, mas quando percebi o que podia fazer com os meios da TV, e do cinema… e sobretudo que os podia pôr à disposição de milhões de pessoas!

Nesse mês de dezembro de 1976, comecei então a produzir o meu raciocínio e o meu discurso de uma outra forma: em prol de um maior desenvolvimento da ópera por forma a torná-la profundamente conhecida e amada. E paralelamente, foram-se fazendo com mais assiduidade transmissões em direto do Scala, do Metropolitano de Nova Iorque, etc., das minhas encenações. Recordo uma experiência maravilhosa, em que fiz metade cinema, metade televisão! Pedi ao Scala que me deixasse filmar em direto a representação dos Palhaços e da Cavalaria Rusticana, com Domingo, e Stratas. Foi uma experiência muito bela, com a orquestra a tocar em direto… Nada era dobrado, mas era cinema, puro cinema… Nesse ano, essas realizações ganharam os grandes prémios de TV para o melhor espetáculo do ano!

“Os críticos são uns frustrados!”

Tinha chegado o momento de rodar “La Traviatta”?
Tinha sobretudo chegado o momento de fazer um filme de ópera popular… e não ópera cultural como a “Flauta Mágica”, de Bergman, ou o Don Giovanni, de Loosey, ambos um tanto elitistas ou demasiado “inteligentes”… Ainda ninguém tivera a coragem de fazer uma Traviata popular…

… e no entanto, a crítica foi feroz e o filme gerou uma polémica imensa… Eu própria o achei académico, cheio de bonitos, de enfeites, e não sou crítica, sou uma espetadora média…
[quase explodindo!] Ah!, hã!… A crítica… Por favor não me fale nos críticos, incomodam-me… E digo-lhe mesmo mais: esse métier não devia sequer existir… Os críticos são quase sempre uns empecilhos e até uns frustrados! Não contribuem em nada, rigorosamente nada, para a construção, a criação… para o fenómeno da criação artística… Repare [ligeira pausa], eu nem sequer os detesto mas esbofetearia um filho se ele quisesse ser crítico!

Franco Zeffirelli em 2015

Imagino o que você faria a esse filho se detestasse os críticos! Que reação violenta perante a crítica…
[cada vez mais indignado] Ah! Mas é que você talvez não saiba: o Don Giovanni, a Traviatta, a Carmen etc., etc., foram todas varridas pela crítica da época… Todas! O Bizet, coitado, morreu dois meses depois da estreia da Carmen, que foi um flop historique… Se você lesse o que se disse na altura da Aida… Verdi ficou 17 anos sem trabalhar depois dessas mechantes critiques… Que desperdício, hã? Por causa de meia dúzia de inconscientes…

Voltando à Traviatta… Filmou-a sobretudo porque tinha Teresa Stratas… não foi?
Sim, porque tinha a cantora também, é vero… Ah! que carácter “impossível” que ela tem, mas que talento! Abandonou-me o filme por duas vezes… tinha crises, caprichos, era impetuosa… Mas depois, quando se olha o ecrã, perdoa-se, e esquece-se, não acha?

O seu cinema também não é indissociável de um certo aparato, da concepção de uma certa estrutura espetacular. Isso poderá também relacionar-se com o facto de ter estudado arquitetura? De ter feito décors?
Sim, claro, sim. Estudei arquitetura quando jovem e não o esqueci. Mas fui muitos anos decorador e trabalhei com grandes mestres para quem fiz inúmeros décors. Sabe… sempre sonhei, desde criança, com teatros, com grandes palcos iluminados, com “décors” reluzentes! Na minha família havia, além disso, uma forte tradição musical, o que marcou muito a minha infância e a minha adolescência. Mas quando você insiste com isso do “aparato” e do “espetáculo” eu só posso dizer-lhe que sim, e sim, e sim! A ópera é acima de tudo e sobretudo, espetáculo!

Repare no vosso teatro, no S. Carlos, onde vou filmar dentro de dias… É esplêndido e está mesmo a pedir óperas, cenas, dramas deslumbrantes e esplendorosos nas suas talhas, nos dourados, grandes dramas que as óperas sempre pressupõem. Há, afinal, uma certa desmesura à qual é preciso ser fiel! E, além disso, os meus filmes tocam o seu coração… [pequeno sorriso envaidecido e triunfante].

"Com ele [Visconti] aprendi a essência das coisas, e sobretudo, foi com ele que compreendi a linguagem específica da ópera, o que realmente conta. Ele explicou-me o coração das coisas porque sabia por o dedo e a sensibilidade no essencial, naquilo que conta... A Callas deveu-lhe tanto, tanto..."

Há essa desmesura que o atrai, é certo. E para além disso o que há mais? O que o faz imperativamente filmar? Ou encenar?
A alegria de fazer, o gozo, o “divertimento”… Não posso, não sei trabalhar de outra forma. Com angústia, com dor, não sei… Tudo tem de partir de uma imensa alegria para atingir uma participação integral… Não posso separar-me da matéria, distanciar-me… Sou o meu melhor espetador e por vezes, muitas vezes, choro na montagem dos meus filmes… quando me apercebo que recrio o sonho, a ilusão, a fantasia… E, repito-lhe, faço-o a partir da alegria, do gozo de fazer… de um imenso entusiasmo.

Apesar dessa alegria e desse puro gozo: qual foi o filme mais impossível de fazer? O mais duro?
O “Jesus de Nazaré”… Que duro. Dio mio, que trabalho… Atirei-me de cabeça, quase sem pensar… De resto, se tivesse pensado, amadurecido demasiado, jamais o teria feito! Teria fugido… Todos os dias era impossível, árduo… hardi… e todos os dias eu me comprometia mais e mais, mergulhando de cabeça na dificuldade… [suspiro] O melhor? Othello… hã, c’est sublime… Ainda não viu? [há uma nota de indignação na sua voz…].

[Uma cena de “Jesus de Nazaré”, de 1977:]

Visconti foi um mestre?
Oh! Sim, foi. Comecei a trabalhar com ele como ator no tempo em que tinha uma troupe teatral cheia de esplêndidos jeunes- premiers como Gassman e todos os italianos que hoje são supervedetas… Depois fiz diversos décors para ele… O que aprendi? [pensa] Talvez tenha aprendido sobretudo a importância daquilo que se faz… Não fazemos coisas banais, quel conques… mas coisas de onde advém uma responsabilidade e um peso diferentes… O Toscanini dizia: “A música ou é bem tocada ou não existe”, e Visconti dizia muitas vezes algo como “a arte ou é boa ou não existe”… Sim, Visconti influenciou-me, herdei algo dele mas depois fui eu que formei e trabalhei o meu próprio carácter e que construí o meu destino…

“Visconti não conseguiu sair de Itália”

Por vezes penso que no cinema não há nada de mais belo do que “O Leopardo” ou “Senso”, onde de resto você trabalhou como assistente de realização de Visconti…
Sim, muito belo, mas… repare… Visconti nunca conseguiu sair de Itália e eu obtive o meu próprio sucesso na América, no mundo anglo-saxão… Visconti ficou em Itália…

Há ainda a personalidade de alguém de quem você próprio diz que foi um “mestre entre os mestres”, o maestro Serafim Tulhio…
Oh! Tulhio, esse “Pigmaleão” da Callas ou da Sutherland… Quando o conheci eu tinha vinte e poucos anos, ele era muito mais velhinho… Mas gostou de mim e de facto… ensinou-me tudo. Tutti!… Com ele aprendi a essência das coisas, e sobretudo, foi com ele que compreendi a linguagem específica da ópera, o que realmente conta. Ele explicou-me o coração das coisas porque sabia por o dedo e a sensibilidade no essencial, naquilo que conta… A Callas deveu-lhe tanto, tanto…

Olhando para trás vislumbra-se Zeffirelli que parece partilhado entre dirigir Anna Magnani, Burton, Laurence Olivier ou Elisabeth Taylor de um lado; e Domingo, Callas, Stratas, Carreras, do outro… De que lado  “cai” você… Em última análise o que prefere?
Prefiro o que escolho… Sou eu que escolho. Não, não estou nada partilhado ou dividido… Não me oferecem filmes para fazer. Pelo contrário, vêm ter comigo e perguntam-me: “Quer fazer um filme? Qual?”… Trata-se sempre da minha própria matéria, de algo que começa por partir de mim…

"Grito apenas quando tropeço nalguns idiotas... Não gosto que nada fique impune, há responsabilidades e cada qual tem as suas... Não; eu grito muito mais com os técnicos e nunca com os atores. São animais delicados, necessitam de serenidade."

Seja. Mas está automaticamente mais disponível para dirigir Laurence Olivier ou Plácido Domingo?
Ah!, [sorri] é engraçado que me pergunte dessa forma porque se passou um episódio muito revelador com eles e comigo. Laurence Olivier depois de ter visto Domingo a cantar o Othello veio ter comigo aos bastidores. Estava, dizia ele, bouleversé… Mas um pouco revoltado: “É muito injusto, ele faz o Othello tão bem como eu mas além disso tem… a voz…”. Com Anna Magnani e com a Callas por exemplo, podia passar-se o mesmo… Os atores podem ser sublimes mas depois há aqueles que, para além disso, possuem o dom da voz e se transformam na perfeição absoluta…

“Os atores são animais delicados”

A todos esses e a alguns dos melhores (Gielgud, Faye Dunaway, Burton, James Mason, Susan Strasberg, etc., etc.), diz a lenda que você gritou, massacrou… aborreceu…
Eu!? Grito apenas quando tropeço nalguns idiotas… Não gosto que nada fique impune, há responsabilidades e cada qual tem as suas… Não; eu grito muito mais com os técnicos e nunca com os atores. São animais delicados, necessitam de serenidade. Estão sempre sob pressão e isso pode acabar mal, é necessário evitar esse limite… Só sou duro com eles quando estão à beira da histeria ou em pânico… [De repente, Zeffirelli olha as horas, levanta-se, pede desculpa em italiano, parece tomado de uma súbita urgência. Liga a televisão — que dispõe de antena parabólica — e começa sofregamente a ver os passes da Fiorentina contra o Milão. Meia hora depois, regressa à mesa de trabalho, senta-se, não contém a alegria: “O Fiorentina, o meu clube, ganhou dois zero ao Milão…”, e durante um longo momento Zeffirelli parece em estado de graça… ].

Estou perplexa. Ama dessa forma devoradora o futebol?
Ainda mais do que pensa… É uma paixão! O futebol é como a ópera! A minha juventude torna-se uma condição permanente através do futebol… e também do teatro… [ri].

“Sofrer para obter a perfeição”

Prefiro falar consigo de teatro. Fale-me um pouco da Callas, de Teresa Stratas, de todas essas divas… 
Stratas era a danação, o suplício. É uma perfeccionista, louca, insuportável, abandona os filmes… Tarak, o meu produtor, dizia-me: “Arranjamos outra, isto assim é impossível”, mas eu nunca deixei… por vezes é preciso sofrer para obter a perfeição e ela valia esse sofrimento que permanentemente nos impunha… A Callas? Vivi muito com ela, conheci-lhe os defeitos, as petitesses, todas essas pequenas coisas da vida. Ouvi-a discutir com a sua costureira, antes de entrar em cena, o preço das coisas, os assuntos do quotidiano mais banal… Mas depois, o pano subia e tínhamos todos vontade de chorar…

Os maus feitios; as commérages, as intrigas, esvaem-se e inclinamo-nos sobre o que conta: a perfeição, a impressão do sublime… que nos davam aquelas criaturas divinas… Quando eu revejo a Traviatta, não me lembro da cruz, do perfeito horror que foi filmá-la… Limitei-me a agradecer aos deuses quando no plateau demos início à última prise de vue de Mademoiselle Teresa Stratas… Mas quando olho depois o ecrã… emociono-me… e o público também.

Franco Zeffirelli com Olivia Hussey na rodagem de “Romeu e Julieta”, filme estreado em 1968

A Callas era muito generosa, extremamente humana; formidável com os amigos, passou uma vida inteira a dar e a receber pouco ou nada. Penso que não foi nunca muito feliz, nem sequer no amor. Com quem ela fazia amor era afinal com o público… Mas você ainda não leu a minha autobiografia? [segunda nota de indignação na voz deste senhor vaidoso…] Vou-lha oferecer… [levanta-se de novo, procura numa estante da sua suite, descobre um exemplar, escreve uma dedicatória, dá-me o livro].

Zeffireli faz de cicerone a Madonna

Nasceu em Florença, talvez o mais belo sítio do mundo…
Estive há poucos dias em Florença, uma vez mais. A Madonna telefonou-me para eu lhe fazer de cicerone, ela foi cantar muito recentemente a Itália. Levei-a de barco sull’Arno… Ah! Como era belo tudo… A luz, os amarelos dourados, o rio… Fomos devagar, de barco, a casa da Marquesa Frescobaldi, a grande “hospedeira” de Florença… Havia uma tonalidade, uma beleza em tudo…

E Madonna? Como homem do espetáculo, da cena, você compreende o seu sucesso e sobretudo o fenómeno de massas em que ela se transformou?
[sorriso] Bem… eu… Não, não posso dizer que compreenda bem… simplesmente, respeito o fenómeno. O sucesso é a construção de um personagem, não são as ocasiões, e eu respeito também esse sucesso. O sucesso nunca é roubado, ele tem sempre uma razão forte por detrás. Inclino-me perante tudo isso mesmo quando, como sucede com Madonna, não compreendo muito bem o fenómeno…

O seu sucesso vem de onde? E fruto de quê, na sua opinião?
Tenho boas razões ou não? [ri, como num desafio…] Vem do meu talento e de tudo aquilo que aprendi com mestres formidáveis. A verdade é que eu soube aprender e eu próprio me espanto ao ler a minha biografia e ao constatar as pessoas que tive o privilégio de conhecer, as informações que obtive, os exemplos… Conheci e vi o melhor deste século… Penso muitas vezes. que tive muita sorte mas soube igualmente tirar o melhor de cada experiência. Sabe qual é uma das minhas leis? Esta frase de Da Vinci, que ele quis que fosse o seu epitáfio: “Aqui mora um homem que estava acordado quando os outros dormiam…”.

E o talento que você acha que tem… O que é?
É traduzir num produto concreto uma criatividade abstrata…

Esta entrevista foi originalmente publicada no jornal Expresso a

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