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O que é que divide professores e Governo quando se fala de congelamento de carreiras?

Desde o primeiro momento, quando começaram as rondas negociais deste ano letivo, que os vários sindicatos de professores exigiram a recuperação total do tempo de serviço durante o qual as carreiras estiveram congeladas.

O argumento principal é que foi tempo em que os docentes trabalharam e os sindicatos não aceitam apagar um segundo que seja. São 9 anos, 4 meses e 2 dias, o número que Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, e outros professores ostentam nos crachás que usam ao peito em momentos de contestação.

Ao Ministério de Educação foi entregue uma proposta da Fenprof que passa por recuperar esse tempo de forma faseada até 2023 (pode consultar o documento aqui) e nas conferências de imprensa conjuntas dos 10 sindicatos que convocaram a atual greve às avaliações foi sempre dito que o faseamento era negociável.

A proposta do Governo, em contrapartida, é a de recuperar apenas 2 anos, 9 meses e 18 dias.

 

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Como é que o Governo chegou aos 2 anos, 9 meses e 18 dias?

“Este não é um número encontrado ao acaso”, escreveu a secretária de Estado Adjunta e da Educação, Alexandra Leitão, numa crónica no Público. “É um número assente em critérios de sustentabilidade e de compatibilização com os recursos disponíveis (tal como é imposto pelo artigo 19.º da Lei do Orçamento do Estado), mas também em critérios de equidade”, lê-se.

A equidade de que fala tem a ver com outras carreiras da função pública, as carreiras gerais, a quem foi dado 1 ponto por cada um dos 7 anos que se considerou terem estado congeladas, explica a governante.

Nestas, a progressão é feita por pontos e são precisos 10 para se mudar de escalão, ou seja, aqueles 7 pontos só por si não são suficientes para progredir. A conta de Alexandra Leitão é esta: “Na carreira docente, os escalões são de 4 anos […], o que implicaria que com a recuperação dos 7 anos de congelamento, os professores teriam pelo menos uma progressão e meia (quando – recorde-se – nas carreiras gerais esses 7 anos não se traduzem sequer numa progressão inteira).”

Assim se chega à equidade, explica a secretária de Estado: “A proposta do Governo, assente numa ideia de justiça e equidade, passa pela recuperação de 70% do escalão de quatro anos, ou seja, 2 anos, 9 meses e 18 dias. Por outras palavras: nas carreiras gerais 7 anos são 70% de um escalão, logo, da mesma forma, a proposta apresentada pelo Governo representa 70% do escalão da carreira docente.”

A esta aritmética, a Fenprof já respondeu por diversas vezes, em comunicado, que aqui se transcreve, ou em declarações de Mário Nogueira. “O argumento é que recuperar 0,7 do módulo-padrão da carreira aceitar-se-ia se tivesse sido essa a lógica do congelamento, mas não foi. Com o congelamento, os professores perderam mais de 2 módulos-padrão e não apenas 0,7%”.

Ou seja, nos 9 anos, 4 meses e 2 dias cabem dois escalões de 4 anos e mais uns meses.

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A recuperação do tempo da carreira congelada é a única exigência dos professores?

Não. Como disse Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, no primeiro dia da greve dos professores às avaliações, a recuperação dos dois períodos em que a carreira esteve congelada é apenas a questão mais mediatizada.

Há três motivos principais para a greve:

  1. a recuperação do tempo congelado das carreiras,
  2. medidas para atenuar o desgaste da carreira
  3. e negociar um regime de aposentação específico.

No caso da reforma, a Fenprof pede que os professores se possam aposentar aos fim de 36 anos de serviço, sem penalizações, estando disponível para que isso aconteça de forma gradual ao longo dos próximos anos. No imediato, pedem que todos os docentes que já trabalharam 40 anos — independentemente da idade — possam reformar-se sem entraves.

Com esta alteração, seria possível, na opinião dos sindicatos, que a classe rejuvenescesse: mais de metade do corpo docente está acima de 50 anos.

Para o desgaste da profissão contribuem vários fatores e o não cumprimento do horário semanal de 35 horas é um deles, acredita a Fenprof.

E isto acontece, como já explicaram por várias vezes os dois líderes sindicais da Fenprof e da FNE, porque os horários dos docentes têm três componentes: a letiva — onde entra todo o trabalho direto com os alunos — a de estabelecimento — onde está o trabalho que tem de ser feito nas escolas, as reuniões e a formação contínua dos professores — e a componente individual — onde está a preparação das aulas, a correção de testes, etc.

“A componente letiva tem limites, a não letiva não tem. Por isso, é um poço sem fundo. Sempre que é preciso fazer alguma atividade na escola lá vai para a não letiva. Como ninguém faz a contabilização desse tempo, o professor está sempre com horas a mais”, explicou João Dias da Silva ao Observador.

Quanto aos níveis de desgaste, o secretário-geral da FNE diz estarem sustentados por vários estudos científicos. “É a classe social que mais sofre de stress e burn-out.” Somam-se a estes os dados da Fenprof que apontam para 5 mil professores de baixa por doenças incapacitantes e mais 6 mil com baixas de longa duração.

Clareza nos concursos de professores, mexer no número de alunos por turma e travar a municipalização na Educação também fazem parte do caderno reivindicativo, mas são exigências que surgem em segundo plano.

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O que é que quer dizer que o tempo de serviço esteve congelado?

Há vários tipos de carreira na função Pública e a progressão, que implica aumentos salariais, é feita de forma diferente. Mas para isso acontecer, a carreira não pode estar congelada.

Nas carreiras gerais, que são profissões que existem em quase todos os serviços — como assistentes operacionais ou técnicos superiores — a progressão é feita por sistema de pontos.

De cada vez que se alcança 10 pontos através da avaliação de desempenho, sobe-se de escalão. E de cada vez que se sobe de escalão, há aumento salarial.

Nas carreiras especiais — professores, militares, polícias, magistrados, médicos, enfermeiros — a progressão é quase sempre feita pela contagem dos dias de serviço. Não acontece de forma automática e há outros critérios a respeitar.

Voltando aos professores: em dois períodos diferentes, as progressões na carreira dos docentes estiverem congeladas. Primeiro entre 2005-2007 e depois entre 2011-2018, os anos da estada da troika em Portugal. E é a soma desses dois períodos que resulta nos 9 anos de que falam os sindicatos.

Durante esses dois momentos, apesar de estarem a trabalhar, os professores não puderam subir de escalão e ver os seus salários aumentar, como aconteceria se a carreira não estivesse congelada.

A 1 de janeiro de 2018 a carreira dos professores, tal como a de outros funcionários públicos, foi descongelada e o tempo voltou a contar para progressão daquele momento para a frente. O que os professores pretendem agora é que os 9 anos, 4 meses e 2 dias sejam reconhecidos e que, de forma faseada, os docentes possam recuperar esse tempo para progredir na carreira e nos ordenados.

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Como funcionam os escalões e a progressão na carreira dos professores?

Como já dissemos, os professores têm a chamada carreira especial, como também acontece com médicos e militares, por exemplo.

Em primeiro lugar, um professor pode estar a dar aulas há vários anos sem ter ainda entrado na carreira. É o que acontece aos professores contratados que, quando conseguem um lugar de quadro, podem já ter acumulado 2, 5, 10, 15 anos de serviço. Depende das situações. No entanto, esse tempo nunca será reconhecido para as progressões que começam com a entrada na carreira.

A partir do momento em que se entra no quadro, a carreira dos professores está dividida em 10 escalões, sendo o décimo o que corresponde ao topo da carreira.

Cada um desses escalões tem uma permanência obrigatória mínima de 4 anos, exceto o 5.º escalão (tem 2 anos) e o 10.º (não tem limite e chegado ao topo da carreira é naquele escalão que o professor fica até se reformar).

Mas para progredir basta estar quatro anos num escalão? Não. Esse tempo mínimo é apenas um dos critérios. Para progredir é preciso que o professor tenha na sua última avaliação de desempenho uma menção qualitativa não inferior a Bom. E acrescenta-se o ter também obrigatoriamente frequência, com aproveitamento, de formação contínua.

Mas há mais. Há escalões com critérios específicos. Para subir ao 3.º e ao 5.º, o professor tem de ser observado na aula. E para subir ao 5.º e ao 7.º é preciso que abram vagas nesses escalões, havendo sempre mais candidatos do que lugares disponíveis.

Assim, se um professor conseguisse subir de escalão de cada vez que completa o tempo mínimo de serviço em cada um deles, demoraria 34 anos a chegar ao topo da carreira.

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E quanto ganha um professor?

No topo da carreira, ou seja ao fim de um mínimo de 34 anos de serviço, o ordenado bruto de um professor é de 3364,63€. Este valor cai quando se olha para o valor líquido — segundo as contas do Sindicato de Professores da Grande Lisboa — já que, dependendo da situação fiscal do trabalhador, varia entre 1884,47 e 2207,47 euros (a que se acrescenta o subsídio de alimentação de 104,94 euros).

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Quem é que avalia os professores?

A avaliação do desempenho docente é composta por uma componente interna e externa. A primeira é feita pelo agrupamento de escolas e é realizada em todos os escalões. A externa, centrada na dimensão científica e pedagógica, é levada a cabo por avaliadores externos através da observação de aulas.

Para aferir o desempenho do professor, há vários intervenientes no processo: o presidente do conselho geral, o diretor, o conselho pedagógico, a secção de avaliação de desempenho docente do conselho pedagógico, os avaliadores externos e internos e, por último, os avaliados.

Cabe à Inspecção-Geral de Ensino o acompanhamento global do processo de avaliação do desempenho do pessoal docente.

Tal como no resto da Função Pública, também na Educação há quotas para o número de classificações Excelente e Muito Bom que podem ser atribuídos. Os percentis são definidos por despacho conjunto dos membros do governo responsáveis pelos setores da Educação e da Administração Pública.

Embora possam variar, a quota máxima por agrupamento ronda os 10% para os Excelente e os 25% para os Muito Bom.

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Há algum momento em que os professores possam não ser avaliados?

Mais ou menos. O exercício de alguns cargos é equiparado a serviço efetivo como professor e, nesses casos, não é necessária a avaliação de desempenho para progressão na carreira. Na prática, são docentes que estão a exercer outras funções, longe da sala de aulas.

A lei prevê esta exceção para o exercício dos cargos de Presidente da República, deputado à Assembleia da República, membro do Governo, ministro da República para as regiões autónomas, governador e secretário-adjunto do Governo de Macau e outros por lei a eles equiparados, membros dos governos e das assembleias regionais, governador civil e vice-governador civil, presidente e vice-presidente do Conselho Nacional do Plano, presidente de câmara municipal e de comissão administrativa ou vereador em regime de permanência.

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Quem recebeu 1 ponto por cada ano de congelamento têm de esperar 3 anos para progredir?

Uns sim, outros não, depende dos pontos que acumularam durante o congelamento das carreiras. A 1 de janeiro de 2018 foram descongeladas todas as carreiras da função pública — gerais, especiais, não revistas e subsistentes. Nessa data, todos os trabalhadores que reuniam os requisitos para progredir na carreira puderam fazê-lo. Ou seja, no caso das carreiras gerais, tinham de ter acumulado 10 pontos nas avaliações de desempenho (ou mais) para poderem subir de escalão.

Mas para conseguir 10 pontos não são precisos 10 anos. Uma avaliação de Excelente (a máxima possível) confere 6 pontos, um Muito Bom dá direito a quatro.

Apesar de as progressões terem estado proibidas, a avaliação de desempenho continuou. Ou seja, os pontos foram tidos em consideração, foram-se acumulando, mas sem a progressão correspondente.

Aos trabalhadores que não foram avaliados durante esse período de congelamento (2011-2018), e para que não sejam prejudicados, foi-lhes atribuído um ponto por cada ano não avaliado, no total de 7. Os tais pontos de que falava a secretária de Estado Adjunta e da Educação.

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Os professores exigem pagamento de retroativos?

Não. Os efeitos salariais só se sentiriam quando houvesse nova progressão na carreira.

Mesmo que um professor esteja erradamente colocado num escalão — por exemplo, no 1.º quando já deveria estar no 4.º por ter o tempo de serviço necessário e por ter cumprido os restantes critérios  — os sindicatos não pedem o pagamento do acerto salarial de todos os anos em que esse professor não progrediu.

 

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E os professores querem tudo pago de uma só vez?

Como já dissemos, a proposta da Fenprof prevê a recuperação faseada entre 2019 e 2023.

Pode consultar a proposta aqui.

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Quanto dinheiro custaria recuperar o tempo de serviço?

As contas variam consoante a fonte e, para 2018, por exemplo, as contas do governo e dos sindicatos estão separadas por 60 milhões de euros.

No Parlamento, António Costa foi claro: “Só este ano, 45 mil professores vão ser descongelados, o que vai representar mais 90 milhões de euros da despesa”, declarou o primeiro-ministro. “A proposta até hoje apresentada pelos sindicatos tinha um impacto de 600 milhões de euros, para descongelar todas as carreiras desde 2011, e isto não é comportável”

Estes valores estão sustentados no Programa de Estabilidade 2018-2022 entregue no início de abril ao Parlamento. Entre 2018 e 2020, o documento prevê uma despesa bruta de 1039,5 milhões de euros e uma receita de 447,4 milhões (contribuições sociais e impostos).

O valor líquido da medida será de 592,1 milhões de euros naqueles três anos, mas referem-se ao descongelamento das progressões na carreira de todos os trabalhadores da administração pública e não apenas dos professores.

Na quinta-feira, em nota enviada às redações, o Ministério das Finanças divulgou novas contas, muito diferentes das primeiras, como se pode ver na tabela acima. A explicação dada é que os primeiros valores de 2018, os 90 milhões de euros,  são “sem faseamento e sem TSU”, enquanto que os segundos, de 37 milhões, já contemplam o faseamento e a Taxa Social Única.

O Orçamento do Estado estipula de que forma será feito o faseamento da progressão na carreira: um acréscimo de 25% no vencimento em janeiro de 2018, outro em setembro, um novo em maio de 2019 e o último em dezembro de 2019.

Depois das contas do primeiro-ministro, Mário Nogueira foi rápido a desmentir os números, garantindo que em 2018 o valor não chegaria sequer aos 30 milhões. O líder da Fenprof disse então que o custo do descongelamento em 2018 estava a ser apresentado como se os professores fossem ganhar o valor total do escalão seguinte logo em janeiro, quando só chegariam aos 100% desse valor no final de 2019 — o faseamento apresentado no OE. 

“Só nestes 3 anos (2018-2020), o governo gastará menos 165 milhões do que diz necessitar — 90 milhões e não 255 milhões —, o que significa que nada justifica que seja apagado tempo de serviço cumprido pelos professores. A sustentabilidade dessa recuperação está no faseamento aceite pelas organizações sindicais, entre 2019 e 2023”, explicou então Nogueira.

Mas mesmo a mais recente previsão de custos do governo está inflacionada, defende a Fenprof, porque do total de 519 milhões de euros agora apresentados, 136,5 milhões ficarão sempre nos cofres do Estado já que correspondem aos descontos de IRS e Segurança Social feitos pelos professores.

Retirado os descontos, o valor fica nos 382 milhões de euros.

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Porque é que os professores da Madeira suspenderam a greve?

Na Madeira, uma proposta do Governo chefiado por Miguel Albuquerque (PSD) fez travar a greve às avaliações. Embora ainda nenhuma das partes tenha avançado com os custos da medida, é certo que o governo regional aceita recuperar os 9 anos de tempo de serviço congelado, repartindo a recuperação ao longo de sete anos.

Esta proposta foi suficiente para fazer regressar o Sindicato dos Professores da Madeira (SPM) à mesa das negociações, embora a estrutura se bata por um faseamento de 4 em vez de 7 anos.

O calendário apresentado pelo governo da Madeira implica que nos primeiros seis anos os professores recuperem 545 dias. No último ano, os restantes 141. E propõe como data de início 1 de setembro de 2019, a que o SPM contrapõe 1 de janeiro do mesmo ano.

As negociações que afectam cerca de 6 mil professores do arquipélago continuam a decorrer.

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O que está escrito no documento de compromisso de 18 de novembro?

É possível o mesmo documento ser lido de forma diferente pelas pessoas que o assinaram? Neste caso, é.

E é a frase que se segue, retirada da Declaração de Compromisso de 18 de novembro de 2017, que causa toda a discórdia.

A alínea a) do artigo 5.º tem servido de base para a argumentação do governo, a alínea b) tem servido aos sindicatos.

Vamos por partes, começando pela posição do governo. Na alínea a) as partes concordam “definir como base negocial para a construção do modelo três variáveis fundamentais: o tempo, o modo de recuperação e o calendário em que a mesma ocorrerá”.

E é na palavra “tempo” que o governo se escuda, como escreve a secretária de Estado Adjunta Alexandra Leitão, a 21 de junho, num artigo de opinião publicado no jornal Público: “Este documento define, portanto, como base negocial três variáveis – o tempo a recuperar, o modo de recuperação e o calendário –, deixando claro que o tempo a recuperar não estava definido à partida na negociação. Por isso mesmo – por não haver acordo quanto a nenhuma destas três variáveis – se intitulou ‘declaração de compromisso’ e não ‘acordo’, por exigência das próprias estruturas sindicais.”

E o que dizem os sindicatos? Lembram que a alínea b) se escreve que as partes acordam “negociar nos termos da alínea anterior o modelo concreto da recomposição da carreira que permita recuperar o tempo de serviço“. A questão é ter sido usado o artigo definido “o”, discussão que levou a que a reunião onde foi assinado o documento só terminasse às 5 da manhã.

No texto inicial, segundo Mário Nogueira, lia-se “recuperar tempo de serviço”. E isso poderia causar a ideia de que só algum tempo seria recuperado. Ao acrescentar o “o” fica subentendido, na opinião dos professores, que é todo o tempo, e não apenas uma parte.

E é nesta questão de semântica, que leva a leituras diferentes do mesmo compromisso, que a discussão se encontra.