A frase completa

No leilão de dívida de 8 de fevereiro “aconteceu o seguinte: além da elevação [dos juros] que está a haver nas emissões em toda a Europa, houve uma estratégia, com algum sucesso, que foi colocar dívida a cinco e a sete anos, prazos razoavelmente longos — e sobretudo sete anos — com um objetivo que é fazer baixar os juros da dívida a 10 anos. Como? Colocando logo à partida com um preço mais elevado e emitindo menos do que se esperava, com uma procura que foi mais do dobro do que foi emitido. Isto teve um efeito carambola que foi baixar os juros, imediatamente na sessão, da dívida a 10 anos, que baixaram substancialmente. Eu diria que sendo essa a estratégia definida, até agora, vamos ver, porque os mercados são abertos, até agora tem dado resultado. É uma boa estratégia porque tudo o que for embaratecer a dívida mais longa nos mercados secundários é bom, quanto mais longa for a dívida melhor para o país”.

O que está em causa?

Marcelo Rebelo Sousa dá a entender que está informado sobre uma “estratégia que está a ser seguida” que é emitir juros em prazos menores do que 10 anos para provocar um “efeito carambola” para baixar os juros a 10 anos. Segundo Marcelo, foi isso que aconteceu no leilão duplo de dívida a cinco e sete anos que foi realizado na quarta-feira e que resultou no pagamento, por parte do Estado português, de juros (no prazo de 7 anos) que são o dobro do que se pagava em junho por dívida com a mesma maturidade. Marcelo atribui este facto a uma “elevação dos juros que está a haver nas emissões em toda a Europa”.

Este é o segundo fact check que fazemos, no espaço de algumas semanas, a comentários do Presidente da República às mais recentes emissões de dívida e ao grau de acesso de Portugal aos mercados (clique aqui para ler o outro fact check à entrevista à SIC).

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E quais são os factos?

O Observador traduziu a declaração de Marcelo Rebelo de Sousa e enviou-a a dois especialistas em mercados de obrigações da City de Londres. A reação foi de alguma perplexidade.

A declaração é um pouco estranha. Não percebo como ou porque é que uma agência de gestão de dívida iria emitir dívida a cinco anos ou a sete anos com o objetivo de baixar a taxa de juro a 10 anos, por muito que naturalmente a taxa a 10 anos seja a mais mediática. Não é assim que as coisas funcionam, normalmente”. Esta é a opinião de David Schnautz, analista do Commerzbank que há vários anos acompanha o mercado português. Um outro analista, que preferiu não ser identificado, limitou-se a dizer, “educadamente”, que “digamos que não seria uma declaração que um profissional dos mercados financeiros faria”.

Marcelo tem razão quando diz que houve uma descida “substancial” dos juros de Portugal no dia do leilão — 12,5 pontos-base, segundo a Bloomberg. Mas há que recordar que na segunda-feira tinham subido 7 pontos-base e outros 5 pontos-base na sexta-feira anterior, o dia em que a operação foi anunciada pela Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP).

No Parlamento, António Costa disse na quarta-feira que tinha falado com Cristina Casalinho, a presidente do IGCP, ao final da manhã, após o leilão — e confidenciou que esta mostrou grande satisfação com o resultado do leilão. E Casalinho tem algumas razões para isso, do ponto de vista de quem tem de gerir as emissões de dívida em nome do Estado. Isto porque o timing escolhido pelo IGCP (que anunciou a operação na sexta-feira para a quarta-feira seguinte) acabou por ser ótimo, porque foi um dia muito positivo nos mercados de dívida europeus. Isso mesmo reconheceu a presidente do IGCP numa curta entrevista ao Negócios na quarta-feira.

A descida “substancial” dos juros notada por Marcelo, os tais 12,5 pontos-base, aconteceu num dia de leilão, o que é um bom sinal porque indica que os investidores digeriram bem a ida ao mercado por parte de Portugal e os juros baixaram para um nível inferior ao patamar onde estavam antes do anúncio da operação. Contudo, Portugal limitou-se a seguir a tendência do resto da Europa — os juros de Espanha desceram oito pontos e os de Itália 12 pontos, mas há que recordar que estes são valores nominais e tanto um país como o outro têm juros bem mais baixos do que Portugal (1,7% em Espanha e 2,2% em Itália), contra os mais de 4% de Portugal, ou seja, o alívio em termos proporcionais foi muito mais “substancial” nesses países do que em Portugal. Até na Irlanda, que está a pagar pouco mais de 1% pela dívida a 10 anos, os juros baixaram 10 pontos-base, quase tanto quanto Portugal (em termos nominais) para uma taxa absoluta que corresponde a um quarto.

Ainda assim, que Portugal tenha acompanhado a tendência dos outros países no “dia muito forte no mercado de dívida” descrito por Cristina Casalinho é uma boa notícia (sobretudo na medida em que se não tivesse acompanhado teria sido uma má notícia, sinalizando que o mercado não tinha acolhido os títulos emitidos de forma positiva). A presidente do IGCP tem o mérito de ter acertado num dia de maior otimismo nos mercados de dívida.

Foto: MÁRIO CRUZ/LUSA

Seja como for, e voltando à questão central, faz sentido dizer que é uma “boa estratégia” para Portugal emitir dívida a prazos mais curtos porque isso, segundo diz Marcelo, ajuda a baixar os juros nos prazos mais longos (como 10 anos)? A explicação tem algum fundamento técnico, mas não faz muito sentido invocá-la para o caso de Portugal neste momento.

Por vezes, ao longo da crise da dívida europeia, houve momentos em que países como Itália e Espanha emitiram dívida a prazos de 7 ou 8 anos e isso ajudou a melhorar os juros em todos os prazos que compõem a chamada curva de rendimentos. Porquê? Porque se acredita que se um emitente consegue fazer um leilão de dívida a 7 anos e a procura dos investidores excede o montante que acaba por ser colocado, pode depreender-se que alguma dessa “procura que não foi satisfeita” poderia estar disponível para apostar em maturidades um pouco mais longas. Daí que essa operação, tecnicamente, possa fazer baixar os juros ao longo de toda a curva de rendimentos.

Mas é muito discutível que esse fenómeno se aplique a Portugal, neste momento, e David Schnautz explica porquê: “Para Portugal, as compras por parte do Banco Central Europeu (BCE) é que são o fator decisivo, portanto não faz muito sentido fazer considerações acerca da curva de rendimentos. O que importa para Portugal é emitir dívida em maturidades nas quais o BCE ainda tem algum espaço para comprar [veja a explicação de seguida], ainda que o BCE já esteja provavelmente muito perto de ficar tapado e atingir os limites na maioria das linhas de obrigações que Portugal tem”.

Explicando, em termos simples: uma das regras do programa de compra de dívida do BCE é que o Eurosistema não pode ser dono de mais de 33% de cada linha de obrigações de Portugal. O Tesouro português tem várias linhas de obrigações que estão vivas, o que significa que são várias linhas que atingem a maturidade em anos diferentes — eis um link do IGCP para as 14 linhas que existem neste momento. De cada uma destas, o BCE não pode comprar no mercado títulos que o levem a exceder 33% do montante que está emitido em cada uma.

O que importa para os investidores na dívida portuguesa, quase exclusivamente gestoras de ativos mais ágeis e oportunísticos, é que o IGCP utilize linhas onde o BCE pode comprar. Ou seja, linhas onde os investidores podem comprar ao IGCP e, depois, vender os títulos ao BCE. É por isso que o analista do Commerzbank diz que a missão do IGCP é satisfazer a procura que existe no mercado em obrigações que os investidores sabem que o BCE pode comprar. E, como tem sido noticiado, o BCE já tem vindo a abrandar a compra de títulos porque estará a atingir esses limites (apesar de o programa durar até ao fim de 2017) e “ninguém quer entrar numa obrigação em que não saiba que o BCE pode ser um comprador ativo”, explicou outro analista.

Outro ponto importante é que, ao emitir mais dívida numa dada linha, além de estar a avançar no programa de financiamento, o IGCP está a dar mais espaço para que o BCE compre. Um exemplo concreto: se, numa dada linha, estão emitidos 1.000 milhões, o BCE só pode ser dono de 330 milhões — se o IGCP emitir mais 500 milhões, passa a haver um saldo vivo de 1.500 milhões e, aí, o BCE já pode comprar 500 milhões, ou seja, mais 170 milhões de euros.

Marcelo Rebelo de Sousa diz que a emissão ajudou a baixar os juros a 10 anos, mas os analistas e investidores não têm a mesma fixação com o prazo a 10 anos que os políticos (e, eventualmente, os jornalistas). Para os analistas, importa saber é:

  1. Se o BCE tem margem para comprar os títulos;
  2. Se o país não vai perder o rating da DBRS, que permite aceder às compras do BCE;
  3. Se Portugal não consegue sair de lixo em outras agências de rating mais importantes, porque daí poderia aceder a índices de obrigações e isso seria ótimo para Portugal, como se explicou aqui.

O Presidente da República diz que, se a emissão de quarta-feira ajudou a baixar os juros a 10 anos e noutros prazos mais longos, isso é bom porque dívida mais “embaratecida” em prazos o mais longos possível é “bom para o país”. Este argumento é, obviamente, verdadeiro e é por isso que Portugal estava a emitir dívida em prazos tão longos quanto 30 anos (em inícios de 2015), pagando por isso juros de cerca de 4% — o mesmo que agora se paga, e mesmo beneficiando da influência do BCE, por dívida a 10 anos.

A conclusão

A explicação de Marcelo Rebelo de Sousa deixa clara alguma fundamentação técnica, mas não é uma descrição adequada da situação portuguesa neste momento — um país que depende muito das compras do BCE e que tem de ser ultra-cuidadoso com cada emissão que decide fazer no mercado, para tentar que não seja mal-recebida. O Presidente da República salienta que é, de facto, um bom sinal que os juros em todos os prazos tenham caído naquele dia, mas isso é, sobretudo, mérito da equipa do IGCP que marcou uma data, com alguns dias de avanço, e acertou num dia muito positivo para o mercado em todos os países.

No final da sua declaração, Marcelo até acaba por dar a própria resposta (mais correta) à situação que descreve: “quanto mais longa for a dívida melhor para o país” — aliás, não haveria melhor forma de fazer baixar os juros a 10 anos do que emitir a 30 anos, com sucesso — isso, sim, seria um sinal ainda melhor para os investidores que comprimiria os juros nos prazos menores. Contudo, isso é impossível neste momento, já que não existe capacidade do Tesouro português para emitir dívida em prazos mais longos e, mesmo que não se estique muito nos prazos, David Schnautz diz que será “desafiante” para Portugal emitir toda a dívida pública de que necessita este ano (até 16 mil milhões de euros). E porque é que não existe essa capacidade para emitir dívida em prazos mais longos? Por fatores internos e externos que foram explicados em trabalhos como este, este, este e este.

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