O caso do homicídio de Valentina Fonseca, a menina de nove anos que terá sido assassinada pelo pai e madrasta, chocou o país e indignou a população. Várias foram as pessoas que recorreram às redes sociais para prestar homenagem à criança e à família ou para demonstrarem a sua revolta contra os suspeitos do crime. A par destas publicações surgiram outras que apenas visam espalhar a ideia — usando para tal informação completamente errada — de que a justiça portuguesa deixa sair homicidas impunes.

É o caso desta publicação, que reúne um conjunto de três fotografias, de três pessoas, e onde se pode ler: “Matou a enteada de cinco anos e está livre. Matou pai e mãe e está livre. Matou o assassino do filho e está preso”. À imagem, a utilizadora acrescenta um comentário: “Exemplo da lei que temos”. Ora, a ideia de que esta publicação passa é a de que, em Portugal, a justiça liberta os homicidas e a de que poderá vir fazer o mesmo com os dois suspeitos que estão indiciados pela morte de Valentina.

Só que os casos que a utilizadora, de nacionalidade portuguesa, partilha aconteceram no Brasil. E, mesmo lá, as duas mulheres das fotografias foram condenadas a penas de prisão pesadas e ainda se encontram a cumpri-las. Ainda assim, são milhares os utilizadores a acreditar que os casos aconteceram em Portugal e que as informações são verdadeiras: a publicação teve mais de 20 mil partilhas desde 11 de maio.

A publicação no Facebook já tem mais de sete mil partilhas

Anna Carolina Jatobá foi condenada a 26 anos e 8 meses de prisão. Tem direito a saídas precárias, mas continua a trabalhar na cadeia

A mulher que aparece na fotografia da esquerda, de óculos escuros, é Anna Carolina Jatobá, que matou a enteada de cinco anos, em coautoria com marido e pai da menina, em 2008. A criança, Isabella Nardoni, foi atirada do sexto andar da casa onde viviam, na zona norte de São Paulo. O pai, Alexandre Nardoni, foi condenado a uma pena de prisão de 31 anos, 1 mês e 10 dias, e a madrasta 26 anos e 8 meses de prisão.

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É certo que, em julho 2017, um tribunal de São Paulo concedeu a Anna Carolina Jatobá um regime semiaberto. De acordo com é explicado no site da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, um recluso em regime semiaberto passa a ter direito a cinco saídas precárias de sete dias por ano e a poder sair da prisão para trabalhar. No entanto, segundo o jornal brasileiro Gazeta do Povo, Anna Carolina está a trabalhar na própria cadeia, pelo que nem sequer para trabalhar sai da prisão. Mais: ainda terá de cumprir os 16 anos que faltam da pena.

Suzane von Richthofen foi condenada a 39 anos e 6 meses de prisão em 2002. Em 2015 teve a primeira saída precária, mas continua presa

Já a mulher da fotografia da esquerda é Suzane von Richthofen, que planeou a homicídio dos pais e ordenou que o seu namorado — uma relação que os pais não apoiavam — e o irmão deste executassem o plano, em 2002. É um dos crimes mais mediáticos do Brasil. Suzane e o namorado, Daniel Cravinhos, foram ambos condenados a 39 anos e 6 meses de prisão. O cunhado Cristian Cravinhos foi condenado a 38 anos e 6 meses de prisão.

Em 2015, após cumprir 13 anos de prisão, também a Suzane von Richthofen foi dada a possibilidade de regime aberto — que também permite que os reclusos estudem fora da prisão. Suzane já teve a sua entrada aprovada três vezes na universidade — a mais recente em janeiro de 2020 —, mas nunca chegou a estudar efetivamente. Na primeira vez, chegou a matricular-se, mas desistiu com receio da reação dos seus colegas de curso. Na segunda, não se chegou a matricular. Agora, foi o próprio tribunal a negar o pedido, apesar de ter sido aceite na faculdade, escreve o Estadão. Assim, Suzane continua presa e com mais de 20 anos de prisão por cumprir.

Florisvaldo da Silva matou o homicida do filho, mas foi libertado

Já o homem que aparece na fotografia e que a publicação afirma que matou o homicida do filho e está preso é Florisvaldo da Silva. O seu filho, de 22 anos, foi esfaqueado na sequência de um desentendimento relacionado com futebol, em abril de 2019, por Lincon Martins Rodrigues, de 21 anos, em Curitiba.

É verdade que Florisvaldo da Silva acabaria por matar, a tiro, o homicida do próprio filho. O homem acabaria ambém por confessar o crime à polícia e foi detido numa primeira fase. Mas, de acordo com a STB, uma rede televisiva brasileira, Florisvaldo da Silva foi libertado dias depois pelo juiz que considerou que o homem agiu sob influência de “fortes emoções”. Assim, Florisvaldo vai aguardar os próximos passos judiciais em liberdade.

Assim, a publicação usa informação errada e descontextualizada para criticar a lei portuguesa à luz da lei de outro país. Sendo certo que o pai e a madrasta de Valentina, a serem considerados culpados, nunca poderão ser condenados a penas de 26 ou 39 anos como Anna Carolina Jatobá e Suzane von Richthofen uma vez que a pena máxima em Portugal é de 25 anos.

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No entanto, o desfecho do caso está longe de ser conhecido. Os suspeitos da morte de Valentina ainda não foram a julgamento pelo que nunca poderia haver, para já, uma condenação — fosse ela qual fosse. O caso ainda está a ser investigado e pai e madrasta da menina de nove anos estão, para já, presos, enquanto aguardam um julgamento ou uma fase de instrução. E, para já, foi-lhes aplicada a medida de coação máxima: a prisão preventiva. Ou seja, o juiz de instrução aplicou a medida mais pesada possível em Portugal. Depois, estão indiciados, entre outros, pelo crime de homicídio qualificado, cuja moldura penal vai dos 12 aos 25 anos de prisão.

Se olharmos para outros casos de pessoas que mataram familiares em Portugal, podemos concluir que a justiça as condenou a penas de prisão e não as deixou passar impunes. A mãe de Joana Cipriano, por exemplo, foi condenada a 20 anos e quatro meses de prisão. É certo que o Supremo Tribunal de Justiça reduziu a pena para 16 anos e oito meses de prisão, mas foi uma pena considerável, especialmente tendo em conta que o tribunal não pôde analisar a principal prova contra Leonor Cipriano: o corpo da criança nunca foi encontrado.

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Conclusão

Como forma de criticar a justiça portuguesa, uma publicação exibe três fotografias de três pessoas — alegando que duas mulheres que mataram familiares e estão em liberdade e que o homem que matou o homicida do filho está preso. Mas estes casos aconteceram no Brasil e, mesmo lá, as duas homicidas em causa estão presas e o homem foi libertado.

A publicação surgiu numa altura em que o país estava chocado com o caso de Valentina, a menina de nove anos que terá sido assassinada pelo pai e madrasta, deixando a ideia de que a justiça liberta os homicidas e que poderá vir a fazer o mesmo com os dois suspeitos pela morte da criança. No entanto, a investigação está numa fase muito inicial e ainda não houve a julgamento, quanto mais condenação — seja ela qual for. Para já, os dois suspeitos estão presos, tendo-lhes sido aplicada a medida de coação máxima: a prisão preventiva. Ou seja, o juiz de instrução aplicou a medida mais pesada possível em Portugal.

Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

Errado

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

Nota 2: O Observador faz parte da Aliança CoronaVirusFacts / DatosCoronaVirus, um grupo que junta mais de 100 fact-checkers que combatem a desinformação relacionada com a pandemia da COVID-19. Leia mais sobre esta aliança aqui.

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