Foi o segmento mais inesperado do debate das rádios, que juntou na manhã desta quinta-feira sete dos principais candidatos às legislativas. Durante vários minutos, António Costa e Rui Tavares discutiram intensamente sobre um assunto que, em Portugal, tem estado afastado dos holofotes do debate público: a energia nuclear. Tudo começou quando António Costa procurou salientar o que o separa dos partidos à sua esquerda, com o objetivo de argumentar em defesa de uma maioria absoluta do PS, e atacou o programa eleitoral do Livre:

Há um ponto que para nós é uma linha vermelha inultrapassável. No programa do Livre, encara-se com grande abertura a possibilidade de estudar o recurso à energia nuclear como uma solução para a transição energética. Para nós, nunca será possível essa solução. Está lá escrito que o Livre está aberto a estudar e considerar a solução da energia nuclear. Nunca será solução.”

Rui Tavares não escondeu o desconforto com as declarações de Costa, exclamando várias vezes “Ora essa!” durante a intervenção do primeiro-ministro e pedindo às moderadoras para responder. Cerca de dez minutos mais tarde, quando lhe foi dada a palavra, Rui Tavares procurou desmontar o que Costa havia dito antes. “Vamos divertir-nos um bocadinho”, disse Tavares, antes de começar a sua explicação.

Só não lhe levo mais a mal porque alguém lhe preparou mal as fichas. Vamos lá ver. O Livre é contra a construção de centrais nucleares em Portugal, ponto final. São caras, são perigosas e as tecnologias existentes de fissão nuclear não fazem, no nosso entender, sentido no mix de energias de que nós precisamos para combater as alterações climáticas. O Livre diz no programa que se deve seguir atentamente o desenvolvimento de novas tecnologias nucleares, incluindo a fusão nuclear — é uma tecnologia inteiramente diferente, e se lá chegarmos daqui a dez anos, num grande projeto europeu chamado ITER [International Thermonuclear Experimental Reactor], será inteiramente segura, se funcionar — e outras tecnologias, como os chamados microrreatores, que poderão ser mais seguros, mas ainda têm o problema dos resíduos nucleares. Em relação a esses nós somos muito mais receosos ou cautelosos.”

E o candidato do Livre continuou a explicação. “Não percebo qual é a linha vermelha de António Costa em relação ao seguir atentamente o desenvolvimento de novas tecnologias. Não sei se ele pretende seguir desatentamente, ou se pretende não seguir atentamente, mas eu tenho uma novidade para dar a António Costa. A linha vermelha dele é desde logo com o seu próprio Governo e as políticas do seu próprio Governo. Se é contra não só o seguir atentamente a investigação em fusão nuclear, mas participar nela, tem de demitir o ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, porque Portugal participa no desenvolvimento do ITER e das tecnologias de fusão nuclear. As tais que são diferentes das centrais nucleares de que estamos a falar. Não confundamos as pessoas.”

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A discussão prolongou-se durante vários minutos, com António Costa a insistir na ideia de que o Livre pretende implementar energia nuclear em Portugal e Rui Tavares a procurar distinguir entre fusão e fissão nuclear.

Onde está, afinal, a verdade nesta discussão?

Em primeiro lugar, vamos à afirmação de António Costa. Será que o programa do Livre admite “o recurso à energia nuclear como uma solução para a transição energética“? A dúvida desfaz-se rapidamente olhando para o programa eleitoral do Livre, que inclui efetivamente uma referência à energia nuclear. Trata-se do ponto 25 do programa, que consta da página 60 do documento:

Gerir o risco nuclear para Portugal, em particular o risco de poluição radioativa no rio Tejo, cooperando com a Espanha no sentido de desenvolver um plano para níveis mínimos de risco nuclear na Península Ibérica. Seguir atentamente o desenvolvimento de novas tecnologias de produção de energia nuclear (como os small modular reactors, ou a fusão nuclear), que poderão contribuir para a descarbonização, assim como dar resposta ao crescente consumo energético.”

Este ponto do programa eleitoral aborda dois problemas distintos. O primeiro prende-se com um facto inegável: existem centrais nucleares em Espanha que representam um risco para Portugal. Destaca-se a central de Almaraz, situada nas margens do rio Tejo, a cerca de 100 quilómetros da fronteira com Portugal. Atualmente, o plano climático espanhol prevê o encerramento das centrais nucleares entre 2025 e 2035, mas a grande preocupação portuguesa respeita aos resíduos, devido ao risco de contaminação do Tejo e consequente entrada em Portugal.

O segundo ponto refere-se ao tal acompanhamento atento do desenvolvimento de novas tecnologias nucleares que permitam a produção de energia nuclear de modo limpo e seguro. Uma dessas potenciais tecnologias é o uso de small modular reactors, os tais microrreatores de que Rui Tavares falava — uma versão em pequena escala dos reatores nucleares hoje usados, com grandes vantagens de segurança, mas que mantêm o problema dos resíduos. A outra é a fusão nuclear, uma mudança completa de paradigma no que respeita à produção de energia nuclear.

Para perceber o alcance da discussão entre Rui Tavares e António Costa é necessário descortinar a diferença entre a fusão e a fissão nuclear — um tema sobre o qual a secção de ciência do Observador tem escrito com frequência.

Nuclear: criar uma bomba atómica ou produzir energia? Qual a diferença?

A fissão nuclear é a tecnologia atualmente em uso nas várias centrais nucleares que existem no planeta. Na prática, e como o nome indica, trata-se de um processo que implica a divisão de um núcleo instável em dois fragmentos mais pequenos, com libertação de energia. Para a produção de energia é usado habitualmente um isótopo instável do urânio, que se torna instável quando recebe um neutrão adicional, dividindo-se em dois núcleos diferentes e libertando não só energia como neutrões. O processo inicia-se bombardeando um átomo com um neutrão — e a reação em cadeia acontece porque os neutrões libertados em cada fissão vão provocar novas fissões. Este processo liberta grandes quantidades de energia, que é usada para aquecer água, cujo vapor faz mover uma turbina, obtendo-se assim energia elétrica.

O grande problema da fissão nuclear é que dela resultam resíduos tóxicos, incluindo muitos elementos radioativos, que podem permanecer radioativos durante muitos anos. O que lhes fazer é um dos grandes desafios da produção de energia nuclear. Algumas soluções, que incluem o encerramento dos resíduos em cofres blindados ou até o seu enterro no fundo do mar, têm o problema de poderem originar, a médio e longo prazo, acidentes e derrames.

Ao longo dos últimos anos, a comunidade científica tem-se voltado para uma nova forma de produzir energia através dos núcleos atómicos: a fusão nuclear. Na prática, a ideia é replicar na Terra aquilo que ocorre naturalmente no interior do Sol: a fusão a grande velocidade de átomos de hidrogénio, que resulta na criação de átomos de hélio, um processo que liberta energia. Esta ideia, atualmente apenas no campo teórico, já tem visto alguns avanços experimentais na última década, mas ainda não há tecnologia capaz de usar o método da fusão para produzir energia em grande escala. Ao contrário do que sucede com a fissão nuclear, a fusão nuclear é uma energia limpa: não produz dióxido de carbono, não produz resíduos tóxicos (o hélio não é radioativo) e não acarreta riscos de acidente no caso de explosão ou falha estrutural.

A tecnologia da fusão nuclear tem vindo a ser testada e investigada pelo consórcio ITER, um projeto internacional que junta 35 países — incluindo Portugal, os EUA, a Rússia, a China, a Índia, o Japão e todos os Estados-membros da UE — e que ambiciona que a sua central, situada no sul de França, seja a primeira estrutura mundial a ter uma produção líquida de energia a partir da fusão nuclear. O Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear, uma Unidade de Investigação do Técnico, colabora diretamente com o desenvolvimento desse projeto há vários anos.

Voltando, então, à declaração de António Costa, o que podemos concluir? Em primeiro lugar, é verdade que o programa do Livre inclui a abertura à energia nuclear — por isso, Costa tem razão. Porém, a declaração de Costa é enganadora, uma vez que procura colar Rui Tavares à energia nuclear atualmente em uso — a de fissão nuclear —, essa, sim, poluente e perigosa. Dificilmente se compreenderia que António Costa estivesse a referir-se a toda a tecnologia nuclear, sem exceção, quando disse que “nunca será solução“, uma vez que desse modo estaria a afastar também a fusão nuclear (aquela cujo estudo é defendido pelo Livre), uma tecnologia cuja investigação o próprio Estado português apoia financeira e tecnicamente.

Conclusão

A declaração de António Costa não pode ser taxativamente classificada como falsa, uma vez que é verdade que o programa do Livre demonstra abertura à energia nuclear. Porém, também não pode ser classificada como verdadeira, uma vez que a declaração do secretário-geral do PS, se fosse lida à letra, levaria à rejeição total de uma tecnologia que, na verdade, Portugal apoia e investiga. Isso acontece porque António Costa usou a expressão “energia nuclear” com o sentido que ela detém hoje em dia: a produção de energia a partir da fissão nuclear, única em uso nas centrais nucleares que existem no mundo. Quanto a essa tecnologia, o programa do Livre aponta para uma gestão do risco a que Portugal está atualmente sujeito (relativamente às centrais de Espanha) e à promoção do estudo científico das alternativas, incluindo a fusão nuclear, que permitam a produção de energia de modo sustentável e seguro.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

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