Devia ter sido um debate a nove, juntando todas as candidaturas com assento parlamentar, mas começou com apenas seis candidatos em estúdio: António Costa estava atrasado; Rui Rio e André Ventura alegaram motivos de agenda para recusar a presença. Os presidentes do PSD e do Chega encontram-se atualmente em campanha nos distritos de Vila Real e Bragança e ambos optaram por manter os compromissos em vez de ir a Lisboa para o debate (argumentando que as rádios recusaram a possibilidade de serem representados por outro candidatos das respetivas listas ou de participarem à distância).

O debate das rádios, transmitido em simultâneo pela Antena 1, Rádio Renascença e TSF na manhã desta quinta-feira, marcou o fim de uma longa maratona de debates entre os principais candidatos às eleições legislativas agendadas para 30 de janeiro. Em cima da mesa, estiveram os temas de sempre, incluindo a expectativa do PS de obter uma maioria absoluta, os esforços de Bloco, PCP e Livre para fragmentarem o eleitorado de esquerda e obrigarem o PS a dialogar, a disponibilidade da Iniciativa Liberal e do CDS de contribuírem para um Governo de direita liderado por Rui Rio, bem como o problema da extrema-direita, que vai ganhando expressão em Portugal com a emergência do Chega.

Mas o debate ficou igualmente marcado por uma discussão inesperadamente intensa acerca de um tema inusitado: a energia nuclear.

Costa pediu maioria absoluta e tentou tranquilizar usando Marcelo

O tema central do debate foi, expectavelmente, o tema central destas legislativas: as condições de governabilidade que vão resultar da votação da próxima semana. António Costa voltou a atirar as culpas da crise política e das eleições antecipadas para cima do Bloco de Esquerda e do PCP (por terem chumbado o Orçamento do Estado para 2022), reiterando que os antigos parceiros da “geringonça” já não são confiáveis e que restam duas opções: a estabilidade, que se garante com uma maioria absoluta do PS, e a instabilidade, que resultará de um Parlamento fragmentado.

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Na sua primeira intervenção, Costa recuou ao final da década de 1990 para recordar o primeiro Governo de António Guterres (1995-1999), em que o PS governou sem maioria absoluta, com um executivo em que António Costa ocupou o lugar de secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e geriu várias das complexas negociações parlamentares com vista à aprovação de medidas do Governo.

O modelo clássico foi o que aconteceu no primeiro Governo de Guterres em que cada medida legislativa tinha de ser negociada de maneira diferente na Assembleia da República“, disse Costa, salientando que este modelo clássico é uma “alternativa à maioria absoluta” que obrigou a “formas bastante diversas” de entendimentos entre partidos. Costa lembrou ainda “votações na especialidade em que houve vários outros partidos a negociar e alguns nunca administram mas também participaram nessas negociações”.

E foi bom, perguntou Costa a si próprio? “Foi o que foi“, respondeu-se. “A governação resulta da votação dos portugueses”, repetindo os apelos aos portugueses para que garantam uma maioria absoluta ao PS, que permitirá “uma governação certa e segura”, em vez de uma “incerta e insegura”.

A estratégia de Costa de insistir na maioria absoluta como receita para a estabilidade do país desagrada tanto à esquerda como à direita. João Cotrim Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal, atacou diretamente a “estratégia do PS de estar a pedir o voto e a confiança aos portugueses sem dizer exatamente para que quer esse voto, nomeadamente naqueles casos em que não tenha maioria absoluta e tenha de se entender com outros partidos”.

Costa tem um papão chamado desmobilização, Rio tem pasta para o CDS

Os portugueses “têm o direito de saber isso hoje, porque não souberam em 2015 — contrariamente ao que diz António Costa — que se preparava para fazer esta aliança à esquerda”, considerou liberal, que criticou o primeiro-ministro por recorrer ao “medo” e à “dramatização” para obter votos. “Não considero a forma certa de fazer política.”

À esquerda, os argumentos de sempre. O PCP, representado no debate por João Oliveira (uma vez que Jerónimo de Sousa continua ausente da campanha enquanto recupera de uma cirurgia), votou contra o Orçamento do Estado por considerar que o Governo não respondia aos problemas do país nem quis continuar a negociar medidas que garantissem o apoio dos comunistas. Agora, perante a possibilidade de as eleições de 30 de janeiro resultarem numa maioria de esquerda plural, o PCP mantém o argumento: “Ninguém está a ver o PCP participar num governo que vá cortar salários e deixar desempregados sem subsídio de desemprego.

“É o povo que decide das condições que temos para poder participar num governo e depende das políticas. Não vale a pena, como alguns tentam fazer, tentar gizar a régua e esquadro o que vai acontecer depois de dia 30”, disse João Oliveira.

Também o Bloco de Esquerda se diz “preparado para todas as responsabilidades” que possam advir da votação de dia 30, incluindo a eventual participação governativa. “Quem decide quem terá presença num Governo é quem vota”, disse Catarina Martins, que também lançou acusações contra António Costa, questionando os motivos que levam o partido a querer uma maioria absoluta, depois de em 2019 ter recusado a proposta dos bloquistas de repetir a “geringonça” com acordo escrito. “Coloca-se a questão de saber para que é que o PS quer a maioria absoluta“, disse, acusando Costa de querer manter a legislação laboral do tempo da troika.

Em resposta, António Costa assegurou que não pretende abusar da maioria absoluta e repetiu um argumento conhecido: o de que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, imporá limites à atuação do Governo. “Quem acredita que com Marcelo, uma maioria do PS podia pisar a linha?“, perguntou Costa, sublinhando que Marcelo é “um Presidente em que os portugueses confiam plenamente”. “Tal como Soares impôs limites, também o atual porá”, salientou Costa.

O líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, riu-se desta promessa de Costa e acusou o primeiro-ministro de considerar o Presidente como um “padrinho” que lhe permite gerir as tensões da governação. “O papel do Presidente da República é ser uma espécie de árbitro do sistema”, disse o líder do CDS, sublinhando que o chefe de Estado o deve fazer “no quadro das funções” que a Constituição lhe dá. “Quem ouve António Costa a falar parece que vai sentar Marcelo Rebelo de Sousa no seu conselho de ministros”, disse Francisco Rodrigues dos Santos, criticando Costa por usar o Presidente da República como “fiel da balança que permite gerir tensões” durante a governação.

Por seu turno, João Cotrim Figueiredo apontou que “no primeiro mandato [de Marcelo Rebelo de Sousa] houve uma enorme proximidade e uma falta de exigência para com o Governo de António Costa” — e avisou que uma maioria absoluta poderá trazer perigos para o país. O líder da IL apontou os processos de nomeação da PGR e do presidente do Tribunal de Contas e a saída de Mário Centeno do Governo para o Banco de Portugal como exemplos de como o PS se sente “à vontade” com o aparelho do Estado.

O que António Costa nos está a dizer é: deem-me maioria absoluta porque o Presidente da República não me vai deixar pôr o pé em ramo verde e a imprensa livre vai-me fiscalizar. Queria perguntar quais foram as investigações ou pressões da comunicação social que lhe fizeram mudar alguma dessas decisões que referi? Uma comunicação social que durante meses andou a tentar perceber a que velocidade ia o carro do ministro Cabrita, que anda há semanas a tentar perceber o que faz se não for o partido mais votado”, disse Cotrim.

António Costa tentou ter mais sucesso junto do PAN, recordando os tempos de presidente da Câmara de Lisboa, altura em que, mesmo tendo maioria absoluta no executivo camarário, nomeou Inês de Sousa Real como provedora dos animais da cidade — afirmando que isso ilustra a sua capacidade de diálogo, mesmo quando tem maioria absoluta. Mas a líder do PAN não aceitou a sedução e disse que “a maioria absoluta não é desejada pelos portugueses”. “Gostava de perceber aqui hoje se está disponível para rever o modelo atual dos debates e ter uma presença mais regular na Assembleia da República”, desafiou Inês Sousa Real.

Também Catarina Martins voltou a intervir para garantir que é “fundamental” haver “clareza sobre o rumo para o país” e considerou que “as pessoas têm más memórias de maiorias absolutas por boas razões: sabem que são permeáveis aos grandes interesses”. Além disso, a coordenadora do Bloco de Esquerda disse ser “um erro” trazer o Presidente da República para a campanha eleitoral.

Rui Tavares, do Livre, deixou críticas tanto à direita como à esquerda. O candidato do partido que perdeu a representação parlamentar com a desfiliação de Joacine Katar Moreira sustentou que a direita atual corre o risco de entrar numa “espiral para o populismo e o racismo“, disse que Rui Rio já ensaia há vários anos o discurso da subsidiodependência e apelou a que, no futuro, haja uma maioria de direita legítima, sem o perigo da extrema-direita — o que o levou a um bate-boca com Cotrim Figueiredo sobre a legitimidade de umas maiorias sobre outras. (“Já não há saco para a arrogância e superioridade moral da esquerda”, atirou o líder da IL.)

Voltando-se para a esquerda, Tavares criticou o discurso paternalista face aos eleitores. “As pessoas não têm medo da maioria”, disse, sublinhando que “são pessoas inteligentes, os nossos concidadãos“, que sabem “informadamente” que as maiorias têm problemas e levam a democracia a “prescindir da pluralidade parlamentar”. Visando diretamente António Costa, Tavares disse que não faz sentido prescindir de uma válvula de segurança (a pluralidade parlamentar) só porque há uma outra válvula de segurança em Belém.

Energia nuclear fez aquecer o debate

Era pouco expectável que uma boa fatia do debate desta manhã viesse a ser marcado pela energia nuclear, mas foi António Costa quem puxou o assunto, rebatendo os argumentos do Livre em prol da pluralidade parlamentar e apontando uma linha vermelha que o separa do partido de Rui Tavares: o investimento na energia nuclear.

Rui Tavares pediu de imediato o direito de resposta e assegurou que o programa do Livre não propõe a construções de centrais nucleares no país, como Costa deu a entender, mas o acompanhamento da investigação científica em torno das tecnologias de fusão nuclear — um processo de produção de energia limpa, que não origina resíduos tóxicos, ao contrário do processo de fissão nuclear, o único atualmente disponível. Tavares foi ainda mais longe e atacou Costa, dizendo que, se o primeiro-ministro é contra esta proposta, então teria de despedir o ministro da Ciência, Manuel Heitor, uma vez que Portugal, através daquele ministério, faz parte do ITER, projeto internacional de investigação em fusão nuclear.

“Só não lhe levo mais a mal, porque alguém lhe preparou mal as fichas”, atirou Rui Tavares contra António Costa.

O tema prolongou-se durante vários minutos no debate, com António Costa a insistir no uso do termo vago “nuclear” para colar o Livre à promoção de centrais nucleares em Portugal e Rui Tavares a acusar Costa de recorrer, deliberadamente, à confusão de conceitos científicos.

Na fase final do debate, houve ainda tempo para debater a educação, com João Oliveira a defender a valorização das carreiras dos professores e de outros funcionários públicos, Francisco Rodrigues dos Santos a posicionar-se contra a “ideologia de género” nas escolas e a defender novamente o “cheque-ensino” e Catarina Martins a colar o CDS a Jair Bolsonaro devido ao uso da expressão “ideologia de género”.