O empresário Luís Filipe Vieira é um dos grandes devedores do Novo Banco, tendo estado na origem de perdas de 181 milhões de euros registadas pelo banco (e pagas pelos contribuintes). Ouvido na comissão parlamentar de inquérito às injeções de dinheiros públicos no banco, no início desta semana, Vieira disparou uma série de afirmações no sentido de demonstrar que não é “como os outros devedores” ouvidos antes dele. “Não pedi perdões de dívida, nem perdão de juros. Nem eles me foram dados. É do conhecimento público que muitos empresários tiveram perdões de capital e de juros. Não foi o meu caso”.

Haveria de ir mais longe. “Saldei tudo o que me foi solicitado [pelo banco]” e “cumpri com tudo o que me foi pedido“, referiu na sua intervenção inicial, levando os deputados a questioná-lo mais tarde sobre se queria voltar atrás no que tinha dito. “Disse-nos aqui que não esteve em incumprimento e que nunca esteve em incumprimento. Quer rever essa afirmação?”, atirou a deputada do CDS-PP Cecília Meireles, antes de citar documentos que demonstram que as palavras de Vieira são, no mínimo, enganadoras.

Entre esses documentos citados pela deputada inclui-se uma carta enviada a Luís Filipe Vieira no dia 29 de setembro de 2017, a respeito de um crédito de 53 milhões de euros à Promovalor, do qual o empresário era avalista, informando-o de que o empréstimo “tinha tido vencimento antecipado” devido ao “não pagamento das prestações de juros vencidas, respetivamente de 30-06-2016 e 30-06-2017”. Ou seja, há dois anos que Vieira não pagava.

“À luz disto, gostava de lhe perguntar se não quer rever as suas afirmações”, insistiu a deputada. “Quando recebi essa carta, sabe o que me disseram? Que isso sai automático… Já andava a tratar da reestruturação. Foi o que me disseram”, respondeu (ainda sem responder) Luís Filipe Vieira.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Cecília Meireles insistiu no crédito de 53 milhões. “Não quero sair deste, que é exemplo de um que não pagou. Este crédito foi feito em 21–06–2014 [aliás, menos de dois meses antes da resolução do BES] e tinha vencimento a 30-06-2020. Previa que começasse a ser reembolsado a partir de 2015”.

“Ora, em 2015, mesmo antes de começar o reembolso, não houve reembolso nenhum. Houve foi uma revisão de taxa de juro em baixa — gostava de lhe relembrar que também disse que nunca houve revisões de juro e houve inúmeras. Sugiro que reveja aquilo que disse… Porque temos aqui prova de incumprimento e prova de baixa de juros. E o reembolso deixou de ser por prestações e passou a ser todo no fim do prazo”.

Face a estas perguntas, Luís Filipe Vieira decidiu não desmentir, optando por dar uma explicação alternativa: foi o banco que o instruiu para “deixar cair” os créditos, não pagando, uma vez que já estaria em curso mais uma reestruturação da dívida ao Novo Banco.

“É mais sensato aquilo que lhe vou dizer: isso eram créditos que se venciam, que eles sabiam que eu não tinha maneiras de cumprir. Aquilo era um amontoar, caía uma linha, caía outra linha. Aliás, a queda da Promovalor gera-se por eles cortarem o crédito. Eles só financiaram mais um empreendimento. Não financiaram mais nenhum. Deixava cair porque eles diziam ‘Luís, isso é automático. Vamos resolver mais à frente’. Foi sempre assim a conversa”. E por fim admite que, sim, esteve em incumprimento em vários destes créditos: “Por isso, eu ficava em incumprimento. Mas eu dei a cara e resolveu-se o problema ou não se resolveu?”

E ainda o disse mais uma vez, mais tarde, desta vez remetendo mais explicações para António Ramalho, o atual presidente do Novo Banco, que mais adiante também será ouvido na comissão parlamentar de inquérito. “Eu, quando recebi aquela notícia [carta], sabia que entrei em incumprimento. Sabia que tudo o que vencesse ia cair. Mas o presidente do banco vem cá, pergunte-lhe”.

Cecília Meireles haveria ainda de demonstrar – recorrendo a documentos oficiais enviados à comissão – que Luís Filipe Vieira, ao contrário do que disse, também teve perdões de juros e descontos nas dívidas de muitos milhões de euros que contraiu junto do BES e do Novo Banco. É o caso de uma “reestruturação de dívida com apoio do BES em 2009”, num contrato de financiamento de 138 milhões de euros.

Esse contrato foi alterado em janeiro de 2010, em março de 2014, em outubro de 2014 e em junho de 2015. “Com baixas de juros variadas e prorrogações de prazo. Envolveu um contrato de financiamento para consolidação do passivo remunerado. Que é como quem diz, rearranjar a dívida”, explicou a deputada.

Luís Filipe Vieira ainda respondeu que se tratava de “alteração de condições”. “Não aumentou a dívida de certeza… Isso é alteração de condições”, insistiu. Mas uma alteração de condições em que os juros baixam, o prazo para pagar o crédito é maior e a dívida se mantém representa – na prática – um perdão de juros e um desconto ao valor total que o devedor devia à instituição que lhe emprestou o dinheiro.

E isso demonstra como estão factualmente erradas várias partes desta frase: “Não tive nenhum perdão de capital, nem um perdão de juros. Nem eu nem o grupo Promovalor. Cumpri com tudo o que me foi pedido e mais, entreguei todos os ativos, não tive qualquer perdão de juros. (…)  Saldei tudo o que me foi solicitado, sem perdão, sem desconto, sem favores”.

A Imosteps. A dívida que “não era minha” e que acabou comprada pelo sócio “Rei dos Frangos”

A Imposteps é outro caso que contraria a tese defendida pelo presidente do Benfica. A empresa com terrenos no Brasil que Luís Filipe Vieira comprou, segundo disse, “por favor”, a uma empresa do Grupo Espírito Santo, acabou por ser vendida a um fundo por menos de 10% do valor da dívida.

“Nunca tive nenhum incumprimento com banco algum, nem no imobiliário, nem nos pneus”, afirmou o dirigente desportivo a Mariana Mortágua. “Tem noção de que, só na Imosteps, o banco vendeu uma dívida por quatro milhões e assumiu uma perda de 50 milhões?”, contrapõe a deputada do Bloco de Esquerda.

Em explicações dadas a Cecília Meireles, Vieira vai mais longe nos contornos desta operação atípica. “A Imosteps foi um erro meu, uma estupidez. A dívida não era minha.” Mas acabou por ficar com a dívida e dar o seu aval pessoa, em resposta a um pedido de Ricardo Salgado. A empresa foi passada para o seu nome para tentar resolver o problema da interdição de construir e depois deveria voltar ao universo GES. E “íamos ser remunerados por isso e iam pagar bem”.

Os detentores da empresa eram a Opway, o BES, o BCP e um empresário madeirense. “Resolvemos o problema, mas entretanto o banco caiu”. E desde que se começou a negociar a reestruturação, Vieira diz que alertou para a situação específica da Imosteps, mas o Novo Banco não quis envolver a Imosteps na reestruturação da dívida que começou a ser negociada em 2016,

O crédito de 54 milhões de euros foi parar aos ativos tóxicos do Novo Banco, por estar em incumprimento. Este crédito foi vendido no projeto Nata II a um fundo que depois o vendeu pelo dobro (oito milhões de euros, revelou na audição) a um empresário que é sócio de Vieira em outras empresas. Vieira assume que avisou José António dos Santos — o dono das rações Valouro, e por isso conhecido como o “rei dos frangos” e acionista do Benfica — para a oportunidade deste negócio.

“Foi um ótimo negócio. São 102 mil metros quadrados no Rio de Janeiro em cima do mar. Não valem oito milhões? Até o Nata II fez dinheiro. Devia perguntar ao Novo Banco porque é que o fez”, sugere Vieira.

A narrativa de que não houve perdões é também posta em cheque pelos 160 milhões de euros de perdas com os VMOC (valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis), que o Novo Banco já assumiu no seu balanço? Vieira diz que esse crédito será pago com os resultados do fundo imobiliário que foi criado na reestruturação da dívida da Promovalor/Inland. “É por aí que o banco vai buscar dinheiro”. E porque não pagou? (pergunta de Mariana Mortágua) “Não tinha para pagar. Se reestruturamos tudo e estão lá as VMOC incluídas. Tem de esperar por 10 ou 15 anos pelo desenvolvimento do projeto, que é longo, para saber se paguei ou não paguei”. As VMOC vencem em agosto (e nessa altura o Novo Banco pode entrar no capital destas sociedades).

Esta operação é a origem da maior fatia de perdas reconhecidas pelo Novo Banco na exposição às empresas do presidente do Benfica, que totaliza 181 milhões de euros.

Conclusão

Luís Filipe Vieira foi assertivo — na sua declaração inicial — ao dizer que “cumpriu sempre” e “nunca teve perdões, descontos ou favores”, mas as suas respostas ao longo das cinco horas de audição foram contrariando essa ideia. Confrontado com documentos concretos, o empresário acabou por reconhecer que esteve em incumprimento em vários créditos (ainda que tenha dito que o banco lhe deu indicações precisas no sentido de ignorar essa condição, por estar em curso uma reestruturação da dívida).

É, assim, certo que “cumpriu o que o banco lhe pediu”, mas a sua frase inicial é enganadora, porque visa induzir o ouvinte a pensar que nunca houve incumprimento. Quanto a não ter tido perdões de juros e descontos na dívida: na prática, uma ou várias reestruturações de dívidas com baixa de juros e prolongamento dos prazos constituem um “desconto” — muitas vezes bastante avultado — face ao que teria de pagar ao banco caso esta manobra não fosse feita.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.

IFCN Badge