Circula atualmente nas redes sociais uma publicação com uma série de citações atribuídas a Judy A. Mikovits — uma investigadora norte-americana caída em desgraça depois de um artigo seu ter sido desacreditado pela prestigiada revista Science, em 2011 — na qual se alega que o novo coronavírus teve origem na vacina contra a gripe.

Na base destas declarações está “Plandemic”, um vídeo de cerca de 25 minutos no qual Mikovits diz revelar toda a verdade sobre a pandemia, nomeadamente acerca da sua difusão. Segundo a norte-americana, esta não teve nada a ver com o mercado de animais exóticos de Wuhan, na China, onde a pandemia começou, mas com experiências envolvendo uma nova vacina contra a gripe. Outras alegações de Mikovits incluem, por exemplo, que o uso de máscaras de proteção não protege contra o vírus, levando, inclusive, à sua “ativação”, como é referido no post que tem vindo a ser partilhado nas redes sociais. Em “Plandemic”, a norte-americana disse que o seu único objetivo era “alertar os médicos” contra eventuais tratamentos para a Covid-19 produzidos a partir de evidências limitadas.

O vídeo, publicado no YouTube em meados de maio, foi pouco depois apagado pela plataforma por violar as regras relativas “à desinformação sobre a Covid-19”, mas é possível assistir a alguns excertos integrados em vídeos de fact checking (por exemplo, aqui). Outras redes sociais que permitem a divulgação de vídeos, como o Facebook ou o Vimeo, seguiram o exemplo do Youtube e optaram por retirar as declarações de Mikovits, altamente questionáveis. Notícias publicadas na altura revelam também algumas das alegações de Mikovits em “Plandemic”, como esta notícia da ABC, de 13 de maio.

O post com as declarações de Judy Mikovits

A polémica em torno de “Plandemic” é, como apontou o The Washington Post, “o último episódio da saga da carreira agitada de Mikovits”.

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Durante muitos anos, Judy Anne Mikovits não passou de um de muitos investigadores de bioquímica e da biologia molecular — áreas em que se especializou na Universidade George Washington, instituição onde concluiu o doutoramento, em 1991 –, nos Estados Unidos da América. Quando, em 2009, foi divulgado o malfadado artigo onde se ligava a síndrome de fadiga crónica (CFS) a um retrovírus infeccioso que vinha dos ratos, Mikovits era diretora de investigação no Instituto Whittemore Peterson, um centro privado em Reno, no estado do Nevada. Antes disso, tinha trabalhado durante 22 anos no Instituto Nacional do Cancro, que deixou em 2001 para se empregar numa empresa de medicamentos que acabou por falir.

O artigo, intitulado “Deteção de um retrovírus infeccioso, XMRV, nas células sanguíneas de doentes com síndrome de fadiga crónica” (“Detection of an infections retrovirus, XMRV, in blood cells of patients with chronic fatigue syndrome”, no original), assinado por Mikovits e outros 12 investigadores, foi publicado a 23 de outubro de 2009, na Science. Como explicou esta mesma revista, a causa desta síndrome tem permanecido desconhecida e esta investigação criou a esperança de que os doentes com CFS pudessem finalmente vir a ser tratados, através do uso de antivirais. Contudo, investigações posteriores concluíram que o retrovírus XMRV, referido pelos investigadores, tinha sido gerado acidentalmente durante experiências de laboratório com ratos. As alegações dos autores caíram por terra.

Dois anos e várias investigações depois, que provaram a inviabilidade da investigação original, a Science publicou uma retração, que Mikovits se recusou a assinar. Depois de uma série de outros episódios, que envolveram uma tentativa de provar a ligação do XMRV à CFS, a investigadora entrou em confronto com o centro onde trabalhava e acabou por ser despedida. Desde então, tem-se dedicado às teorias da conspiração, ligando retrovírus com origem em ratos a outras doenças, como o autismo, refere o The Washington Post. Recentemente, mergulhou na questão da pandemia do novo coronavírus, publicando o vídeo “Plandemic” e editando um livro, que se tornou um bestseller na Amazon.

Uma das suas teorias é a de que o SARS-CoV-2 teve origem num novo tipo de vacina contra a gripe, que teria começado a ser usada em Itália, onde a população é “muito envelhecida”. Esta nova vacina, “nunca testada”, tinha “quatro tipos diferentes de gripe, incluindo a altamente patogénica H1N1. A vacina foi cultivada numa linha celular, uma linha celular canina. Os cães têm muitos coronavírus”. Segundo alega a norte-americana, “os coronavírus existem em todos os animais, por isso, se formos vacinados contra a gripe, somos injetados com coronavírus”. Não existe qualquer evidência científica que ligue a vacina contra a gripe ao novo coronavírus em Itália ou em qualquer outro país.

É verdade que o coronavírus existe nalguns animais, nomeadamente nos morcegos (segundo alguns investigadores, o vírus mais próximo do SARS-CoV2, que causa a Covid-19, é um coronavírus que pode ser encontrado nos morcegos, identificado pelo Instituto de Virologia de Wuhan, o centro de muitas teorias da conspiração relacionadas com a atual pandemia). Mas este “não tem qualquer relação com as vacinas”, disse à agência de notícias France-Presse (AFP) Jacco Boon, professor de doenças infecciosas na Faculdade de Medicina da Universidade de Washington em St. Louis. Além disso, não se conhece nenhuma forma de coronavírus canino, como refere a Science, que analisou as declarações de Mikovits.

Julian Leibowitz, da Faculdade de Medicina da Universidade A&M no Texas, mostrou ser da mesma opinião: “Apesar dos coronavírus infetarem muitas espécies, eles geralmente não persistem durante muito tempo no animal”, afirmou o especialista em coronavírus à AFP. Sobre a vacina da gripe, Leibowitz explicou que esta “é geralmente preparada a partir do vírus da gripe desenvolvido em ovos postos por galinhas sem vírus. Estes ovos são esterilizados antes de serem infetados com o vírus da gripe para a preparação da vacina”. Não há nenhum cão envolvido no processo, ao contrário do que a norte-americana disse.

Conclusão

Não existe qualquer prova científica que ligue o novo coronavírus à vacina contra a gripe. Foi isso mesmo que disseram dois especialistas ouvidos pela France-Presse, Jacco Boon, professor de doenças infecciosas na Faculdade de Medicina da Universidade de Washington em St. Louis, e Julian Leibowitz, da Faculdade de Medicina da Universidade A&M no Texas. As declarações proferidas por Judy A. Mikovits, citadas no post do Facebook, são, por isso, falsas.

Mikovits é uma investigadora norte-americana caída em desgraça depois de um artigo assinado por si ter sido desacreditado pela prestigiada revista Science. Desde a retração da Sciente, em 2011, e do seu despedimento do centro de investigação privado em que trabalhava, Mikovits tem-se dedicado a desenvolver teorias das conspiração. As citações que estão a ser partilhadas nas redes sociais são um exemplo de algumas das suas muitas teses infundadas.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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