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Na arte, como na vida |
Os meus leitores já sabem: a cultura dos memes é para mim um óptimo estímulo para a reflexão sobre a cultura e o pensamento contemporâneos. |
Há um meme que brinca com o academismo historiográfico ao descrever a reacção de Aquiles quando é informado da morte de Pátroclo às mãos de Heitor (falamos, é claro, da Ilíada e da Guerra de Tróia). |
O nobre guerreiro entra em desespero, uivando e arrancando os seus cabelos, cobrindo-se de cinza e jejuando. De seguida, após o choro junto do corpo morto de Pátroclo, Aquiles decide que as ossadas de ambos sejam misturadas após a sua morte, desejo esse que será cumprido quando as cinzas dos dois vierem a partilhar a mesma urna. Antes disso, Aquiles organiza uma série de ritos fúnebres destinados a heróis como Pátroclo. No fundo, trata-se de uma reacção emotiva e de desespero sem igual por parte daquele que, quando o encontramos pela primeira vez na narrativa, está sozinho na tenda que partilha com Pátroclo, entretendo-se ambos, em intimidade, com a música de uma lira. De resto, é só para vingar a morte de Pátroclo que o até então amuado Aquiles entra na batalha, matando Heitor e arrastando-lhe o cadáver, preso pelos tornozelos e puxado pela sua quadrilha, num exercício de humilhação à vista de todos e sobretudo do seu velho pai, Príamo, rei dos troianos, que assiste a tudo isto do alto das muralhas da cidade. Plot twist: Aquiles será por sua vez vitimado pela flecha disparada por Páris, irmão de Heitor, que como sabemos, o atingirá no seu famoso calcanhar. |
Onde quero chegar é aqui: depois da descrição das emoções vividas por Aquiles, e conhecendo a intimidade que os unia, a historiografia do século XX hesita se os deve considerar companheiros de armas ou amigos, quando parece mais do que evidente que se amavam intensa e sofregamente. O que é certo é que a relação entre ambos é um dos temas mais debatidos nos estudos clássicos, o que só é possível devido ao facto de Homero nunca ser taxativo na identificação da relação entre os dois. Assim, uns dirão que para bom entendedor meia palavra basta, outros que não há provas claras de qualquer relacionamento amoroso entre ambos. |
Penso nesta história porque venho de dirigir dois concertos no fim-de-semana passado cujo programa dediquei à música composta por casais. De um lado, o incontornável casal Schumann, onde Robert e Clara representam o estereótipo do amor romântico duradouro e frutífero, desejado por ambos desde os dias em que o austero pai de Clara não queria permitir o casamento da jovem e prodigiosa pianista com um zé-ninguém como era o então jornalista e wannabe compositor Robert Schumann, e mantido vivo até à morte deste, tristemente confinado a um asilo devido aos problemas graves de saúde mental que o atormentaram toda a vida. Clara Schumann sobreviveu quarenta anos ao marido e foi, até ao último dos seus dias, uma viúva dedicada e cuidadora da sua memória, chegando a rejeitar os avanços amorosos de Johannes Brahms, que tinha menos 14 anos do que a viúva Schumann. |
Bom, esta era fácil. Se vou apresentar a música de algum casal, este é incontornável. E foi assim que, em Idanha-a-Nova e em Faro, a Orquestra Sem Fronteiras deu a ouvir a Overture, Scherzo e Final de Robert Schumann, ao lado do Concerto para Piano e Orquestra de Clara Schumann, com Vasco Dantas Rocha ao piano, naquilo que creio ter sido a estreia nacional deste concerto com quase duzentos anos. Se já foi tocado antes em Portugal, então não consegui encontrar qualquer registo do acontecimento. |
No entanto, este casal de compositores só preenchia uma meia parte do programa. Para a outra metade decidi que, na linha que caracteriza o meu trabalho, devia procurar uma maior representatividade, mostrando que a música clássica também pode ser espelho do mundo tal como ele é. Nesse sentido, decidi abordar a música do casal Samuel Barber e Gian Carlo Menotti (juntos, na fotografia em cima). Sem surpresas, muita gente presente (ou direi a quase totalidade?) não sabia que Barber (1910-1981) fora homossexual, e menos ainda companheiro por mais de quarenta anos de Gian Carlo Menotti (1911-2007). Na verdade, os dois formaram um casal desde que se conheceram — ainda antes dos 20 anos, quando ambos foram colegas no Curtis Institute of Music em Filadélfia — até à morte de Barber. |
Foram dois compositores de enorme sucesso e basta pensar que, só na década de 1950, o casal arrecadou três vezes o Prémio Pullitzer para a música: duas vezes para Menotti e uma para Barber. Creio que Barber dispensa apresentações, sendo provavelmente o compositor norte-americano de maior sucesso de entre aqueles que atravessaram o século XX. Já no âmbito da ópera, Menotti é talvez o autor de maior importância no século passado, ajudando a democratizar esta forma de arte, que saía do teatro e chegava à rádio e à televisão em formatos menos convencionais. Em Lisboa, têm sido regulares as apresentações das suas óperas de câmara no OperaFest Lisboa e honra seja dada a Catarina Molder, que tem tido a audácia de as programar. No entanto, fora isso, não temos por cá muitas ocasiões para testemunhar o génio operático de Menotti (de resto, como se sabe, a ópera continua a ser um género que não é sistematicamente defendido nem cultivado em Portugal, muito devido à deriva e apagamento artístico do Teatro Nacional de São Carlos desde… quase sempre?). |
Barber e Menotti fizeram tudo aquilo que um casal pode fazer: viveram juntos, trabalharam juntos e Menotti estava à sua cabeceira quando Sam Barber faleceu de cancro aos 71 anos. Apesar disso, e fruto do tempo em que viveram, a sua relação nunca esteve escarrapachada enquanto tal em lado nenhum. As enciclopédias mencionam “a parceria de toda a vida” e “a amizade criativa” mas não o amor, a família ou a vida conjugal. O mesmo acontece com outros casais da música clássica, como o do compositor Benjamin Britten (1913-1976) e o tenor Peter Pears (1910-1986) ou do compositor John Cage (1912-1992) e o coreógrafo Merce Cunningham (1919-2009). Os tempos, no século XX, não permitiam outra coisa. Basta pensar que a homossexualidade só foi despenalizada no Reino Unido, onde Britten e Pears viveram toda a vida, em 1967, e quando praticada com consentimento por homens maiores de 21 anos, sendo omissa para o caso das mulheres e vindo a ser revista apenas na década de 1980. |
Para além disso, no seio do seu conservadorismo endémico, qualquer compositor abertamente homossexual incorria no perigo de controvérsia e a má publicidade, arriscando-se a hipotecar a sua carreira. Seria só nos anos 1970 que a manifestação aberta de uma sexualidade desviante da norma viria a ser incorporada no acto rebelde da revolução criativa. Basta pensar no exemplo de Julius Eastman (1940-1990), cuja sexualidade explícita e até exacerbada sempre fez parte da sua persona artística, e que está presente nos títulos de suas obras que eram, em si mesmos, provocações. Um exemplo disso é a peça Gay Guerilla, de 1979. |
Ao pesquisar para a preparação deste concerto, surpreendi-me com a forma ambígua e lacónica como a relação entre Barber e Menotti é abordada, inclusivamente por fontes contemporâneas, levando a que o facto de eu os pronunciar, do palco e sem filtros, um casal, pudesse em si mesmo constituir um factor transgressor. |
Foi por essa razão para mim mais tocante (e espero que para o público também) que o concerto abrisse com a música destes dois compositores. De Barber, o imortal Adagio para cordas, que encerra em si toda a possível sublimação da dor em música e em beleza. E de Menotti, ouvindo-se pela primeira vez em Portugal, o Arioso da Suite para dois Violoncelos e Orquestra. Depois de saber da história de ambos os compositores, e perante esta música lírica e apaixonada, foi impossível ouvir este dueto de violoncelos e não pensar que cada qual representava um dos elementos do casal. É claro que é uma analogia fantasiosa, mas a música e a arte também são o significado que lhes damos. |
Hoje e ontem, parece que a história só vê aquilo que quer ver. Seja na quimérica Guerra de Tróia ou na bem real e comprovada vida de autores que viveram e criaram música no nosso tempo. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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