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Não é fácil passar entre os pingos da chuva. Que o diga quem o tenta afincadamente. |
Num futuro que se espera tão próximo quanto possível, finda a guerra na Ucrânia, é de supor que assistiremos a um processo de “desputinização”, assumindo que não haja vitória possível nesta história para a ditadura belicista russa. Nesse momento, o mundo ocidental terá de decidir o que fazer com aqueles artistas cujo mérito, sendo indiscutível, ficou manchado pelas decisões que tomaram ou as palavras que não disseram, que levaram a que os seus nomes fossem cancelados do outro lado do campo de batalha, pelo delito de terem vestido a camisola de Putin. |
Um exemplo é Valeri Gergiev, que se tem mantido inexoravelmente fiel a Putin, já aquando da invasão da Crimeia ou no seguimento de leis contrárias aos direitos humanos. O maestro, já a entrar no capítulo de “veterano” na vida artística, à porta dos 70 anos, era até ao início da guerra considerado o guardião indiscutível do grande repertório russo. A autoridade máxima nas óperas de Mussorgsky, Tchaikovsky ou Rimsky-Korsakov, como o atestam as suas passagens coroadas de glória por palcos como os de Munique, Milão ou Nova Iorque. Um dos artistas mais procurados no repertório sinfónico russo, como o comprovam os cargos que deteve fora da Rússia, onde se destacam os anos como maestro titular da Orquestra Sinfónica de Londres ou como titular de um festival em Roterdão, entretanto cancelado, que se chamava precisamente “Festival Gergiev” e que existiu de 2013 até 2022, organizado pela orquestra filarmónica daquela cidade holandesa. |
No outro lado de Gergiev, o pessoal e reservado, o maestro tem no próprio Putin o padrinho de uma filha, sendo conhecidas as relações de proximidade entre ambos. Gergiev foi fiel ao seu presidente quando a guerra na Ucrânia rebentou e assistiu impassível ao desabar da sua carreira no ocidente, onde lhe foram sendo terminados todos os contratos de forma intempestiva e onde o seu nome andou na lama assim que se recusou a condenar publicamente a guerra, chegando a ter manifestações dentro e fora dos últimos teatros por onde se ia apresentando fora do espaço pró-russo. |
Por seu lado, Putin sabe reconhecer a lealdade do seu maestro preferido e eis que, nos dias 27, 28 e 29 deste mês, Gergiev estará a realizar concertos nas mais importantes salas de Pequim e Xangai, acrescentando um brilho cultural àquela que a Rússia tem chamado tão veementemente uma “amizade sem limites” entre os dois países. |
Se por um lado são inquestionáveis os méritos artísticos de Gergiev (sobretudo os das décadas de 1990 e 2000), como o atestam inúmeros concertos, óperas e discos memoráveis, por outro é evidente que este homem tomou decisões engajadas e aceitou colocar o seu talento e experiência ao serviço de uma causa política. Quando a guerra acabar, porque irá inevitavelmente acabar, teremos de fazer contas ao que fazer com artistas como Gergiev. |
Outro que se tem esforçado para passar entre os pingos da chuva, mas que começa finalmente a ficar molhado, é Teodor Currentzis (na imagem). Trata-se de um maestro grego criado em solo russo, agora com 51 anos, que se afirmou nos últimos anos como um dos nomes mais revolucionários na música clássica, atingindo níveis de excelência, virtuosismo e intensidade com a sua orquestra que me atrevo a dizer serem sem igual. A partir da cidade de Perm, na Sibéria, Currentzis teve o privilégio de ver serem-lhe dados um teatro, uma orquestra e um coro, que o maestro pôde manusear como bem entendeu durante anos. |
O resultado, na sua faceta mais famosa, é a orquestra MusicAeterna, financiada pelo banco VTB (um dos vários que estão sancionados no ocidente), que tem nos seus dirigentes algumas das figuras de maior destaque no regime de Putin. A antiga Casa da Rádio em São Petersburgo, para onde Currentzis transferiu a orquestra há alguns anos, pertence a uma empresa dirigida por Alina Kabaeva, a ex-ginasta que é apontada por muitas fontes não-oficiais como sendo companheira amorosa de Putin. |
Recentemente a MusicAeterna realizou uma tourné financiada pela Gazprom. O espírito de Currentzis até pode ser livre, mas se quer trabalhar no país onde vive, as suas mãos estão atadas. E perante a relutância em produzir uma condenação pública à guerra, já lhe foi tirado o tapete de debaixo dos pés pela Europa fora. Na Alemanha, onde a sua actividade era intensa e regular, chegando a maestro titular de uma orquestra pertencente a uma rádio pública, os contratos terminaram. O mesmo aconteceu em Viena, onde era artista regular na Konzerthaus. No entanto, o seu nome vai persistindo aqui e ali nos cartazes de vários festivais e orquestras, de uma forma que para muitos é exasperante e para outros é simplesmente indiferente. |
Um músico da orquestra alemã onde o seu contrato terminou, falando sob anonimato, revelou-se incrédulo com o facto de despedirem o maestro devido a assuntos políticos. Segundo este músico, trata-se de um génio sem igual, com quem a orquestra fez alguns dos melhores concertos na sua história. Mais importante ainda, refere, é o facto de que de um artista apenas se espera que seja bom na sua arte, não devendo esta misturar-se com a política, tal como não se prefere certo político em detrimento de outro pelos seus gostos artísticos. Já para Lawrens Langevoort, director da Ópera de Colónia, que recentemente dispensou Currentzis, substituindo-o por outro maestro, “a Rússia ocupou um país soberano, há inocentes a morrer, e a única coisa em que Currentzis pensa é a sua produção do Tristão e Isolda. Ele deixou que a sua posição fosse sustentada pelo sistema russo e, se o quer fazer, entendo, mas não tenho de compactuar com isso”. |
Não se pode agradar a gregos e troianos. Deixar que o maestro se preocupe apenas com a sua arte, ou exigir que faça o statement que agora parece ser obrigatório de todos os artistas ou desportistas russos? |
Já avisa o povo para que não se deve confundir a obra-prima do mestre com a prima do mestre de obras. Mas não é assim tão fácil distinguir entre uma coisa e outra. A vida e a obra misturam-se, quer queiramos, quer não. O artista e o cidadão são por vezes indissociáveis e só o tempo e a distância cronológica podem apaziguar um pouco as coisas. Prova disso é que, hoje em dia, poucos se importam com o facto de o compositor Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa (1566-1613) ter assassinado a sua própria mulher, assim como o amante desta, ao apanhá-los em flagrante delito em acto amoroso. Apesar da evidência do crime, em plena luz do dia, e dos seus contornos sangrentos, Gesualdo era nobre e tinha a lei do seu lado, pelo que nada lhe aconteceu. E a verdade é que, passados estes anos todos, parece que o facto de ter assassinado a mulher até lhe dê um certo colorido biográfico. Nunca ouvi falar de cancelamentos à música de Gesualdo. Pelo contrário, é estudada nas universidades enquanto um dos exponentes máximos da polifonia quinhentista. Nas salas de concerto são frequentes as apresentações da sua música, inclusivamente aquela que foi escrita para finalidades litúrgicas por mãos sujas de sangue. |
Tenho a certeza de que, quando chegar o momento de fazer as contas ao legado de Gergiev e Currentzis, a situação não será tão simples quanto poderá parecer. E quem diz estes dois, diz dezenas, centenas de outras pessoas, não só das artes mas de todos os ramos da sociedade civil, política e militar da Rússia. O que é certo é que, quando já ninguém se lembrar das pessoas que eles foram, a obra que deixaram irá perdurar. E essa, quer queiramos, quer não, será julgada pela história de forma completamente diferente das tomadas de posição políticas que fizeram em vida. Tal como Carlo Gesualdo. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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