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O futuro, em qualquer momento da história, pertence aos jovens |
O que têm em comum Jean-Honoré Fragonard, Hector Berlioz, Jacques-Louis David ou Claude Debussy? Todos (entre muitos, muitos outros) ganharam o Prix de Rome. |
O prémio foi instituído no tempo de Luís XIV como forma de premiar os mais promissores e talentosos jovens artistas franceses, oferecendo-lhes uma estadia de alguns anos em condições muito confortáveis na sede da Academia Francesa em Roma, onde poderiam inspirar-se e crescer artisticamente antes de regressar à pátria e aí contribuir para a glória de França através da sua arte. |
Primeiro foram enviados pintores e escultores, seguindo-se arquitectos, gravuristas e finalmente músicos, estes últimos a partir de 1803. O Prix de Rome vigorou até 1968, ano em que, no seguimento do Maio de 68, o então ministro da cultura André Malraux acabou com o prémio. |
Apesar de alguns nomes fortes na pintura terem sido agraciados com o privilégio de uma estadia desafogada no Palazzo Mancini — ou, a partir de 1803, por ordem de Napoleão, na Villa Medici —, a verdade é que foi sobretudo no ramo da música que o prémio se afirmou, atingindo o apogeu durante a segunda metade do século XIX. |
São vários os compositores de fama que gozaram de uma abençoada temporada em Roma: Hector Berlioz, Georges Bizet, Jules Massenet, Charles Gounod, Claude Debussy, Gustave Charpentier, André Caplet, Lili Boulanger (a primeira mulher, em 1913) ou Henri Dutilleux. Um apanhado de excelência, é certo, mas estou a apontar apenas os nove nomes quiçá mais conhecidos de entre uma lista com mais de cento e cinquenta vencedores. Quem foram todos os outros? E o que dizer das centenas de pintores e escultores que levaram para casa a medalha? Se olharmos para a lista de pintores, são ainda menos os nomes de destaque, acontecendo o mesmo na escultura. |
Dito assim, quase parece um desperdício de meios: dinheiro a rodos investido na formação dos melhores jovens talentos franceses e, passados cem ou duzentos anos, alguns nem sequer têm direito a uma página na wikipédia, tendo sucumbido no vórtice do esquecimento. |
A razão de ser desse aparente fracasso daquilo que é, em teoria, uma excelente ideia explica-se facilmente: durante três séculos inteiros, entre 1663 e 1968, o prémio foi outorgado pela Academia Francesa, cuja inclinação sempre foi não só académica mas profundamente conservadora. Foram raras as vezes que a Academia premiou artistas que não se apresentassem como uma continuação do seu próprio pensamento, inclusivamente coagindo de forma tácita os candidatos a adaptar as obras que submetiam a concurso, sob pena de estas desagradarem o júri caso fossem pouco correctas. |
Jacques-Louis David, mestre indisputado do estilo neoclássico francês, autor do mais-que-famoso retrato equestre de Napoleão Bonaparte, entre outras tantas obras-primas (como A Morte de Marat, na imagem em cima), quase desistia da pintura por causa do Prix de Rome. Após um par de tentativas falhadas em dois anos consecutivos, o jovem David, indignado, chegou a realizar alguns dias de greve de fome, tendo sido a própria Academia a recomendar-lhe que continuasse a pintar. Com o alento dessa indicação, seguiu-se nova tentativa no ano seguinte e, outra vez, o artista agora com 25 anos viu ser-lhe negado o prémio. David ponderou o suicídio mas deu a si mesmo mais um ano para fazer uma derradeira tentativa, que finalmente ganhou. Ainda assim teve mais sorte do que Édouard Manet ou Edgar Degas, dois mestres do século XIX que tentaram e nunca conseguiram ganhar o malogrado prémio. Muitos outros, inovadores e anti-académicos por natureza, nem sequer tentavam o Prix de Rome, para não dar à Academia o prazer de lhes infligir uma derrota. |
No caso da música, o Prix de Rome alcançou contornos de escândalo quando o compositor Maurice Ravel, que já tinha sido expulso do Conservatório de Paris em 1895 e readmitido dois anos depois, ao concorrer por cinco anos consecutivos (entre 1901 e 1905) viu ser-lhe negado o prémio de todas as vezes. O problema é que Ravel era cada vez mais conhecido e admirado no meio musical francês, alcançando reconhecimento enquanto um dos mais talentosos e inovadores compositores da sua geração, o que fazia com que cada tentativa falhada fosse uma indignação geral cada vez maior. |
Os vencedores nesses cinco anos foram os compositores André Caplet, Aymé Kunc, Raoul Laparra, Raymond-Jean Pech e Victor Gallois. De todos estes, eu próprio só conheço a música e o nome de Caplet, sendo os outros meros desconhecidos. O caso tornou-se público através da imprensa quando se tornou evidente que todos os finalistas da edição de 1905 eram alunos de composição de Charles Lenepveu, professor do Conservatório e membro do júri, ficando Maurice Ravel, então já com 30 anos, uma vez mais barrado de chegar à final. |
Nesse ano, Ravel era já autor de partituras imortais como a Pavane pour une infante défunte ou Shéhérezade e o caso levou à intervenção do ministério da cultura francês, que despediu o director do Conservatório de Paris, o conservador Theodore Dubois, colocando no seu lugar Gabriel Fauré, com instruções para realizar reformas na instituição e no perfil dos estudos que aí se realizavam. |
Dubois é um daqueles que passam à história como os maus da fita: em 1902 já tinha proibido os seus alunos do Conservatório de assistirem às récitas da ópera Pélleas et Mélisande de Debussy, sem dúvida a mais extraordinariamente revolucionária produção lírica acontecida em Paris até então. Uma verdadeira pedrada no charco. No seu intento inquisitório, faz lembrar o monge Jorge de Burgos do romance O Nome da Rosa, pela feroz doutrina reaccionária e a forma como a aplica, opondo-se terminantemente ao riso e vendo nele o princípio da decadência de todas as coisas. |
No plano artístico, o Prix de Rome serve como explicação irrefutável da magnitude do seu próprio fracasso: é certo que alguns artistas de mão cheia ganharam o prémio (ainda que por vezes adaptando o discurso artístico à visão do júri), mas a esmagadora maioria são nomes que a história das artes não consagrou, na medida em que não trouxeram nada de novo ao que já existia. |
Neste sentido, o Prix de Rome é um monumento à inutilidade do conservadorismo em âmbito artístico. |
O avanço é inevitável e a novidade, a curiosidade e o risco são os eixos das rodas do progresso. Não há poder institucional que valha quando, depois de mortos, todos estes artistas ou membros da Academia têm de prestar contas à história. |
Nisto, lembro-me de uma história ocorrida com o compositor Gustav Mahler, ele mesmo um visionário no seu tempo. Certa vez, nos primeiros anos do século XX, chegando a casa depois de assistir a um concerto onde se tocara música de Alban Berg, um jovem que tinha menos 25 anos do que ele, Mahler confessou a Alma, sua mulher: “venho de um concerto onde não entendi nada daquilo que ouvi. Mas o compositor é jovem, por isso deve ter razão.” |
De forma elegante, Mahler reconhece que o futuro, em qualquer momento da história, pertence aos jovens. E Berg veio a afirmar-se como um dos mais importantes e inovadores compositores do século XX, é certo. |
A atitude de Mahler revela a humildade necessária na relação entre gerações, atitude essa que, de resto, era espelhada pelo muito respeito que Berg tinha pela sua música e pelos contributos que Mahler dera ao avanço geral das artes. |
A história comprova-o: hoje e sempre, pessoas como Gustav Mahler têm maior probabilidade de acabar do lado certo da história do que os jurados do Prix de Rome. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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