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Arte e política: juntar ou separar? |
A palavra “desnazificação” surgiu imediatamente após o fim da segunda guerra mundial. Representou o processo através do qual as potências aliadas procederam à identificação e exoneração de todos aqueles que tivessem afiliações ao partido nazi e definiu o caminho para a reintegração, o perdão ou o esquecimento. |
Na semana passada escrevi aqui sobre o exemplo de dois maestros com os quais considero que o mundo da música clássica terá de lidar — para o bem ou para o mal — quando a guerra na Ucrânia terminar. São apenas exemplos destacados de uma situação que será muito mais ampla e abrangente do que podemos imaginar. |
Se recuarmos a 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial, encontramos um caso que animou uma discussão a nível global, enchendo manchetes pelos vários países aliados. Tratava-se do maestro alemão Wilhelm Fürtwangler (1886-1954) e qual havia de ser o seu destino no que era o começo da “desnazificação”. |
Para contexto, Fürtwangler fora um maestro de incontestável excelência que tinha ficado para trás, nunca saindo de Berlim, ao contrário de tantos outros artistas, cientistas e humanistas que, mesmo não sendo judeus, preferiram abandonar a Alemanha. |
Apesar de, logo nos primeiros anos do nazismo, ter sido oficial a sua posição enquanto não-alinhado (nunca chegou a filiar-se no partido, por exemplo), a verdade é que durante toda a guerra se manteve como director musical da Orquestra Filarmónica de Berlim, cuja actividade perdurou durante todos os dias da guerra. Com efeito, a orquestra nunca deixou de realizar concertos e gravações para a rádio, algumas das quais são hoje veneradas pelos melómanos como algumas das melhores interpretações do repertório germânico como Beethoven, Brahms ou Wagner, o que não deixa de ser impressionante, tendo em conta o nível de desgaste psicológico e material a que estavam sujeitos todos os intervenientes, sobretudo a partir do momento em que a guerra finalmente chegou a solo alemão. |
É certo que Fürtwangler nunca fez a saudação nazi em palco, nem mesmo quando o próprio Hitler estava presente. Nunca dirigiu o hino nacional e resistiu a ser instrumentalizado pela máquina oficial de propaganda. No entanto, apenas o facto de um homem com o seu prestígio ter encontrado o seu lugar na sociedade nazi era já propaganda suficiente para muitos e, dessa forma, o regime soube servir-se do élan do maestro para os seus fins. Fürtwangler podia não ser alinhado com o partido nazi mas realizou concertos em territórios ocupados e em datas icónicas para o regime (como o aniversário do Führer), já para não falar de todas as vezes que teve as maiores figuras do regime sentadas nas primeiras filas ou nas tribunas dos seus concertos. |
Hoje, passados todos estes anos e através de testemunhos, correspondência e arquivos de estado, é evidente que Fürtwangler foi um daqueles homens como Aristides de Sousa Mendes: agindo a partir de dentro do sistema, conseguiu provocar nele algumas infiltrações, deixando que se salvassem vidas e se mantivesse uma maior dignidade. Porque a verdade é que, se todos os homens bons abandonam o barco, há menor salvação possível para quem fica para trás. |
Olhando para o percurso de Fürtwangler, salta à vista uma carta pública que enviou a Goebbels logo nos primeiros tempos do nazismo, onde deixava bem claro que para ele a única linha que se podia traçar para dividir os homens era entre os bons e os maus, tanto na arte como na vida. Ser judeu ou ariano, era para ele um não-assunto, lembrando os exemplos formidáveis de músicos judeus para a tradição alemã. Fürtwangler podia não ser nazi, mas no fim de contas sempre era um orgulhoso patriota alemão. |
Na temporada de 1933-34, chegou a convidar solistas judeus para se apresentarem com a sua Filarmónica de Berlim, como Yehudi Menuhin, Pablo Casals ou Arthur Schnabel, embora todos tenham recusado (compreensivelmente) viajar a solo nazi. Por várias vezes Fürtwangler rejeitou directrizes vindas directamente do regime, como quando foi indicado para substituir numa digressão internacional o maestro Bruno Walter, judeu alemão que tinha partido para o exílio nos EUA. |
É importante sublinhar que, nesses anos, rejeitar uma incumbência destas, vinda directamente do gabinete de Goebbels era semelhante a desertar, o que era escrever a sua própria sentença. |
Por atitudes assim, pessoas como Henrich Himmler, o temível comandante das SS, e Alfred Rosenberg, um dos principais arquitectos do holocausto, queriam vê-lo num campo de concentração. Foi só através da intervenção de Goebbels e Göring que se deitou alguma água na fervura, chegando-se a uma solução de compromisso: para manter a dignidade no estrangeiro, o regime nazi tinha de mostrar que havia ali lugar para os melhores e Fürtwangler era demasiado bom para acabar caído em desgraça num campo de concentração. Melhor seria deixá-lo trabalhar, dentro de certos limites, chegando-se a um equilíbrio possível. |
Fürtwangler foi destemido na sua defesa dos judeus, aproveitando cada deslocação ao estrangeiro para apoiar financeiramente expatriados e ao mesmo tempo convidando-os para se apresentarem como intérpretes ou solistas nos concertos que dirigia. A Gestapo mantinha um registo de todas estas actividades e o próprio Hitler estava bem informado sobre elas. No seu ficheiro nos arquivos da polícia de estado nazi havia uma fotografia impressionante, tirada na Exposição Universal de 1937, que se realizou em Paris. Nela vê-se toda a comitiva alemã com o braço direito estendido em saudação, excepto uma pessoa: Fürtwangler, claro. De resto, o maestro enviou várias cartas ao próprio Führer, nunca escrevendo nelas o costumeiro heil, Hitler! |
Por outro lado, Fürtwangler aceitou algumas posições honorárias na vida administrativa cultural que não o vinculavam do ponto de vista político ou ideológico, mas, vistas de fora, poderiam parecer alinhadas. |
Foi assim que, finda a guerra, o maestro teve de procurar exílio na Suíça, pois estava indicado pelo general norte-americano Robert McClure como um dos principais alvos culturais a abater, um homem para trazer a julgamento. Em sua defesa saiu, em primeiro lugar, o violinista Yehudi Menuhin, que já em Dezembro de 1945 fazia apelos públicos à reintegração cívica e social do maestro. |
A verdade é que Fürtwangler passou um mau bocado, sendo finalmente exonerado da culpa de nazismo por um tribunal especial constituído por artistas e músicos, numa audiência em Dezembro de 1946. Existe uma fotografia desta sessão (em cima) onde se vê o maestro, já envelhecido e agastado, rodeado de jornalistas, numa expressão ao mesmo tempo cheia de dignidade e do que parece ser um enorme cansaço. |
Apesar de hoje ser por demais evidente que Fürtwangler foi um exemplo de coragem e dignidade, há setenta anos o maestro viu o nome na lama. Um episódio de destaque deu-se quando se viu cara a cara com o maestro Arturo Toscanini em 1937, sendo este um feroz opositor ao nazismo e ao fascismo. Para Toscanini, mesmo sabendo que Fürtwangler não estava filiado no partido nazi, o maestro alemão era assim mesmo um nazi, pelo simples facto de ter optado por viver e trabalhar na Alemanha nazi. Para Fürtwangler, a arte e a política eram coisas separadas e os artistas deviam poder trabalhar em solo nazi, comunista ou democrata. Talvez fosse a apenas a justificação possível vinda de um homem que, apesar de aparentemente livre, estava na verdade preso por mil cordas invisíveis. |
O mesmo discurso faz-se hoje em dia sobre Teodor Currentzis, como descrevi na semana passada. Estes temas são complexos quando vividos no seu tempo, tornando-se depois fascinantes testemunhos históricos à distância de meio século. Oxalá o tempo possa vir a dar razão a Currentzis, revelando-nos um homem bom por detrás de um artista bom. Já no caso do maestro Valeri Gergiev, não tenho a mesma esperança. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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