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A história grotesca do compositor que perdeu a cabeça |
É, como se diz, uma história macaca. Durante 145 anos, o túmulo do egrégio compositor austríaco Franz Joseph Haydn (1732-1809) esteve incompleto: continha as ossadas, tinha até uma peruca empoada, mas faltava-lhe o crânio. A profanação do corpo de tão digno compositor não podia ser mais chocante, tendo em conta o padrão civilizacional de que a sua música é testemunha. |
Fala-se pouco na música de Haydn. Toda a gente sabe que foi um compositor da máxima importância, no seu tempo e não só, mas tem muito menos quota de mercado do que os seus pares contemporâneos Mozart e Beethoven. |
Haydn viveu uma vida longa (especialmente para a época), passando a maior parte do seu tempo ao serviço da corte dos príncipes Esterházy, alternando com estes entre a residência campestre de verão em Esterháza, o palácio em Viena ou outro em Eisenstadt. Estamos em pleno Império Austro-Húngaro, com todos os preceitos de velho regime. Haydn, apesar de todo o seu talento e do respeito que merecia por parte dos patrões, estava ainda assim inserido numa folha de pagamentos — chamemos-lhe tabela de recursos humanos — onde se contavam todos os prestadores de serviços do príncipe, do último e mais esquecido dos estribeiros ao secretário mais próximo. Toda uma comunidade vivia em redor do príncipe, ou não fosse aquela uma corte, e das mais importantes do império. |
É só ao fim de décadas de serviço dedicado e após a morte de dois patrões (príncipe Paul Anton em 1762, e o seu irmão mais novo, Nikolaus, em 1790), que o novo herdeiro, o príncipe Anton (que Haydn também viu morrer), dá ao compositor o equivalente a uma licença sem vencimento para que este, com quase 60 anos, possa sair das propriedades da família e dedicar-se a uma digressão pela Europa, onde a sua música era sobejamente conhecida através da circulação das suas partituras. |
As viagens de Haydn são um sucesso, especialmente as idas a Londres, onde o compositor é coroado de glórias umas após as outras, tanto com as suas sinfonias como com as grandes obras corais-sinfónicas, que desde sempre agradaram muito ao gosto inglês. |
Tudo isto para dizer que, quando morre, Haydn é um compositor respeitado, com uma carreira longa construída através de trabalho aturado e contínuo. É a súmula perfeita entre o espírito esclarecido do seu tempo e o respeito pela velha ordem. Por um lado um iluminista, que ajuda a conduzir a música do seu tempo rumo a uma incrível fase de proporção, harmonia e bom-senso, mas por outro um homem devoto que assinava no fim dos seus manuscritos “Laus Deo”. |
Quando morre em Viena, em 1809, durante os anos quentes das guerras napoleónicas, a cidade encontrava-se sob ocupação francesa. Por essa razão, Haydn não teve direito a grande pompa no funeral, chegando a passar quase despercebido. |
Quem esteve atento, no entanto, foi um certo Joseph Carl Rosenbaum, que tinha conhecido Haydn de perto pois ele próprio trabalhara como secretário ao serviço dos mesmos príncipes. |
Dá-se o caso de este Rosenbaum passar à história como a antítese de Haydn. De um lado o decoro e o espírito ecuménico, do outro a inconsequência e a ingenuidade. |
Por estes anos, uma pseudociência intitulada frenologia ganhara muitos adeptos por entre a comunidade leiga. Concebida por Franz Joseph Gall 11 anos antes, a frenologia apresentava-se como sendo capaz de identificar, através da forma do crânio, certos detalhes ou características psíquicas ou comportamentais da pessoa. Lembra-se do momento aterrador em que Calvin Candie (Leonardo DiCaprio) explica as origens da submissão dos escravos através do crânio de um escravo falecido na sua plantação de algodão? Esse momento do filme Django Unchained, de Quentin Tarantino, era não mais do que uma demonstração da frenologia (e, por conseguinte, um retrato de quem a praticava). |
Pois bem, o tal Rosenbaum, ao saber da morte de Haydn, suborna o coveiro meses após o enterro do compositor e consegue assim obter a cabeça de Haydn (em pleno estado de decomposição). Segundo o seu diário, quando a recebeu, num dia quente de julho, vomitou na carruagem enquanto a levava para um hospital a fim de obter dela um crânio limpo. E, de acordo com os doutores frenologistas que a analisaram, lá estava, de facto, uma protuberância craniana na “zona da música”. De que servia esta ciência, apenas capaz de se revelar quando a pessoa sob estudo já estava morta? Não servia de absolutamente nada. Já no seu tempo foi qualificada como banha da cobra por parte de médicos e cientistas, e não irá durar mais de umas décadas. |
A história macaca continua então com o crânio de Haydn a passar de mão em mão e a tomar o seu lugar numa vitrine caseira, onde era mostrado como curiosidade aos visitantes mais selectos. |
Entretanto, finda a guerra, o príncipe Esterhazy decide exumar o corpo de Haydn e trasladá-lo para um túmulo mais digno, mandado fazer de propósito para a ocasião. Qual não é o seu espanto quando, em pleno momento solene, descobre que lhe falta a cabeça.
Pessoalmente ofendido, o príncipe não teve qualquer dificuldade em chegar até Rosenbaum, que de resto tinha mantido a cabeça para si de forma nada secreta. Só que este, em mais um acto de inexplicável estupidez, esconde o crânio com a ajuda da mulher, dando ao príncipe um outro crânio (sabe-se lá de quem). |
É assim que Haydn vai a enterrar de novo, com a cabeça de um zé-ninguém no lugar da sua, continuando o seu verdadeiro crânio a fazer as delícias das visitas privadas dos vários donos na cidade de Viena ao longo do século XIX, até ser finalmente legada a uma importante sociedade musical da capital austríaca, continuando no entanto a ser mostrada como curiosidade ainda em pleno século XX. |
Será o então herdeiro da família Esterházy, o príncipe Paul quem, indignado pela reiterada falta de respeito a Haydn, manda fazer um novo túmulo para o compositor na igreja de Eisenstadt, conseguindo que o crânio autêntico reencontrasse o seu corpo só em 1954. |
No entanto, talvez por ninguém saber o que fazer com ele, manteve-se o crânio anónimo no lugar onde estava, o que quer dizer que Haydn neste momento jaz finalmente inteiro mas na companhia da cabeça de sabe-se lá quem. |
Considero esta história tão bizarra quanto fascinante e alarmante. |
Pessoalmente, adoro a música de Haydn, embora ache que é um gosto adquirido mais do que uma porta de entrada para a música clássica. Gosto de incluir as suas sinfonias na dieta das orquestras que dirijo, pela mesma razão que incluímos legumes naquilo que comemos: pode não nos levar à loucura, mas bem cozinhados sabem bem e fazem melhor ainda. |
No entanto, havia logo de ser com Haydn que a idiotice e a desinformação tinha de se manifestar. Os mesmos frenologistas tentaram obter também o crânio de Beethoven em 1827 mas sem sucesso. |
Parece-me inexplicável que ainda hoje a situação com as ossadas de Haydn seja esta, tal como me parece absurda a história rocambolesca da sua cabeça. |
O grotesco é proporcional à estupidez e serve neste caso como aviso para os perigos de acreditar em tudo o que se lê ou ouve em conversas de café. Sei que não é o caso com os meus leitores, que subscrevem este jornal para receberem dele informação fidedigna, mas pode ser o caso de alguém que conheçam. |
Porque no melhor pano cai a nódoa, é bom lembrar que por muito correctos e lógicos que sejamos, não estamos a salvo da estupidez alheia. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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