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Um calendário para celebrar a música no feminino? Que péssima ideia |
Mais uma primavera que vai passando, mais um suspiro da minha parte: aí estão os ciclos de “música no feminino”. Sempre pontuais, sempre previsíveis, e sempre uma desculpa para esquecer a temática feminina o resto do ano. |
A intenção é nobre, não há dúvida. Mas vem em forma de bonanza, pontual e concentrada, em vez de integrada e distribuída de forma coerente e orgânica ao longo do tempo. Março, o mês da mulher e da primavera, ou Maio, mês de Maria, deveriam, em boa verdade, ser todo e qualquer mês do ano. Deveria ser natural programar música escrita por mulheres, interpretada por mulheres e conduzida por mulheres, sem que fosse preciso fazer disso bandeira. É como dizia Oscar Wilde: sabemos que temos boas maneiras quando nos podemos esquecer delas. É sinal de que estão interiorizadas. O que sinto é que instituições que realizam os seus paulatinos ciclos positivistas e empoderadores dedicados à mulher são instituições que ainda não estão lá porque, precisamente, sentem a necessidade da afirmação. Se fosse uma coisa natural, não haveria necessidade de chamar a atenção. |
Dir-me-ão que estas instituições o fazem porque é necessário lançar uma mensagem para a sociedade. Que não é uma coisa interna. Entendo. Mas essa posição só seria legítima se não tivessem telhados de vidro, como se verifica ao passarmos em revista a programação que desenvolvem durante o resto do ano ou conhecendo as tabelas de recursos humanos e a sua distribuição por géneros, tanto a nível global como na pirâmide hierárquica. A verdade é que nenhuma instituição em Portugal, ligada à música clássica, está sequer perto de atingir a paridade em termos de empregos e programação combinados. Mas é bom sinal se, genuinamente, lá quiserem chegar. |
Voltemos ao tema. Experimentem uma pesquisa no Google com “música no feminino”. Com esta exacta designação, encontramos ciclos e eventos de música clássica dedicados à mulher na Fundação Calouste Gulbenkian, na Orquestra Metropolitana de Lisboa, na Casa da Música, na Câmara Municipal de Sintra, no Museu Municipal do Porto. Nem o título é diferente. Porquê inventar, quando já existe uma etiqueta tão boa? |
Não tenho nada contra a celebração de efemérides. Sei bem que Março é o mês da mulher e, como tal, é natural que haja eventos dedicados ao tema. Da mesma forma, Fevereiro tem eventos de carnaval e Dezembro tem eventos natalícios. Ninguém pode celebrar o carnaval em Setembro, por isso faz sentido guardar a festa para o momento certo. |
Mas as mulheres não são uma efeméride. Ao reservar um mês para a mulher, está a ser traçada uma linha de exclusão, mais do que de empoderamento. A integração tem de acontecer no quotidiano, mesmo (e sobretudo) quando ninguém está a ver e os microfones estão desligados. |
É por isso que as quotas, os feudos e os pidgeon-holes têm tanto potencial de excluir como de integrar. E aqui, na música clássica como na vida, tanto faz falar de mulheres como de homens. Jovens ou velhos, portugueses ou estrangeiros, vivos ou mortos. A distinção não se deveria aplicar, a bem de uma pluralidade integrada. |
Supõe-se que uma boa dieta é aquela que tem várias cores no prato e que conjuga de tudo um pouco, em proporções equilibradas. Se Abril fosse o mês da salada, isso dispensar-nos-ia de comer verduras o resto do ano? |
As instituições e os artistas que fazem um trabalho constante e de forma natural pela integração e promoção da criatividade feminina são, em regra geral, aqueles que fazem menos alarido sobre isso mesmo. Porque, para estes, tocar música escrita por mulheres é uma terça-feira. No big deal. É ao fim de anos, décadas de trabalho, que se constata uma trajectória coesa e natural. |
Estou a pensar, por exemplo, na Orquestra Sinfónica Nacional do México. O seu actual maestro titular, Ludwig Carrasco, foi meu colega de classe. Estudámos com o mesmo professor na Northwestern University, quando ele fazia um doutoramento em direcção de orquestra e eu um mestrado. Ainda antes de terminar o seu percurso naquela universidade, Carrasco foi nomeado maestro titular de uma orquestra mexicana, a Orquesta de Cámara de Bellas Artes. |
E foi com grande admiração que o vi desenvolver, desde o primeiro minuto, uma programação de uma riqueza e vivacidade extraordinárias. Havia espaço para tudo: os clássicos, ao lado de obras antigas que o próprio transcrevia de velhos arquivos e dava a ouvir pela primeira vez, ao lado de encomendas à esquerda e à direita a autores mexicanos e não só. E, é claro, mulheres e homens, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não me lembro de o ver envolvido na organização de qualquer ciclo de “música no feminino”, pois seria como promover um aspecto absolutamente normal do seu quotidiano, como usar sapatos ou lavar os dentes antes de dormir. |
Bastaram alguns anos com este percurso, de enorme relevância, interesse e frescura, para que Carrasco chamasse a atenção a nível nacional e fosse nomeado maestro titular da mais importante orquestra do seu país, onde continua a aplicar o mesmo método, só que desta vez com um impacto já além-fronteiras. Vai-se tornando evidente que o México ganhou uma orquestra que não é só nacional (que o é, na defesa e promoção exímia do património mexicano), mas também internacional, na medida em que aponta um caminho de futuro e se correlaciona com os mais importantes músicos do nosso tempo. |
Este é um processo em que não há volta a dar: quando as instituições e os decisores se habituam a conviver com a representatividade e a incorporam plenamente, isso torna-se parte do seu código genético. O mesmo está a acontecer, por exemplo, com as organizações por onde tem passado o maestro Yannick Nézet-Seguin, sobre quem já aqui escrevi. |
Sei que este é um tema sensível, e é importante que o seja. Entre nós, como esquecer o momento em que o cartaz do Vodafone Paredes de Coura para 2022 gerou polémica (#mulhernãoentra) ao apresentar um dia extra no seu programa, inteiramente dedicado à música portuguesa, onde, entre 21 nomes de artistas e bandas, apenas Rita Vian dava voz ao feminino? Também havia mulheres entre as outras bandas e colectivos mas, ainda assim, a desproporção estava à vista e o tema, como se viu, estava bem vivo. |
Isto aconteceu num meio mais mediático do que a música clássica, é certo. No entanto, é importante que também no nosso nicho vamos dando eco a este pensamento crítico e atento. E sim, celebremos as mulheres ao longo deste mês de Maio, mas também em Junho, em Julho, em Agosto… |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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