Esta newsletter é um conteúdo exclusivo para assinantes do Observador. Se ainda não é nosso assinante, vai receber apenas as primeiras edições de forma gratuita. Pode subscrever a newsletter aqui. Faça aqui a sua assinatura para assegurar que recebe também as próximas edições. |
Degradação das instituições? Bullying democrático? Simples má criação, grosseria mesmo? O discurso político de António Costa perdeu toda a civilidade. Mas o que é que justifica esta deriva quando governa com maioria absoluta e tem ainda mais quatro anos pela frente? |
|
Não sei situar exactamente quando começou, mas tenho ideia de que foi com José Sócrates, o “animal feroz”. Houve uma altura, lá nas calendas gregas, em que os debates parlamentares ainda tinham elevação, e quem tem mais memória lembra-se desses tempos e de intervenções realmente notáveis. E depois houve um tempo em que a arena parlamentar se transformou num ringue de boxe onde o que conta é o soundbite, idealmente o mais agressivo possível, eu até diria que nos dias que correm o ideal é mesmo ser o mais grosseiro possível. |
Esta semana isso voltou a acontecer, e aconteceu num dos debates mais importantes do ano parlamentar, o do Orçamento do Estado. E aconteceu pela mão do primeiro ministro. Eu sei que André Ventura também se senta no hemiciclo, eu sei que sempre que ele fala o nível dos decibéis sobe, mas a grosseria de António Costa manifestou-se quer na estratégia seguida (tendo à sua frente uma maioria absoluta e ainda mais quatro anos para governar, depois de sete em São Bento, achou que era mais oportuno ocupar-se de Passos Coelho, da troika e dos diabos do costume do que falar dos dias difíceis que correm), quer na linguagem adoptada. |
O momento mais evidente desse desconcerto foi o da sua resposta a João Cotrim Figueiredo, que acabara de fazer críticas políticas à orientação da política orçamental. Em vez de responder, António Costa insultou. Em vez de explicar como é que se pode escrever no documento oficial do Orçamento do Estado a mentira de que, em 2023, “o Governo procede a uma atualização histórica das pensões, a mais alta desde a entrada no euro”, confundindo deliberadamente actualização nominal com desvalorização real (é ver a página 53), António Costa preferiu reincidir no discurso que fizera na véspera colando a IL ao Chega acusando-a de má educação democrática e de adoptar o estilo de “luta livre no lamaçal“. Isto enquanto, mostrando a maior fineza de linguagem, tratava os deputados dessa bancada por “meninos”. Felizmente que ainda no mesmo debate a IL deu uma resposta à altura, numa intervenção de Rui Rocha, chamando precisamente a atenção para o risco de degradação das instituições democráticas que decorre daquele tipo de intervenções. |
Mas a Iniciativa Liberal não ficou sozinha. Também Paulo Rangel, cujas críticas políticas ao acordo dos gasodutos o primeiro-ministro descartou como vindas de alguém “que não percebe nada de energia”, reagiu acusando-o de “bullying democrático”. A meu ver também ele com razão. |
Não é por acaso que isto está a suceder. E julgo que nem sequer é por o PS continuar a ter más notícias sempre que é publicada uma sondagem. Há aqui estratégia política e há aqui uma notória, e antiga, falta de cultura democrática. |
A estratégia política decorre de uma aposta na promoção do Chega e de André Ventura, que António Costa gostaria de ter com padrão de toda a oposição, para assim não ter uma oposição credível. Na semana em que André Ventura, numa entrevista ao Observador que pode ler aqui ou ver aqui, tornou ainda mais clara a adopção de um discurso em muitos aspectos idêntico ao da esquerda radical, designadamente no que se refere à irresponsabilidade orçamental (como sublinhou o Alexandre Homem Cristo), os socialistas prosseguiram na sua estratégia “a la Mitterrand” de promover a direita radical para conter o crescimento de uma alternativa mais moderada à sua direita (falei disso num Contra-corrente, ideia que também seria retomada no Fora do Baralho). Como os socialistas não se eternizarão no poder — ninguém lá fica para sempre –, o risco de prosseguir este caminho é reproduzir em Portugal o geografia política de França, onde o partido da senhora Le Pen se instalou solidamente como segundo partido (para já). |
A par com esta estratégia política há aspectos de cultura política no nosso PS que não desaparecem, aspectos menos saudáveis que até permitem que se recupere, sem pudor, a figura do primeiro-ministro José Sócrates (como notou o Miguel Pinheiro). Não se trata apenas de uma questão de falta de maneiras ou mesmo de misoginia (recordem-se da agressividade de Costa com Assunção Cristas, notem na agressividade de Costa ao dirigir-se a Catarina Martins), trata-se mesmo de nunca os socialistas terem feito o luto dos anos de Sócrates, de nunca terem interiorizado que o problema não estava apenas no enriquecimento pessoal ou na ausência de contas certas, mas em tudo o mais: na mentira, na corrosão dos hábitos democráticos, na tolerância para com os abusos, na obsessão pelo controlo da economia, na ideia de que em política o que conta é “a narrativa” e só “a narrativa”. |
Os socialistas estão há muito tempo no poder (ocuparam-no 20 dos últimos 27 anos), pelo que começam a perder o controlo da “narrativa” mesmo quando aplaudem a alegada habilidade parlamentar do seu líder. Um sinal evidente disso foi a forma como a história da “Ana dos Olivais” se tornou viral nas redes (irá em mais de quatro milhões de visualizações nas várias plataformas, sobretudo no Tik-tok e Instagram, as mais usadas pelos mais novos). |
E os socialistas também estão conscientes de que, com verdadeiras dificuldades económicas pela frente, a “narrativa” de que não estão a fazer cortes e de que não há austeridade bate de frente com a realidade das latas de atum com alarmes anti-roubo ou mesmo dos assaltos a camiões que transportam bens alimentares. É que a inflação, a tal que seria passageira, já está acima dos 10% e não há “narrativa” que sobreviva num país onde se rouba para comer. |
Ora sem “narrativa” a agressividade, a falta de maneiras, mesmo a puro grosseria tornam-se norma nos nossos governantes. Mas tarde ou mais cedo todos pagaremos um preço por este desprezo pelos bons costumes democráticos. Bons costumes como estes, bem visíveis na primeira ida de Rishi Sunak ao Parlamento britânico onde o novo primeiro-ministro fez algo que em Portugal parece ser um verdadeiro interdito: respondeu directamente às perguntas que lhe fizeram os deputados. Sem dúvida uma bizarria que não resistiria às nossas “narrativas”. |
O roubo dos ossos de Grigory Potemkin |
|
Nas últimas semanas quem segue a guerra na Ucrânia descobriu Kherson e quem procurou saber um pouco mais sobre a origem e a importância dessa cidade ficou a saber que ela foi fundada por Grigory Potemkin no século XVIII, que Potemkin não foi apenas o amante mais apreciado por Catarina, a Grande, foi também o estadista mais ousado desse anos de expansão do império russo para sul e para o mar Negro, que foi ele que imaginou e concretizou a ocupação da Crimeia, que Kherson deve o nome à proximidade das ruínas gregas de Kersoneses e que aquele príncipe guerreiro está sepultado numa igreja da cidade, a Catedral de Santa Catarina. Está, não, estava, pois os russos roubaram esta semana os seus ossos e levaram-nos para parte incerta. |
Pessoalmente já tinha chamado várias vezes a atenção para a importância simbólica de Kherson – nomeadamente em Pode ser Kherson a Estalinegrado desta guerra? – e muito por causa da sua relação com Potemkin, um tema aqui retomado pelo New York Times – Why Russia Stole Potemkin’s Bones From Ukraine. |
Devo dizer que sempre tive algum fascínio pela vida do príncipe Grigory Potemkin, que muito do que sei sobre ele aprendi no belo livro de Simon Sebag Montefiore Catherine the Great and Potemkin e esta semana também fiquei a saber, através deste historiador, que será a nona vez que o repouso de Potemkin foi perturbado. Montefiore, que quando escreveu aquele livro foi contactado por Putin para lhe dizer que tinha gostado muito do seu trabalho, considerou agora a visão histórica do líder russo especialmente desajustada, até por estar a destruir cidades que Potemkin ajudou a erguer (como Mariupol e Mykolaiv) e por fazer exactamente o contrário do que então se pretendia que a região fosse, ou seja, uma janela aberta e cosmopolita da Rússia para o Mediterrâneo. |
|
Quanto a Potemkin é impossível não recordar também o famoso filme de Sergei Eisenstein, O Couraçado Potemkin, que pode ser revisto no YouTube. Vi-o pela primeira vez numa sessão semiclandestina na Associação de Estudantes do Técnico, ainda antes do 25 de Abril, e nunca mais me esqueci da fabulosa sequência do carrinho de bebé a descer as escadarias de Odessa enquanto uma multidão era massacrada. |
Para um fim-de-semana chuvoso |
Trago-vos esta semana quatro sugestões de leitura de trabalhos que julgo merecerem a melhor atenção. Ei-los: |
- The Trump Tapes: 20 interviews that show why he is an unparalleled danger é um ensaio no Washington Post de um dos lendários jornalistas que investigou o Caso Watergate, Bob Woodard. Como ele explica logo a abrir, habitualmente não divulga as notas ou as gravações das entrevistas que faz quando prepara um trabalho ou um livro, mas com Donald Trump resolveu fazê-lo para que a opinião pública pudesse compreender melhor o perigo que o ex-presidente representa. Um documento que não nos deixa indiferentes.
|
|
- Inside the control room of Belarus’ hijacked Ryanair flight é a reconstituição pelo Politico do que se passou na torre de controle e no avião que foi obrigado a aterrar em Minsk porque a bordo seguiam Roman Protasevich, um jornalista conhecido pela denúncia do regime bielorrusso, e a sua namorada russa, Sofia Sapega. Elucidativo.
- Abandoned Russian base holds secrets of retreat in Ukraine é uma investigação da Reuters sobre aquilo que o exército russo deixou para trás quando abandonou a região de Kharkiv. Escrito num registo muito seco e objectivo, permite-nos perceber melhor como funcionam as tropas mobilizadas por Putin.
- The New Gatekeepers é um ensaio da Michael Lind na revista judaica The Tablet sobre como as maiores e mais relevantes instituições americanas começaram a falar em coro a linguagem woke, e sobre o que pode ser feito para contrariar este novo absolutismo. Já agora, sobre esta matéria, recomendo-vos a leitura de Patrícia Fernandes que, sobre esta matéria, tem escrito no Observador os melhores textos relativos a esta loucura identitária e autoritária.
|
A cadeira vazia de Hu Jintao – o que é que realmente se passou? |
|
Recordar-se-ão por certo de que referi na minha newsletter da semana passada, com uma passagem dedicada à China de Xi Jinping, a estranhíssima cena do anterior líder, Hu Jintao, a ser retirado do palco durante a cerimónia final de encerramento do congresso do Partido Comunista. Entretanto o New York Times fez uma fabulosa reconstituição do que se passou, usando as imagens vídeo e cortando-as quase frame a frame para tentar interpretar a linguagem corporal de cada um dos protagonistas. Vale mesmo a pena ver What Happened to Hu Jintao? |
Como referiu o professor e sinólogo Wu Guoguang numa entrevista, “This incident demonstrated the tragic reality of Chinese politics and the fundamental lack of human decency in the Communist Party.” |
|
Entretanto tenho estado a ler Xi – Uma História de Poder, de Kerry Brown (edição Casa das Letras). Permite perceber melhor os mecanismos do poder num país que somos obrigados a entender o melhor que pudermos – até para estarmos precavidos. Como o autor conclui, “Goste-se ou não, a peça que o partido escreveu e Xi interpreta (comédia ou tragédia, com final feliz ou triste) é uma peça que, estejamos onde estivermos, teremos de continuar a ver. Hoje, somos todos público de Xi.” |
As cores do Outono |
|
Tenho uma frustração: não sei identificar, distinguir e depois apanhar cogumelos. Na quintinha onde vivo eles brotaram, gloriosos, com estas chuvas, mas eu tenho medo de os apanhar para comer, como adoro. Por isso vou tirando fotografias – e nem vos digo a variedade que também encontro ao passear pela serra. Aqui há uns anos tive um livro sobre os Cogumelos de Sintra, primorosamente editado pelos Parques de Sintra-Monte da Lua, mas entretanto emprestei-o e esqueci-me de a quem o emprestei (nunca vos aconteceu?). Vou ter de ir comprar outro, porque os cogumelos de Sintra merecem. Não os acham bonitos? |
|
Gostou desta newsletter? Quer sugerir alguma alteração? Escreva-me para jmf@observador.pt ou siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957). |
Pode subscrever a newsletter “Macroscópio” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. |
José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |