Esta newsletter é um conteúdo exclusivo para assinantes do Observador. Pode subscrever a newsletter aqui e fazer aqui a sua assinatura para assegurar que recebe as próximas edições. |
Como é que o feitiço se quebrou tão depressa? Como é que o sonho da maioria se transformou num pesadelo? Talvez existe uma resposta simples: as maiorias servem para governar e há quem tenha horror a governar, antes, e apenas, muita habilidade para ocupar o poder. |
|
“Os homens são tão simplórios e obedecem de tal forma às necessidades presentes, que aquele que engana encontrará sempre quem se deixe enganar.” Quando leu esta passagem de “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, Napoleão Bonaparte anotou à margem: “O mundo está constituído por tolos. Entre a multidão, essencialmente crédula, contar-se-ão pouquíssimos indivíduos cépticos, e estes mesmos não ousarão confessar que o são.” |
Homens simplórios, mundo de tolos e crédulos, governação de enganos. Ao cabo de mais de sete anos de António Costa talvez estejamos finalmente a descobrir que aquilo que nele nos surpreendeu afinal já estava descrito nesse velho tratado do século XVI. Aquele que engana encontrará sempre quem se deixe enganar e poucos como o nosso primeiro-ministro fizeram da arte do logro uma forma de vida e um modo de governo da Nação. |
Contas certas? Cativações, investimentos anunciados e não concretizados, orçamentos fictícios. |
Defesa do SNS? Promessas sempre repetidas e sempre por cumprir, dos médicos de família aos tempos de espera. |
Escola pública? Ameaça de demissão em 2019, recuos em 2023. |
A política assim não se faz com o objectivo de melhorar a coisa pública, mas apenas de exercer o poder. O poder é tudo, literalmente tudo, pois a multidão é “essencialmente crédula”. Até um dia. Até àquele dia em que “no desprezo incorre [o príncipe] quando os seus governados o julgam inconstante, leviano, pusilânime, irresoluto”. |
Não tenho notícia que Maquiavel algum dia tenha criado algo semelhante ao “mecanismo”, mas o que sucedeu nos últimos meses a António Costa indica que há sempre um momento em que aquele que engana, e vai de engano em engano, acaba por correr o risco do desprezo. |
Poucos esperavam que, há um ano, o PS de António Costa conseguisse a maioria absoluta que obteve nas eleições de Janeiro de 2022, mas porventura ainda menos esperariam que a seguir ele escolhesse um Governo mais fraco, mais “levezinho”, mais – porque não dizê-lo? – pusilânime. |
A maioria absoluta abria as portas à possibilidade de fazer tudo o que parecia ser barrado pelos constantes equilíbrios da “geringonça” – mas não tem sido nada disso o que este seu governo nos tem oferecido, bem pelo contrário. |
Aqui há uns tempos Miguel Poiares Maduro, que foi uns anos professor na Florença de Maquiavel, notou que “António Costa governa através de anúncios. Faz de uma promessa um anúncio e depois trata o anúncio como se já fosse um resultado. Quando a promessa não se cumpre e o resultado não se vê, faz um novo anúncio.” Sabemos que é bem assim e se querem disso um bom exemplo reparem na política de habitação. |
Em 2017, vejam lá há quanto tempo, Costa elegia a política de “habitação acessível” como prioridade para segunda metade da legislatura. Por essa altura, estávamos ainda na sua primeira legislatura, anunciaria “uma nova geração de políticas de habitação”. Mais tarde, no programa do governo eleito em 2019, prometia-se resolver as carências habitacionais do país até ao 50º aniversário do 25 de Abril, sendo que na sua moção ao congresso do PS em 2021 ainda se falava de uma habitação condigna para todos até 2024. Todas essas promessas encolheram no programa do seu governo de 2022, sendo substituídas pelo objectivo mais modesto de resolver os “principais” problemas do sector, sem especificar quais. |
Esta semana a nova ministra da Habitação, Marina Gonçalves, alguém que do mundo só conhece os gabinetes do poder socialista, foi ao Parlamento para aprovar um pomposo Programa Nacional de Habitação (PNH), pouco ligou às críticas quase unânimes da oposição mas isso ainda é o menos. É o menos porque o seu primeiro-ministro já a colocou no cadafalso, eventual bode expiatório de novas promessas por cumprir, ao dar-lhe apenas três meses para encontrar soluções novas para um problema antigo. Mas é sobretudo o menos porque tudo ou quase tudo no PNH está errado. |
É que, ao mesmo tempo que ir saltando de promessa em promessa, apostando sempre em que poucos são o cépticos e muito mais numerosos são os tolos, os crédulos e os simplórios, António Costa e os seus governos foram meticulosamente destruindo o mercado da habitação e do arrendamento, agravando a crise a cada medida que tomavam. Victor Reis, ex-presidente do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, explicou de forma magistral como isso foi sendo feito no Explicador da Rádio Observador desta sexta-feira, Como se resolve o problema da falta de habitação? Vale a pena ouvir e eu escuso de me repetir. |
Ora acontece que António Costa tem perfeita consciência dos disparates que nesta área tem andado a fazer, pois sou testemunha de que, em privado, antes de ser eleito primeiro-ministro, elogiava o impacto das reformas do mercado da habitação concretizadas pelo governo de Passos Coelho, até porque ele sabia bem como essas reformas estavam a transformar, no bom sentido, a cidade de que então era presidente da Câmara, Lisboa. Perguntar-se-á então: se sabia, porque fez tudo ao contrário quando chegou a São Bento? A resposta é simples e podia ilustrá-la com uma miríade de outros exemplos: António Costa nunca quis exercer o poder para transformar o país, António Costa sempre achou que mais importante do que governar, e governar bem, era ocupar o poder, conservar o poder, exercer o poder. Ora, no caso concreto das políticas de habitação, ter o poder, conservar o poder, pressupunha estar nas boas graças dos parceiros da geringonça, mesmo que isso também implicasse, como em tempos escreveu Victor Reis, estragar em 33 meses (os primeiros 33 meses) o trabalho de 33 anos. Agora está ainda pior. |
Devo dizer que, tendo seguido o longo percurso político de António Costa desde os tempos em que fez a famosa corrida entre um burro e um Ferrari na Calçada de Carriche, não esperava que ele fosse assim – no fundo que fosse alguém para quem o simples exercício do poder vale mais do que o risco de governar e reformar (e por isso estou preparado para ainda pior no domínio da Educação, mas disso falarei na nota seguinte). Só que o candidato a autarca que há 30 anos conhecia os problemas da Calçada de Carriche é hoje o primeiro-ministro que decidiu desvalorizar a linha de Metro que outros construíram e que aliviou a pressão do trânsito sobre aquele acesso a Lisboa. Pior: esse candidato a autarca revelar-se-ia imensamente habilidoso, mas apenas no jogo da política, sobretudo quando ela se transforma num jogo de enganos, enquanto se foi mostrando absolutamente avesso a correr o risco de lutar por um país diferente. |
Suspeitei que isso podia acontecer quando o ouvi, num debate parlamentar logo em 2016, usar a definição de comunismo para descrever a sua sociedade ideal. Como era possível que alguém que vive na política e para a política desde que entrou para a JS aos 12 anos tivesse uma tamanha ignorância de referências ideológicas básicas? Só podia ser por no fundo não as ter, ou então ter aderido ao marxismo na sua versão Groucho Marx: “Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros.” |
De líderes assim dificilmente rezará a História, mesmo que se equilibrem no poder até mais não ser possível. Porque líderes assim não seguem, nem nunca seguirão, uma bela máxima de Bento XVI, que eu não conhecia mas que João Távora recordou esta semana: “Não somos criados para o conforto, mas para as coisas grandes”. Não contem com António Costa para as “coisas grandes”, mesmo que sejam só salvar o SNS ou evitar a degradação da escola pública. |
Em contrapartida é bem possível que muitos o continuem a ver pelas lentes erradas do curto prazo, ou de resultados enganadores. Se têm dúvidas leiam O canto das sereias, que Luís Aguiar-Conraria publicou esta semana no Expresso e onde defende uma tese contra-intuitiva sobre como se faz a avaliação de um Governo. Ou então recordem como É o socialismo, estúpidos!, um texto muito bem visto de Rui Ramos no Observador. |
É que se espuma destes dias é o “mecanismo” e todos os casos que se vão sucedendo, o que cria essa espuma é mesmo a preferência pelo conforto das coisas pequenas, aquelas que fazem as delícias, e o dia-a-dia, dos assessores e adjuntos que nos governam. |
Os socialistas estão assustados com os professores |
|
Expliquei aqui a semana passada como compreendia o profundo mal-estar e a revolta dos professores, mesmo não concordando com tudo o que reivindicam, pelo que não pude deixar de sorrir – um sorriso preocupado, pois temo o que virá a seguir – quando li o trabalho da Mariana Lima Cunha e da Rita Tavares sobre como o PS está preocupado com esta luta por recear perder uma base de apoio eleitoral. Mas estas greves serão um dia passado e aquilo de que poucos falaram por estes dias, as alterações aos programas de Matemática, são futuro e comprometem o nosso futuro. Não vou estender-me, vou apenas recomendar que leiam Alexandre Homem Cristo, pois em Também na Matemática, Portugal em contraciclo ele explica tudo. Nomeadamente isto: |
No ensino e na aprendizagem da Matemática, Portugal está a fazer o caminho inverso dos países acima referidos: aligeirou o currículo da Matemática para “mínimos históricos inexplicáveis”, em vez de o aprofundar ou alargar a mais alunos nas escolas. Em contraciclo com as economias mais desenvolvidas do mundo, Portugal mantém os olhos fixados no seu umbigo, iludido com alegados milagres educativos. Enfim, não tenho eu próprio ilusões: num país que só se interessa pela Educação quando as escolas fecham com greves, seria improvável que este assunto merecesse a atenção que França ou Reino Unido lhe atribuíram. É uma pena, porque isto assim não tem como correr bem: quem escolhe horizontes curtos não vai longe. |
Horizontes curtos, coisas pequenas, sinais no fundo de uma pusilanimidade (“medo, covardia”, na definição do Dicionário Houaiss) que podem gerar, que já estão a gerar, o tal desprezo pelo Príncipe de que falava Maquiavel. |
Recordações de outras épocas (e leituras de sempre) |
|
O podcast mais antigo do Observador, tão antigo como o próprio Observador, nasceu antes da nossa rádio e é o do encontro semanal entre Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto no Conversas à Quinta, um encontro que eu próprio modero. Temos falado de quase tudo e esta semana, quando discutíamos o tema a abordar, Jaime Gama sugeriu o centenário de “Os Pescadores”, porventura a mais conhecida obra de Raul Brandão. Jaime Nogueira Pinto, que lera o livro apenas na adolescência, foi relê-lo e eu aderi com entusiasmo, até porque este livro está na origem do primeiro de uma série de três que fiz em conjunto com o fotógrafo Maurício Abreu. |
A história conta-se em poucas palavras, mas temos de recuar a meados da década de 1980, trabalhava eu no Expresso. O Maurício, que era engenheiro eletrotécnico, já tinha trocado o seu emprego confortável pela vida de fotógrafo e um dia apareceu-me na redação, com “Os Pescadores” na mão, a desafiar-me: “Não queres refazer esta viagem de Norte a Sul de Portugal, retratando o nosso litoral?” Claro que quis, encontrámos um editor que nos financiou a jornada – o Círculo de Leitores onde estava então o António Mega Ferreira – e no final nasceu “O Homem e o Mar – O Litoral Português” (1987). Prosseguiríamos depois com “Os Rios de Portugal” (1990) e “Serras de Portugal” (1992). |
Agora que, por causa do programa, regressei a “Os Pescadores”, ao Portugal de Raul Brandão mas sobretudo ao deslumbramento que ainda é lê-lo – foi muito esse esse o tema do nosso programa desta semana –, agora que recordei o que eu muito mais humildemente escrevi, não posso deixar de notar como o país mudou nos últimos 100 anos, e como também evoluiu nestas últimas quatro décadas. Quando percorri o país já não pude assistir a muito do que relatara Raul Brandão – já raramente se encontravam bois a puxar as redes da arte xávega, já não funcionava nenhuma das armações da pesca ao atum na costa algarvia –, mas hoje quem refaça o mesmo trajecto também já não encontra quem ande ao sargaço nas praias do Minho ou quem ainda use covos de barro na faina do polvo. |
Gostaria por isso mesmo de um dia refazer esta viagem e voltar a dar disso testemunho, até porque não estou seguro que tivesse razão quando escrevi… |
“Muda-se para melhor, dir-se-á, e com alguma razão: as condições de vida de muitas dessas comunidades eram, e ainda são, muito precárias. Mas mudar não devia querer dizer estragar, e é isso que geralmente sucede”. |
Não sei se “sucede” ou se “sucedia”, pois apesar de tudo há no litoral português zonas que me parecem estar hoje melhor, humana e ecologicamente, do que estavam nessa longínqua década de 1980. Queixamo-nos muito, mas nem sempre há razões para lamentar o que passado levou. |
O tempo esse grande escultor |
Sim, eu sei, esta referência é “roubada” ao título de um livro de ensaios de Margerite Yourcenar, mas lembrei-me dele precisamente quando recordava o que o tempo, e o mar, fizeram neste século que decorreu desde “Os Pescadores” a uma das minhas praias preferidas, a Praia de Ursa. É que o primeiro volume do Guia de Portugal organizado inicialmente por Raúl Proença, e com colaborações de Raúl Brandão, saiu quase a seguir (é de 1924) e vem nela uma surpreendente imagem daquilo a que chamavam os “arcos da Maraferama”, e digo surpreendente porque deles são resta hoje qualquer vestígio. Esses arcos também aparecem numa pintura de Alfredo Keil, essa mais antiga pois foi reproduzida em 1912 na Ilustração Portuguesa. O guia foi felizmente reeditado pela Gulbenkian, pelo que podemos citá-lo: |
“As rochas alcantiladas, as formas fantásticas de alguns rochedos (…), os montões de calhaus que rolam trovejando a cada onda que vem, e acima de tudo dois leixões gigantescos que emergem do mar, dão ao sítio uma fisionomia tão inesperada, tão medonhamente estranha que, quem pela primeira vez ali vai, fica assombrado, e sente-se transportado a plagas de sonho, a alguma paisagem homérica…” |
Não iria tão longe, porventura por o mar já ter levado os arcos, até porque se me assombro quase sempre que lá desço, não é por a achar medonhamente estranha, antes teimosamente única, rara e capaz de nos revelar a cada visita matizes diferentes. |
|
(Nestas imagens uma fotografia de 1924, publicada no Guia de Portugal, a pintura de Alfredo Keil e uma fotografia recente, mais ou menos com a mesma perspectiva) |
Gostou desta newsletter? Quer sugerir alguma alteração? Escreva-me para jmf@observador.pt ou siga-me no Facebook, Twitter (@JMF1957) e Instagram (jmf1957). |
Pode subscrever a newsletter “Macroscópio” aqui. E, para garantir que não perde nenhuma, pode assinar já o Observador aqui. |
José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |