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Foi uma semana de revelações mas não devíamos estar surpreendidos. Há muito que o PS, habituado ao poder, instalado no poder, trata o Estado como uma coisa sua, até porque “quem se mete com o PS leva”. |
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Até há poucos dias poucos o conheceriam, mesmo tendo estado vários anos no Governo. Chama-se Hugo Mendes e fez a carreira típica desta geração de socialistas e de governantes. Licenciou-se em Sociologia pelo ISCTE, foi assessor da ministra da Educação (2006/2009) e depois adjunto de uma das figuras mais sinistras da governação de José Sócrates, o seu secretário de Estado Adjunto José Almeida Ribeiro (2009/2011). Quando o PS foi para a oposição ele foi para assessor do Grupo Parlamentar socialista (2011/2015). Quando o PS regressou ao poder foi primeiro adjunto do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares (2015/2019), a seguir chefe de gabinete do ministro das Infraestruturas (2019/2020) e finalmente secretário de Estado (2020/2022). Ou seja, nos últimos sete anos foi sempre alguém da estreita confiança de Pedro Nuno Santos. |
Ora foi este ilustre senhor que, sabemos agora, deu ordens à CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, para só tratar dos assuntos da companhia com o ministério de Pedro Nuno. Foi ele que trocou inúmeras mensagens a discutir, ao pormenor, as condições da indemnização a Alexandra Reis; foi ainda ele que solicitou à administradora da companhia que alterasse a data de um voo para que Marcelo se continuasse a dar bem com o governo; foi finalmente ele que, depois de o seu ministro ter emitido um comunicado a pedir informações à TAP sobre Alexandra Reis, convocou essa mesma TAP para escrever em conjunto a resposta a dar. Neste processo só não foi ele que convidou a CEO da TAP para a reunião com deputados do PS – na altura em que essa reunião aconteceu já se tinha demitido. |
O primeiro parágrafo deste texto recorda o percurso de alguém que viveu de e para o PS nas últimas duas décadas. O segundo parágrafo retrata a falta de princípios e de cultura democrática de quem cresceu e viveu sempre nesse tipo de ambiente, um ambiente onde o cálculo político de curto prazo é o único critério de vida. |
Hugo Mendes não era o único membro deste executivo que não conhecia outro mundo para além do mundo dos gabinetes. O currículo de Marina Gonçalves é também elucidativo. Nascida numa família socialista de Caminha, andou pela JS, licenciou-se em Direito mas apenas fez o estágio de advogacia porque em 2011 entrou para assessora do grupo parlamentar do PS. Daí passou, em 2015, a adjunta e depois chefe de gabinete do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos pois claro, seguindo depois para o Ministério das Infraestruturas. Em 2019 é eleita deputada mas não aquece o lugar – Pedro Nuno chama-a em Setembro de 2020 para a secretaria de Estado da Habitação, sendo promovida a ministra no final do ano passado. Quem a conhece diz que é muito dedicada – “só vê PS e militância”. |
E quem é que, entre 2005 e 2011, andou pelos mesmos gabinetes de Hugo Mendes, primeiro assessorando a ministra da Educação, depois o secretário de Estado Adjunto? Pois a actual número dois do governo, Mariana Vieira da Silva. Que estudou e leccionou onde? No ICSTE, está bem de ver. É a operacional política que é conhecida por atender os telefonemas do primeiro-ministro até dentro de água. |
E quem é o grande, o inseparável amigo político de Marina Gonçalves? Pois é Miguel Alves, o antigo autarca de Caminha que António Costa trouxe para o Governo, como secretário de Estado Adjunto, mesmo sabendo que ele já era arguido num processo – demitiu-se quando foi formalmente acusado. Pelo caminho ainda houve a polémica do pavilhão multiusos, por enquanto sem qualquer acusação judicial. |
Há quem ache que ou não se soube nada de novo nestas audiências parlamentares, ou então que isto é igualmente comum nos governos e nas maiorias parlamentares quer do PS, quer do PSD. Apesar de haver quem já nem mereça ser levado a sério, a verdade é que o discurso do “são todos iguais” é precisamente o que alimenta as forças anti-sistema com a perversidade adicional de ser um discurso falso. E é falso porque a forma como o PS exerceu o poder nos tempos das maiorias de José Sócrates, a forma como está a exercer o poder nestes tempos de maioria António Costa, tendo naturalmente diferenças, possuem um traço comum: tanto nessa altura como agora o PS comporta-se como considerando que está acima dos demais, e fá-lo com naturalidade e sem problemas de consciência pois pensa genuinamente que o regime é seu, e que ser governo é o estado natural das coisas. |
A que outro partido se toleraria que se dissesse que “quem se mete com o PS leva” e que isso, em vez de suscitar revolta, induza comportamentos amedrontados e calculistas? Sim, porque quem se mete com o PS pode ter mesmo a vida, a carreira, os negócios estragados – sintomaticamente vemos como alguém cujo futuro profissional deixou de depender do PS (Christine Ourmières-Widener) fala com uma liberdade que é rara testemunhar no nosso Parlamento. |
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E que outro partido se permitiria tratar da coisa pública como sendo coisa sua, naquela lógica de que “o Estado é o PS e o PS é o Estado”? Sim, porque aquilo que agora sabemos sobre o modo como o Ministério das Infraestruturas comandava a TAP (“TODAS as questões relacionadas com o Governo devem ser encaminhadas através de nós. A TAP é a única empresa que se comporta assim. Não há ligações directas entre a TAP e outros ministérios”, escreveu Hugo Mendes num dos mails que enviou à CEO da companhia) é apenas uma amostra do que se passa todos os dias na relação do poder político não só com as empresas públicas mas também com a máquina do Estado. De facto como interpretar o comportamento servil da Inspeção Geral de Finanças neste processo? Ou que leitura fazer da forma como ainda recentemente a ASAE se deixou instrumentalizar na manobra política com que o executivo tentou, sem êxito, fingir que a inflação era culpa da grande distribuição? |
Não, não são todos iguais porque nenhum outro partido ocupou tanto tempo o poder em Portugal e o poder, como se sabe desde tempos imemoriais, corrompe. Também não são todos iguais porque nunca como agora houve um executivo onde tantos só tivessem como currículo os gabinetes e onde fossem tão poucos os que conheceram mundo fora do conforto dos gabinetes – quando se começa a ter acesso a carro com motorista mal se sai dos bancos das universidades passa a viver-se numa bolha que pouco tem em comum com a generalidade dos mortais. E finalmente não são todos iguais porque há neste país uma especial condescendência cultural e mediática para com os comportamentos de governantes ditos “de esquerda”, pois “nós somos de esquerda” e a esquerda, como todos sabem, é “moralmente superior”. |
Por isso é que, se no passado se acusava a direita de achar que tinha “direito natural” a governar, hoje se permite que o PS se comporte como dono e senhor do regime. Mais: que depois de tudo isto que temos vindo a saber sobre a TAP ainda se diga por aí, com toda a naturalidade e como se fosse uma fatalidade, que Pedro Nuno Santos será o próximo líder dos socialistas e o próximo primeiro-ministro. |
Se isso acontecer – e pode mesmo acontecer – ninguém poderá dizer que não sabia. |
PS. Recomendo que leiam este texto de Alberto Veronesi no Observador, pois nele conta-se como este tipo de comportamentos arrogantes e clientelares impregnou o PS de alto a baixo. Nele relata-se como a presidente de uma junta de Lisboa, a dos Olivais, ignorou todas as questões que lhe foram colocadas na assembleia de freguesia em que se pediram explicações sobre a reportagem da TVI Familiares contratados e ajustes diretos com boys do PS custam mais de meio milhão aos Olivais. António Costa fez escola. |
O wokismo é um disparate, mas é perigoso |
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Já não sei por onde começou, mas nas últimas semanas soubemos que os livros de Agatha Christie serão revistos para eliminar expressões hoje vistas como incorrectas, que as aventuras juvenis imaginadas por Enid Blyton estão a ser relegadas – escondidas – para os armazéns de bibliotecas demasiado ciosas ou que haverá histórias do Tio Patinhas que já não serão reeditadas. Não são as primeiras nem serão as últimas, pois o wokismo está em crescendo e não poupa nada nem ninguém – nem sequer terá poupado o escritor português Afonso Reis Cabral que não viu uma obra sua publicada nos Estados Unidos porque ele é um “escritor cis” e o principal personagem era uma “mulher trans” (na Rádio Observador discutimos este último caso com o editor Francisco José Viegas, no podcast A História do Dia, no Contra-corrente também tratámos o tema em Censura em livros infantis acaba com “pais e mães”). |
Mas se estas histórias, de tão absurdas, por vezes nos fazem sorrir, não devemos ter ilusões porque o objectivo destas militâncias é mais vasto e mais ambicioso. Como escreveu esta semana no Observador o historiador João Pedro Marques, “o wokismo está em crescendo e um dos seus objectivos é alterar a História que se ensina nas escolas para condicionar as novas gerações”. No texto A cruzada das crianças ele discute precisamente os objectivos de uma nova cruzada, esta dirigida ao conteúdo dos livros escolares, em especial os de História, em concreto os de História para crianças ainda muito novas (5º ano de escolaridade), livros que certos ideólogos pretendem que sejam livros de endoutrinação, em particular no que se refere à história da nossa Expansão, que eles querem reduzir – as palavras são deles – a “estupro, escravatura, morte e arrebanhamento de recursos”. Eis uma passagem da forma como ele contesta esta agenda militante: |
“Eu pasmo com esta visão das coisas. Em primeiro lugar porque a redução da Expansão portuguesa aos seus aspectos sangrentos e negativos é uma perspectiva tão parcial, tão fanática, que nem dá para comentar. Em segundo lugar, porque mesmo que essa perspectiva fosse acertada e equilibrada, seria um colossal erro pedagógico transmitir uma coisa dessas a crianças tão novas. Como já escrevi por várias vezes, o ensino da História não é uma loja de horrores. Não é esse o seu objectivo, muito menos neste nível etário. A aprendizagem da História, como a da vida e de muitas outras coisas, é algo que se vai fazendo, a pouco e pouco, por degraus ou etapas. Qualquer pessoa razoável, mental e emocionalmente amadurecida, perceberá que não faz sentido ensinar a crianças do 5º ano, as inúmeras violências de que a História é feita. Essas crianças crescerão e terão tempo e ocasião, adiante, para o perceberem.” |
João Pedro Marques pede ao Ministério da Educação para não ceder a estas campanhas, mas não é certo que aí reine a moderação, até porque “foi o interesse das elites do poder, e não o simples afã dos activistas da extrema-esquerda, que deu ao wokismo as dimensões que tem hoje”, como defendeu Rui Ramos em Donde vem a força do wokismo? |
Daí que recomende que sigam João Pedro Marques, que tem publicado com bastante regularidade no Observador – pode ver aqui a sua página –, é um autor conceituado com obra de relevo sobre a escravatura, desde estudos originais a obras mais de divulgação como Escravatura – Perguntas e respostas. Aliás sobre este tema, ou melhor, sobre o tema das reparações e dos actos de contrição, ele não perdoou aquilo a que chamou A penitência do Guardian – ou seja, a decisão do jornal inglês de enviar financiamentos para países como a Jamaica para expiar o pecado de um dos seus fundadores ser um industrial têxtil e trabalhar com algodão vindo de territórios onde existia escravatura. É um texto que vale mesmo a pena ler. |
De resto sobre este tema, que tem feito correr rios de tinto no Reino Unido, deixo-vos dois extratos (um pouco mais longos do que o habitual, de dois textos que me pareceram bem certeiros na denúncia do absurdo destas campanhas: |
- The Guardian’s self-laceration is embarrassing to watch, de Jonathan Sumption, na Spectator:
It is patently untrue that Britain has failed to confront its part in slavery and the slave trade. It was confronted by the evangelical movement which rejected the whole idea of African non-humanity in the late eighteenth century. It was confronted by William Wilberforce and later by the radicals of Manchester when they campaigned against it. It was confronted by Parliament when they abolished the trade in 1808 and slavery itself throughout the empire in 1834. It was confronted by the overwhelming majority of the population which endorsed these acts. It was confronted by the statesmen who deployed Britain’s immense diplomatic and naval power to help suppress slavery worldwide in the decades which followed. That was a far more effective form of atonement than the empty gestures which the Guardian offer us now.
- Capitalism not slavery made Britain rich. It’s time we stopped apologising for our past, de Daniel Hannan, no Telegraph:
How bizarre that, in a world where slavery was near-universal, we should train our ire almost exclusively on the country that distinguished itself by its abolitionism. It is true that, during the eighteenth century, Britain had been heavily involved with the slave trade. At that time, human bondage was taken for granted almost everywhere. It had been practised by Aztecs and Incas, Arabs and Persians, Chinese and Koreans, Polynesians and Maori. Barbary slavers had seized more than a million Europeans, raiding as far as Cork and Cornwall. Some 17 million Africans were sold in the Arab world, a trade that continued well into the twentieth century. What made Britain unusual was not that it had engaged in slavery, but that it went on to pour its blood and treasure into eradicating the foul business, diverting ships to hunt down the slavers even while it was engaged in a life-and-death struggle against Bonaparte.
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Um livro muito informativo |
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A guerra da Ucrânia não começou a 24 de Fevereiro de 2022, começou oito anos antes, em 2014, com a intervenção russa na Crimeia e depois no Donbass. Ninguém parece contestar aquilo que nos surge como uma evidência. Ninguém, não: Paul D’Anieri, professor de Ciência Política e Políticas Públicas na Universidade da Califórnia propõe uma leitura diferente, uma revisitação da história recente das relações entre a Rússia e a Ucrânia que recua até à separação dos dois países no quadro da dissolução da URSS, em 1991. A Ucrânia e a Rússia — Do Divórcio Civilizado à Guerra Incivil (Relógio d’Água, 2023) é porventura a descrição mais completa que já li de um processo político complexo que efectivamente começou há mais de 30 anos e que, nessa altura, já comportava alguns dos ingredientes da crise actual. É também um livro que foge às explicações fáceis e aos retratos maniqueístas sobre todo este processo, um livro que contraria com factos as leituras simplistas que ou imaginam uma conspiração ocidental ou se limitam a centrar todas as responsabilidades em Putin. A história é mais complicada, sendo que as complicações começaram logo nos termos do “divórcio civilizado” mas evoluíram depois por entre muitos equívocos e muitos fracassos. Sendo que é também uma história onde muitas vezes se é surpreendido, porque acontece o que ninguém esperava – ninguém esperava, por exemplo, que as manifestações de 2014 a exigir o regresso ao acordo com a União Europeia levassem à queda de Yanukovych, tal como a maioria não acreditou, até ao último minuto, que houvesse mesmo uma invasão como a que aconteceu a 24 de Fevereiro de 2022. Não temos de estar de acordo com todas as teses de Paul D’Anieri – ele desvaloriza, por exemplo, a importância da ideia de “Ocidente” – para apreciar um livro que, até por seguir um registo cronológico, é um excelente guia para esclarecer o que se passou a cada momento e como a cada momento se foram posicionando os diferentes protagonistas, o que nem sempre encaixa nas nossas interpretações formatadas de uma realidade que é sempre mais complexa do que parece. |
Num pinhal aqui perto |
Julgo já aqui ter referido que, naquelas aplicações de fotografias dos telemóveis, é frequente recordarem-nos imagens que fixámos há um ano, dois anos, dez anos. Quase sempre acabo a abrir essas ligações, para recordar onde estaria nessa altura. Pois por estes dias saltou-me uma imagem, que guardei há nove anos, mas que tem muitos mais – talvez tenha quase uns 50 anos. Alguém ma deve ter enviado por essa altura, pois não me recordava dela. Mostra um grupo de adolescentes, muitos visivelmente divertidos, naquilo que parece ser um pinhal – e que eu sei que é um pinhal. Mais exactamente um pinhal que fica perto da casa onde actualmente vivo. |
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Estou neste grupo de miúdos – sou o segundo a contar da esquerda, na fila que está de pé, com uma camisa às riscas – e sei exactamente onde e em que altura do ano a fotografia foi tirada, só não sei precisar o ano (1974? 1975?). Sei que aquele grupo de miúdos eram os “maoistas de calções” do MAEESL (movimento associativo dos estudantes do ensino secundário de Lisboa), apesar na imagem não se ver ninguém de calções. Estávamos juntos para um acampamento de Verão em que montávamos as tendas naquele pinhal, num tempo em que acampar selvagem ainda era permitido. |
Olho para o friso e ainda reconheço muitos, vários foram jornalistas, outros tiveram grandes carreiras académicas e profissionais, infelizmente também reconheço quem já partisse, mas com alguns continuo a conviver – tanto que até voltámos a estar juntos nesta quadra. Sem nostalgias, mas com memórias comuns, como sabe bem. |
Desejo-vos um bom domingo de Páscoa. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |