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Liz Truss gostava de se apresentar como uma nova Margaret Thatcher, mas a “dama de ferro” ficou famosa ao dizer que “the lady is not for turn” enquanto Truss andou sempre de reviravolta em reviravolta. Mas a diferença não está apenas na personalidade destas duas mulheres, a diferença está também em que hoje as enormes dívidas públicas condicionam fortemente a liberdade dos governos — de todos os governos, à direita ou à esquerda. |
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A demissão da primeira-ministra britânica, Liz Truss, e o possível regresso de Boris Jonhson não é apenas mais um episódio da soap-opera em que por vezes a política inglesa se transformou nos últimos anos, sobretudo depois do Brexit – a demissão de Liz Truss é um sinal de alerta para algumas doenças das nossas democracias, um sinal que não deve ser menosprezado. |
O parlamentarismo inglês, o mais antigo e o mais sólido de todos os parlamentarismos, habituou-nos à previsibilidade e à estabilidade. Mais: habituou-nos à tranquila resolução mesmo das mais angustiantes crises. É por isso muito perturbador que esta semana a velha e veneranda The Economist tenha feito uma capa com um título revelador: Welcome to Britaly (imagem abaixo). Quem diria que era possível fazer paralelos entre o Reino Unido e a Itália, comparando os seus problemas, assim sintetizados: “um país de instabilidade política, crescimento débil e subordinação aos mercados da dívida”. Ou seja, Londres como Roma. |
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Como é que aqui se chegou e como é que se sai daqui? Seguindo a tradição e as regras não escritas da democracia britânica, os conservadores deverão escolher agora um novo líder e tudo indica que o farão em poucos dias, tão poucos que deveremos ter um novo primeiro-ministro antes do fim deste mês de Outubro. Mas escolher um novo líder não significa que resolvam os seus problemas, problemas de que esta curtíssima passagem de Lis Truss pelo nº 10 de Downing Street – demitiu-se ao fim de 44 dias… – são uma boa ilustração. |
Mas vejamos que problemas são esses e que lições podemos tirar desta experiência. |
Primeiro que tudo, o Reino Unido é mais um país que sente o peso da, e regresso à Economist, “subordinação ao mercado da dívida”. Repete-se muitas vezes que foram os mercados a provocar a queda de Liz Truss, o que é factualmente verdade, mas omite-se que isso aconteceu porque, com uma dívida pública superior a 100% do PIB, nenhum governo pode contar com a benevolência dos mercados. É isso que Rui Ramos explica em O que se passa na Inglaterra?, foi também isso que Luís Aguiar-Conraria discutiu no “Fora do Baralho” desta semana. Uma das coisas que ele aí recordou foi precisamente a evolução da dívida pública britânica, uma dívida que estava nos 40% no tempo da senhora Thatcher, que com a crise financeira de 2008 saltou para os 80% e que com a Covid acabou por ultrapassar os 100%. |
O programa “pró-crescimento” de Liz Truss era inconsistente, foi mal apresentado e estava mal sustentado? Certo, e mais certo ainda se pensarmos que a primeira-ministra demissionária queria baixar os impostos ao mesmo tempo que subia a despesa pública, abandonando assim a prudência orçamental que habitualmente caracteriza os conservadores. Mas se foi condenado liminarmente pelos mercados isso também aconteceu porque Lis Truss nunca pareceu ter realmente convicções, antes pelo contrário. |
Por outras palavras: ela não falhou apenas porque a montanha da dívida não lhe deu a margem de manobra que apesar de tudo a senhora Thatcher teve no seu tempo, ela também falhou porque, apesar de se querer apresentar como uma nova “dama de ferro” mais depresso mostrou ser uma “dama de barro”, como hoje se escrevia no espanhol ABC. Na sexta-feira discuti isso mesmo no Contra-corrente, isso e as condições que existem ou não existem para emergirem, no Reino Unido ou em qualquer democracia moderna, líderes reformistas e determinados, líderes que, como a senhora Thatcher, governem de acordo com as suas convicções e tenham a coragem, como ela, de repetir que… “the lady is not for turning”, mesmo ao enfrentar as maiores resistências. Participaram também o André Azevedo Alves, o Paulo Tunhas e o Jorge Marrão. |
Mas o problema está longe de ser apenas Liz Truss, a conservadora que antes foi liberal-democrata e que chegou a advogar o fim da monarquia. O problema está muito naquilo que é hoje o partido conservador, um partido profundamente dividido não apenas pelas feridas deixadas pelo Brexit mas também no que se refere ao rumo a dar ao país. Muitos não se terão apercebido, até porque vivem mais de ideias feitas do que de factos, mas a coligação criada por Boris Jonhson e que lhe permitiu a estrondosa vitória eleitoral de 2019, uma coligação que passou a integrar muitos antigos eleitores trabalhistas, obrigava a políticas públicas generosas. Boris aumentou a despesa pública e aumentou os impostos, Boris prosseguiu também uma das mais agressivas agendas de transição climática, tudo políticas que por regra não associamos a um conservador. Por outras palavras: Boris podia ser um brexiteer mas não era um thatcherista. Não por acaso o seu ministro das Finanças era Rishi Sunak, o mesmo Sunak que ele agora quer desafiar porque não lhe perdoou a saída do seu Governo pois foi essa deserção que acabou mesmo por precipitar a queda de Boris. |
Tudo isto permite ilustrar as profundas fracturas que atravessam os conservadores e que não se limitam apenas às geradas pelo Brexit, também passam por diferentes visões do que deve ser a governação económica e com frequência distanciam a elite que vive na bolha de Londres das bases e de um eleitorado que hoje até sociologicamente é diferente. |
Não vai ser fácil sair deste labirinto. |
O trabalho especial do Observador que não pode perder |
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Yulia Soboleva e o seu filho Lev, de sete anos, fugiram de Irpin a 8 de Março, menos de duas semanas depois da invasão da Ucrânia. Vieram para Portugal e foram acolhidos em Monte Redondo, perto de Leiria. Foi lá que o Observador foi ter com eles a primeira vez, depois acompanhá-los-ia na sua viagem de regresso a casa. Desse trabalho resultou a reportagem multimédia O regresso – Mãe e filho entre Portugal e a guerra, que vos recomendo vivamente. Neste domingo de chuva, em que apetece ficar em casa, tirem uns bons minutos para acompanharem esta odisseia contada pela Catarina Santos, autora dos textos e dos vídeos, que trabalhou com o Diogo Ventura, o Miguel Feraso Cabral e a Ana Moreira, sem esquecer a nossa intérprete ucraniana, a Tânia Oliynyk. E veja porque é que Yulia decidiu voltar a um país que nunca mais será o mesmo. |
Entretanto, como já lhe contei, um outro trabalho excepcional do Observador, a radiografia de uma aldeia sob ocupação russa durante 30 dias, ganhou um dos mais prestigiados prémios de jornalismo do mundo iberoamericano, o Prémio Gabo. O João Porfírio foi a Bogotá, na Colômbia, recebê-lo e pode ver aqui o que o júri disse da nossa reportagem e como o João agradeceu. |
A China de Xi Jinping cada vez mais marxista e cada vez mais ditatorial |
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Durou uma semana e terminou ontem mais um congresso do Partido Comunista Chinês e tudo correu conforme se esperava. No último dia foi mesmo aprovada uma emenda à carta magna PCC que eleva o estatuto do secretário-geral, Xi Jinping, cada vez mais líder indiscutível da China, tal como foi eleito um politburo agora cheio de lealistas do líder máximo. |
Preocupados com o que se passa aqui ao lado na Ucrânia demos pouca atenção à reunião cimeira dos comunistas chineses, uma reunião que rompeu com a tradição pós-maoista de impedir a excessiva concentração de poder nas mãos de uma só pessoa. Nenhum líder podia ser líder mais de 10 anos, mas Xi Jinping quebrou essa regra – quebrou essa regra e muitas outras. |
Sem poder desenvolver muito este tema, deixo-vos sugestões de leitura e também o podcast do último Conversas à Quinta, a minha conversa semanal com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto – Devemos ter medo da China de Xi Jinping? Aliás Jaime Nogueira Pinto regressou ao tema no Observador em “Make China marxist again”, um texto onde analisa um certo regresso à ortodoxia doutrinária em Pequim. |
De facto a China confunde-se cada vez mais com o seu líder, algo bem evidente num dos cartazes pendurados na sala onde se reuniram os mais de dois mil delegados ao congresso: “Aplicar Totalmente o Pensamento de Xi Jinping”. E se na sessão de abertura, como notou o Washington Post, os delegados, à medida que Xi discursava – discursou duas horas… –, seguiam religiosamente a sua cópia do discurso, “virando as páginas em uníssono”. Mais: o “Pensamento de Xi Pinping” já tem direito a obras completas e até com tradução em várias línguas, incluindo português (recentemente deparei-me com a prateleira que reproduzo abaixo numa livraria de Lisboa). |
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Mas para ajudar os leitores a perceberem melhor o alcance do que aconteceu e de como a China se transformou nestes últimos dez anos, para além de um interessante apanhado estatístico preparado pelo Wall Street Journal – China’s Decade of Change Under Xi, in Nine Charts – deixo-vos algumas sugestões. |
Começo pela imprensa portuguesa e por uma entrevista do Público a Hugo Jones, Investigador e especialista em Estudos Asiáticos da London School of Economics. Em “É politicamente impossível desafiar Xi Jinping” ele explica que “antes de 2012 e de Xi Jinping chegar ao poder, muitos observadores internacionais achavam que o processo de liberalização gradual da política chinesa, que estava em curso com Hu Jintao [ex-Presidente], iria continuar. Mas isso não aconteceu. Xi Jinping dedicou-se à centralização do partido e colocou-se, a si próprio, no centro desse processo.” |
Hu Jintao, que estava sentado ao lado de Xi na sessão de encerramento do congresso, foi aliás levado da tribuna por seguranças em circunstâncias ainda pouco claras, o que confirma o poder absoluto de líder. Escrevendo sobre isso no Project Syndicate, Chris Patten defende que The Only Direction for Xi’s Dictatorship. O que concretiza assim: “Over the past decade, Chinese President Xi Jinping has exploited Communist Party leaders’ fear of losing control to increase his own power to levels unseen since Mao Zedong. Party members preparing to hand Xi a third term this month are ignoring their country’s own recent cautionary tale about the dangers of one-man rule”. |
Vale sobretudo a pena ler dois textos de Kevin Rudd, um dos melhores sinólogos da actualidade, antigo primeiro-ministro da Austrália e autor do livro The Avoidable War. Um no Financial Times, Xi’s congress report lays bare an aggressive and statist worldview, onde defende que os comunistas chineses já não excluem o cenário de uma guerra num futuro não muito distante, e outro no Wall Street Journal, Security, Not Growth, Is Xi’s Focus, de que selecciono esta passagem: “Mr. Xi is an ideological fundamentalist who has moved the Communist Party to the Leninist left, the economy to the Marxist left, and China’s foreign and security policy to the nationalist right.” |
Termino com uma perspectiva algo contra-corrente, a de Bret Stephens no New York Times, Thank You, Xi Jinping, um texto onde defende que o comportamento de Xi Jinping – “Your war on corruption has turned into a mass purge. Your repression in Xinjiang rivals the Soviet gulags. Your economic “reforms” amount to the return of typically inefficient state-owned enterprises as dominant players.” – acabaram por não só prejudicar a ascendência da China no Mundo, como por prejudicar a governação da China. Às vezes convém recordar evidências: “All of this may make your China fearsome. None of it makes you strong. Dictatorships can usually exact obedience, but they struggle to inspire loyalty”. |
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Muito nesta linha vale a pena regressar a Francis Fukuyama (falámos dele na primeira newsletter desta segunda séria do Macroscópio) por causa do texto que publicou na The Atlantic, um texto com um título provocador: More Proof That This Really Is the End of History. Como ele escreve, referindo-se à forma como Xi Jinping geriu a China, “Over the past year, it has become evident that there are key weaknesses at the core of seemingly strong authoritarian states”. Isto porque “This concentration of authority in one man has in turn led to poor decision making.” |
Não posso estar mais de acordo. |
Paisagens do meu país, e dois estranhos penedos |
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Duarte Belo, fotógrafo e arquitecto, tem uma obra singular. Tem percorrido o país para o captar de norte a sul, até aos seus recantos mais remotos. As suas fotografias distinguem-se por serem quase sempre despidas de gente, só lá estão as montanhas, as pedras, as árvores, as casas, os monumentos grandiosos e os mais singelos, só lá está um país pelo qual muitas vezes passamos sem o ver, outras vezes, as mais das vezes, nem sequer sabemos que existe. O seu mais recente livro, Paisagem Portuguesa, uma edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos, chegou-me esta semana às mãos. É uma obra conjunta com o geógrafo Álvaro Domingues e tem uma estrutura simples: aplicaram uma quadrícula sobre o país, para cada quadrículo seleccionaram uma imagem, 141 no total, e a cada imagem acrescentaram um pequeno onde se interroga o lugar e o que ele nos mostra sobre a sua e a nossa identidade. O resultado é um livro-descoberta que se folheia alternando entre as imagens que nos levam a ler o texto, e o texto que nos leva a entender a imagem. |
Quando estava a folheá-lo recordei-me de um mistério que nunca resolvi. Há uma dúzia de anos, numa viagem à Turquia, ao visitar umas ruínas que já nem sei localizar no mapa (não ficariam muito longe de Bodrum, a antiga Halicarnassus onde nasceu Herodotus, o mais antigo dos historiadores), encontrei um imenso penedo onde tinham escavado uns degraus. É desse penedo a primeira das fotografias que publico a seguir. De regresso a Portugal, ao verificar as novidades numa livraria, eis que tropeço num outro livro de Duarte Belo, este criado em conjunto com José Mattoso e Suzanne Daveau, Portugal – O Sabor da Terra, onde no mosaico de fotografias da capa aparecia um penedo muito semelhante ao que encontrara na Ásia Menor. Comprei o livro (aliás belíssimo) e nele percebi que o penedo português integra o Santuário de Panóias, não longe de Vila Real. A imagem de Duarte Belo desse penedo é a mais pequena. |
Ainda hoje não encontrei quem me esclarecesse o porquê de tão flagrante semelhança. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |