Temos de começar a aceitar que o poder local se degradou. Depois de ter desempenhado um papel extraordinariamente importante no desenvolvimento do país, com a construção de infra-estruturas básicas, entrou numa fase de desorientação nas suas prioridades políticas, com alguns casos de muito pouca democracia e transparência, como se pode ler por exemplo neste artigo de Adolfo Mesquita Nunes.
Os políticos, teoricamente, reflectem as prioridades da sociedade que os elege. Mas quando as pessoas criam dependências, como as do emprego ou do projecto aprovado, vão fechando os olhos ao que vai acontecendo à sua volta. Ou deixam de votar ou votam nos que lhes garantem o sustento. E os poderes acabam capturados por interesses, dos mais pequenos, por dependências, aos maiores, por causa dos grandes negócios.
O modelo de financiamento das autarquias, ainda muito de dependente da construção, completa este círculo de interdependências perniciosas que nos têm conduzido a um exercício do poder local cada vez mais afastado da resolução dos problemas concretos dos cidadãos.
A ordem que aqui se deixa é arbitrária mas serve fundamentalmente como desafio a quem vai, a partir da próxima segunda-feira, continuar ou reiniciar um novo mandato. São uma espécie de dozes mandamentos para fazer renascer o poder local.
1. Qual é a necessidade que esta obra ou este serviço vai satisfazer? Esta devia ser a pergunta com resposta obrigatória para cada iniciativa de uma autarquia. Pede-se menos novo-riquismo e trabalhos de fachada e mais obras que não se vêm mas que são fundamentais para a qualidade de vida dos cidadãos. Mais manutenção e menos construir novo – preservar é ligar-nos à história e à cultura do país.
Em matéria de obra nova, a última moda têm sido as ciclovias. Aceitando que existem ciclovias que são fundamentalmente de lazer, era importante que também se pensassem naquelas que servem para pessoas que usam a bicicleta para se deslocarem. E fora das grandes cidades há ainda muita gente que usa a bicicleta para se deslocar entre localidades vizinhas. Nas grandes cidades, a par da modernização e embelezamentos das avenidas e ruas por onde passa mais gente, é preciso olhar para os bairros, muitas vezes habitados por pessoas envelhecidas e onde se anda com dificuldade.
2. Estarão as autarquias a seguir a melhor política social de integração? Valia a pena pensar seriamente em acabar com os bairros sociais e tentar integrar as pessoas nos bairros, digamos, normais. Porque não ficar com uma ou duas casas de um prédio para habitação social ou a custos controlados, como contrapartida da construção? Construir um grande bairro social e ali alojar as pessoas é colocar um letreiro: estas pessoas são pobres. É dificultar a sua inserção social e impedir a sua ascensão social. Além disso, por muito que nos pareça terrível, não se pode dar sem pedir nada em troca – quem beneficia de apoio social tem de respeitar as regras mínimas de civilidade. Não devemos fingir que André Ventura, o candidato de Loures que tanto choque tem provocado, não reflecte a opinião de um grupo de pessoas que é transversal aos partidos. Ninguém discorda dos apoios sociais mas ninguém os quer ver como injustos, como “almoços” pagos por quem trabalha. Na política social, as autarquias (como os governos) têm muito a corrigir se não quiserem alimentar uma sociedade egoísta e incapaz de ser generosa com quem passa por momentos difíceis na vida.
3. Para que servem as “urbanizações” e condomínios fechados? Para desintegrar as cidades e vilas e para as desumanizar. Quem visita as partes mais antigas das cidades, vilas e aldeias o que encontra é um corpo vivo e humanizado, com várias classes sociais, espaços de lazer e de comércio – mesmo que estejam a morrer vemos que foi assim. São os bairros – que por vezes são mais aldeia que a aldeia. É preciso recuperar a lógica dos bairros e decretar a morte das urbanizações e condomínios fechados.
4. Portugal é um país seco – com excepção do Minho. Mas não existe uma autarquia que não tenha rotundas ajardinadas e com relva. É das decisões mais irracionais das autarquias. Uma rotunda tem funções de segurança e fluidez do trânsito. Uma circunferência cumpria esse objectivo. Mas temos de dar beleza à urbe. Para isso não é preciso ter rotundas de relva e canteiros com flores, com elevados custos de manutenção (financeiros e ambientais). O dinheiro que se gasta aí tem muitas outras aplicações mais importantes.
5. Está a autarquia a facilitar a gestão do quotidiano dos cidadãos? Os filhos que é preciso levar à escola, o avô ou avó de quem é preciso cuidar? Os espaços de lazer oferecem possibilidades de convívio intergeracional? Porque escolhem muitas vezes as famílias passear pelo centro comercial? Aqui está um domínio onde a desorientação é grande, como se não se soubesse o que fazer.
6. Os transportes públicos servem dignamente os cidadãos? Passam por onde é preciso e têm paragens que protegem as pessoas da chuva e do frio? Começamos a ver agora algumas preocupações com essa matéria nas grandes cidades mas há muito para fazer neste domínio, desde melhorar a rede de transportes até integrá-la entre municípios. É preciso estudar, conhecer os movimentos pendulares, saber quais são as necessidades e responder-lhes. Não se pode querer que as pessoas deixem de andar de carro sem lhes oferecermos uma alternativa para se deslocarem, quando a maioria vive longe do sítio onde trabalha e já não existe o clássico hor+ario das “9:00 às 5:00”. E quando se sai das grandes cidades é triste ver o estado em que estão as paragens dos autocarros.
7. Fora dos centros, é triste também ver que ao lado da rotunda ajardinada está uma escola cercada com uma espécie de “rede de galinheiro”, sem árvores nem um espaço verde. A escola tem de ser o centro das preocupações das autarquias. Sim, há matérias que são da competência do Governo, mas autarquia que se preze deveria ter vergonha em não ter a sua escola cuidada e a população escolar integrada, com actividades que fizessem parte da vida da localidade.
8. A população portuguesa está envelhecida, é um facto e um lugar comum. Mas o que é que as autarquias têm feito para responder a essa realidade? Serviços de saúde, actividades de lazer e espaços urbanos amigáveis são três pilares fundamentais numa política feita a pensar nas pessoas mais velhas. E “serviços de saúde” não significa ter edifícios, construções hospitalares. Significa “serviços” de apoio à saúde que podem ser apoio domiciliário mas especialmente linhas que possam ser activadas quando o idoso precisa. Pode ser exagero, mas há situações em que é mais fácil encontrar, fora de horas, quem assista um animal que temos em casa do que uma pessoa.
9. Cada autarquia a sua piscina, o seu pavilhão desportivo (ou seu centro cultural). É um erro. Mas está feito. Se feito está pelo menos promova-se a integração com a escola e com as famílias, dê-se vida ao tijolo e cimento que tão bem se soube pôr de pé.
10. Os centros culturais foram já a grande moda e poucas foram as autarquias que não caíram nessa tentação para muitas, hoje, os terem às moscas. A incapacidade de cooperação intermunicipal, justificada pelas rivalidades entre municípios e a fúria construtiva, deu origem a estes edifícios, muitos deles mortos. Como dar-lhes vida? Eis uma pergunta a que os autarcas têm de responder. Uma hipótese é a interligação à escola e às colectividades.
11. Simplex autárquico. Devia ser a bandeira de todas as autarquias colocando à sua porta: estamos aqui para resolver os seus problemas. Há regras burocráticas que são determinadas pelo Governo? Então que se lute para que essas regras sejam eliminadas ou simplificadas. O relatório sobre competividade global publicado pelo Fórum Económico Mundial identifica a burocracia como o factor que mais prejudica o ambiente de negócios em Portugal. Uma autarquia que consiga praticar a simplificação tem uma enorme vantagem. É preciso acabar com a política de criar dificuldades para vender facilidades.
12.Fim ao “autarquês”, a língua fechada com que os autarcas falam. Um político tem de conseguir fazer-se entender. Acessibilidades, higiene urbana, requalificação… Isto não é português, é linguagem de relatórios tecnocratas ou identificadores de departamentos da organização autárquica.
São 12 apelos a um melhor exercício do poder autárquico. O país que os primeiros autarcas democraticamente eleitos receberam era muito diferente, precisava de muita obra pública, daquela de cimento, betão, tijolo. Percebe-se que muitos autarcas ainda estejam agarrados a esse passado, mas já não precisamos disso – para citar de novo o relatório do Fórum Económico Mundial, em matéria de infra-estruturas Portugal está na 18.ª posição num grupo de 137 países. O que o país precisa é de manter o que tem e de se organizar, de dar qualidade à vida dos portugueses. O poder autárquico degradou-se e precisa de se reencontrar.