Aprovado novo estado de emergência. Novo estado de emergência e confinamento geral aprovados.  Parlamento aprova renovação de estado de emergência. Marcelo fala ao país sobre novo estado de emergência.

Vivenciamos o décimo quarto. 14 estados de emergência vezes 15 dias significa 210 em 365 dias em que Portugal vive um estado de não normalidade democrática e de uma enorme limitação e mesmo supressão de direitos.

Estado de emergência que é decretado pelo Presidente. Regulamentado pelo Governo. Reavaliado pela Assembleia da República. Vigiado pelos tribunais comuns. Noticiado e comentado pelos órgãos de comunicação social. Estado de emergência Covid que é o primeiro a ser decretado no pós-25 de Abril.

E, pasme-se, face ao passado ruidoso de todos, a suscitar inconstitucionalidades em avalancha durante o período de intervenção da troika, até hoje nenhum destes órgãos de soberania ou de fiscalização (à excepção do juiz de Odemira que é outra história e já está suspenso) suscitou a ilegalidade ou inconstitucionalidade dos diplomas que decretaram o estado de emergência.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Será esta unanimidade garantia da legalidade deste processo? Creio que não.

Há um ano, Marcelo Rebelo de Sousa aprovava o terceiro estado de emergência através do Decreto n.º 20-A/2020, de 17 de Abril, e decretava uma brutal limitação de direitos e liberdades, incluindo a proibição de liberdade de culto em plena Páscoa. No entanto, não deixou de dar luz verde à comemoração do 1º de Maio na Alameda, escrevendo no preâmbulo:  Tendo em consideração que no final do novo período se comemora o Dia do Trabalhador, as limitações ao direito de deslocação deverão ser aplicadas de modo a permitir tal comemoração, embora com os limites de saúde pública previstos no artigo 4º, alínea e) do presente Decreto.”

Era já, à época, muito óbvio para qualquer jurista, e cidadão, que o decreto não poderia simultaneamente suspender, em geral, o direito de manifestação e de reunião e depois abrir uma excepção para uma determinada manifestação em particular.

Se era permitida uma manifestação ou reunião pública para comemorar o 1º de Maio, como poderiam ser proibidas manifestações para protestar contra o Governo? E para protestar contra a destruição de empregos a ocorrer diariamente? Como poderiam ser proibidas manifestações a favor de um SNS que pudesse acorrer a idosos que morriam e iriam morrer às centenas em lares de idosos e não chegavam sequer a ser encaminhados para os serviços de urgência dos hospitais?

Há um ano solicitei, como aliás diversos constitucionalistas, aos vários partidos presentes na Assembleia da República, incluindo os que tinham votado contra o estado de emergência, que suscitassem junto do Tribunal Constitucional a inconstitucionalidade do diploma que aprovava o terceiro estado de emergência. Não houve qualquer resposta.

Passado um ano, com o 14º decretado e com o 15º estado de emergência à vista, é certamente altura de confrontar os governantes com a lei e com a Constituição. E de nos confrontarmos a nós próprios, enquanto cidadãos. E respondermos a algo muito simples: até quando aceitaremos viver fora da legalidade democrática? Em que medida aceitamos a restrição dos direitos, liberdades e garantias sem sindicância e justificação, agora de forma preventiva e perante uma pandemia que não vai deixar de conviver connosco durante a próxima década?

A verdade é que os sucessivos decretos do estado de emergência infringiram de forma flagrante a lei de enquadramento – Lei nº 44/86 –, lei que se tornou num caso sério de amnésia para os governantes, mas surpreendentemente também para quem os devia fiscalizar, bem como para juristas e comentadores.

Vejamos o caso da liberdade de culto. Vamos directos ao artigo 2º da Lei 44/86, relativo às garantias dos cidadãos em estado de emergência e lemos que “a declaração do estado de emergência nunca pode afectar a liberdade de consciência ou de religião”.  Reproduzindo a própria Constituição quando determina, no número 6 do artigo 19º: “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, ………e a liberdade de consciência e de religião.”   No entanto Marcelo Rebelo de Sousa não teve relutância em incluir em vários destes decretos autorização para a imposição, pelas autoridades públicas competentes, de restrições que incluíram a limitação ou proibição de realização de celebrações de cariz religioso e de outros eventos de culto que implicassem uma aglomeração de pessoas.

Já essa aglomeração de pessoas, por razões políticas, pareceu sempre a Marcelo Rebelo de Sousa e ao Governo absolutamente imune ao vírus e ao contágio. Se falarmos de liberdades políticas, a interpretação da lei feita pelo Presidente e Governo foram bem distintas.

O que nos diz a lei sobre direitos políticos em estado de emergência? Mais uma vez o artigo 2º, estabelece, na sua alínea e): “As reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos, sindicatos e associações profissionais não serão em caso algum proibidas, dissolvidas ou submetidas a autorização prévia.”

O intérprete terá alguma dificuldade em incluir como reunião de órgão estatutário as cerimónias do 25 de Abril, a manifestação 1º de Maio na Alameda, as manifestações contra o racismo com aglomerações de pessoas nunca vistas, as festas do Avante e por aí fora.

Mas Presidente e Governo não hesitaram em informar os portugueses que “há uma lei aprovada por Cavaco Silva que não permite restrição à actividade política”.  Duvidoso, muito duvidoso. A verdade é que o estado de emergência permitiu segurar o PCP, o PCP segurou António Costa, António Costa lançou a recandidatura de Marcelo. E tudo à “boleia” de Cavaco Silva.

Mas não ficamos por aqui. Que dizer do artigo 3º da mesma lei, que exige que a suspensão ou a restrição de direitos, liberdades e garantias devem limitar-se, nomeadamente quanto à sua extensão, à sua duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade e exige a proporcionalidade e a adequação de medidas? Na última semana foram multados e obrigados a pagar uma coima de 200 euros um homem na Lousã que “comia gomas” de uma vending machine e seis pessoas que jogavam às cartas numa drogaria.  O caricato da situação, iguais a tantas que se verificaram, fez rir o país. Esquecido de que 200 euros é aproximadamente um terço do salário mínimo. Que existem quase 800 mil Portugueses que ganham o salário mínimo. Estamos, pois, perante decretos que permitem medidas absolutamente desproporcionais, à revelia da lei de enquadramento.

E, perguntemo-nos, será que alguém informou os cidadãos que os seus direitos, liberdades e garantias, se postos em causa por declaração do estado de emergência ferida de inconstitucionalidade ou ilegalidade, incluem o direito à correspondente indemnização?

E se um decreto de estado de emergência for declarado inconstitucional?

Passado um ano, é claro que todo este processo legislativo tropeçou, coxeou, levantou pó, lançou poeira para os olhos dos Portugueses e está prestes a cair, antes de se tornar mais tóxico do que o próprio vírus.

Justifica-se o recurso ao estado de emergência? Talvez. É o mesmo, um meio adequado e proporcional para implementar as medidas que são necessárias? Não o parece, pela forma fluida e oportunística como tem sido utilizada pelo poder político.  E, finalmente, é um meio constitucionalmente admissível para permitir, na actual fase, o combate à pandemia Covid? A resposta é cada vez mais um não, pela sua natureza excepcional e porque se deixaram de verificar os respectivos requisitos legais.

É o actual Decreto nº 31-A/2021 conforme à Constituição? Diria frontalmente que não, mas nada nos resta senão deitarmo-nos a adivinhar.

Compare-se o que Marcelo Rebelo de Sousa escrevia há um ano, no preâmbulo do decreto do terceiro estado de emergência: “Consciente do carácter absolutamente excecional da declaração do estado de emergência, mas também da gravidade da pandemia mundial que a todos afeta, o Presidente da República entende ser indispensável renovar mais uma vez esta declaração, em termos largamente idênticos” (Abril 2020), com o que escreveu no preâmbulo do 14º quarto, regulado pelo Decreto 31-A/2021: Estando a situação a evoluir favoravelmente, fruto das medidas tomadas ao abrigo do estado de emergência, e em linha com o faseamento do plano de desconfinamento, impondo-se acautelar os passos a dar no futuro próximo, entende-se haver razões para manter o estado de emergência por mais 15 dias, nos mesmos termos da última renovação” (Março 2021) .

A conclusão lógica do que é a percepção do articulado do Presidente seria obviamente: “… entende-se não haver razões para manter o estado de emergência”.  É absolutamente forçada a opção que decreta o contrário.

O que nos diz a Constituição? Segundo o disposto no nº 2 do artigo 19º, o estado de emergência só pode ser declarado, no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública. Acresce o nº 4, que a opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respectivas declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.

Se, em Novembro de 2020, o Primeiro-Ministro pedia um “estado de emergência preventivo”, com um quadro muitíssimo grave de contágios e de défice do SNS, em Abril de 2021, ultrapassado esse cenário, o que se pede agora? Estado de emergência preventivo de estado de emergência preventivo? Estado de emergência porque se pretende controlar as deslocações da população ao fim de semana? Ou porque se quer proibir a venda de collants e de puzzles? Dificilmente, um jurista pode concordar em que estão preenchidos os requisitos desta declaração.

Mais, quase nada conhecemos da posição dos tribunais. Quantas vezes se pronunciou o Tribunal Constitucional sobre o quadro normativo do estado de emergência? Nenhuma. Quantas vezes foi este conceito densificado por este tribunal? Nenhuma. Que tribunal analisou a correlação entre um estado de emergência legislativo e um estado de emergência constitucional? Nenhum tribunal.  Quantos cidadãos recorreram aos meios judiciais de defesa no quadro da Lei 44/86 quando esta estabelece que  “ ….. a detenção de pessoas com fundamento em violação das normas de segurança em vigor, será sempre comunicada ao juiz de instrução competente, no prazo máximo de 24 horas após a ocorrência, assegurando-se designadamente o direito de habeas corpus”? Ou quando, no seu artigo 6º, assegura que, na vigência do estado de emergência, os cidadãos mantêm na sua plenitude o direito de acesso aos tribunais, para defesa dos seus direitos, liberdades e garantias lesados ou ameaçados de lesão por quaisquer providências inconstitucionais ou ilegais?

Conhece-se um acórdão da Relação de Guimarães, que considerou que o Governo não pode criar, com a legislação Covid, novos tipos de crimes, uma vez que invade a competência legislativa que lhe não cabe, mas sim à Assembleia, num processo em que quatro cidadãos foram detidos e acusados do crime de desobediência por andarem às compras numa distância superior a 55 quilómetros da sua residência. E conhece-se um acórdão do STA em que o tribunal reconhece, a muito custo e com voto de vencido, a possibilidade de limitação de circulação entre concelhos num fim de semana específico, no passado mês de Novembro, por decreto do Governo, mas porque se trata de uma medida cuja vigência temporal é reduzida. Contudo, mais do que proibição, o STA fala em “recomendação agravada”. Parece que poderemos ter como certo que a interpretação, por parte dos tribunais, de todo este acervo legislativo Covid, não será certamente dirigida a legitimar a actuação do Governo e Presidente enquanto instituições, que de braço dado vão aprovando, sem fim à vista, medida restritivas de direitos e liberdades.

O que observamos, contudo, é que quase não há apelo aos tribunais para fiscalização deste arrazoado legislativo.

O que observamos, até agora, por parte de todos os agentes, é uma profunda omissão no dever de fiscalização do estado de emergência. Parlamento, Procuradoria, Ordem dos Advogados, órgãos de comunicação social demitiram-se. Incompetência? Cobardia? Algures entre uma e outra. Salva-se, e tem-nos salvo, a Provedoria de Justiça. Não havendo fiscalização a chegada aos tribunais, seja aos comuns por efeito da acção dos prejudicados, seja ao Constitucional, pecará por tardia. Se os objectivos que se pretendem atingir são a salvaguarda da saúde pública, terão que ser prosseguidos com maior equilíbrio entre as partes e com maior ponderação do interesse público gobal. Se há outros objectivos, que distorcem o quadro da legalidade democrática, a omissão de fiscalização, por parte de todos nós, é cumplicidade. Que nunca deu bom resultado.