Sem meias-palavras, que não cultivo, assumo desde já que desconfio por princípio de greves na Administração Pública. Porque são, por regra, greves de sectores mais protegidos (os grevistas não correm o risco de perderem os seus empregos, por exemplo, se as suas reivindicações forem irrealistas), tal como são greves contra os contribuintes, que no fim pagarão a factura, assim como afectam geralmente mais os mais fracos e mais pobres, os que mais dependem dos serviços públicos. Não é por acaso que, em Portugal, a esmagadora maioria das greves são ou na Administração Pública ou em empresas públicas.
Faço esta introdução por uma razão simples: à partida não tenho nenhuma razão para simpatizar com a greve dos enfermeiros. Posso perceber algumas reivindicações, até concordar com elas, discordar de outras (e discordar mesmo radicalmente, como sucede com a reivindicação de reforma aos 57 anos), mas não é esse o ponto deste artigo. Tenho é todas as razões para simpatizar com o seu sentimento de que estão a ser tratados como enteados por um poder político por não terem padrinhos na geringonça.
Por isso mesmo o que hoje me interessa é verificar como a nossa esquerda, começando no governo de Costa e acabando no Bloco, passando pelo inevitável PCP, voltou a mostrar a intolerância de sempre: quem não é dos nossos, quem não está connosco, só merece ser tratado à pedrada – sobretudo se se atreverem a serem sindicador fora da tutela da CGTP e UGT e falarem em nome dos trabalhadores. Nesse exercício de flagelação vale tudo, em mais uma demonstração de que, em Portugal, a cultura democrática é um verniz fino que estala à primeira contrariedade.
Vejamos pois alguns pontos muito reveladores.
1. Para António Costa as greves cirúrgicas dos enfermeiros são “selvagens” e “absolutamente ilegais”. Disse-o durante uma acção de propaganda, visivelmente enervado, e já deve ter percebido que a tese não tinha pernas para andar, algo que resulta claro por o Conselho de Ministros nem sequer ter decretado a requisição civil em todos os hospitais que estão em greve. É que “selvagem” é uma greve espontânea, convocada sem pré-aviso, à margem das estruturas sindicais. Não é o caso. E quanto à “ilegalidade”, o Conselho Consultivo do Ministério Público validou a legalidade da primeira “greve cirúrgica”, porque seria a segunda ilegal? O primeiro-ministro, que é um jurista, parece padecer de alguma irascibilidade verbal às sextas-feiras, mas o que transparece da sua irritação é que não é bonito de ver: a legitimidade de uma greve não é função de os sindicatos que a convocam serem ou não controlados pelos partidos da geringonça.
2. Um ponto de fixação das críticas a esta greve é o seu carácter “cirúrgico”. De repente multiplicam-se as indignações por, como escreve o filho de uma sindicalista Daniel Oliveira, a greve não ter “qualquer custo relevante para quem a faz” (por existir o fundo de greve reunido por crowdfounding). Eu espanto-me, pois se há coisa comum nas greves da administração pública é elas serem montadas de forma a não terem custos para quem as faz, ou esses custos serem mínimos, e nunca vi gente como o pressuroso colunista minimamente incomodada com isso. Dois exemplos. Na recente greve dos professores às avaliações, também ela uma greve muito prolongada e “cirúrgica”, o método usado pelos sindicados foi fazerem rodar os grevistas pois bastava que faltasse um professor ao conselho de turma para este não se realizar. Assim a greve tinha efeito máximo com custo mínimo para os grevistas (ou mesmo custo nenhum, pois o “grevista” na função pública tem formas de justificar a falta sem perder o direito ao seu salário…). As greves em empresas de transportes como o Metro ou a CP também seguem processos semelhantes: a circulação para por razões de segurança bastando estarem em greve alguns trabalhadores em pontos vitais. A novidade desta greve dos enfermeiros foi que estes encontraram uma forma de fazer o mesmo no Serviço Nacional de Saúde.
3. O crowdfounding é a besta negra desta greve. Um mecanismo que no passado sempre vi elogiado como uma forma de promover a participação popular tornou-se na arma do diabo. Compreendo que António Costa, que em 2013, usando exactamente a mesma plataforma dos enfermeiros, só conseguiu mobilizar 67 doadores para a sua campanha eleitoral para a Câmara de Lisboa tenha alguma fúria quando verifica que só a segunda campanha da “greve cirúrgica” teve 10.842 doadores. Compreendo menos que em editoriais da nossa imprensa “de referência” se diga que este é um “crowdfunding secreto, uma espécie de saco azul com contribuições sabe-se lá de quem” quando bastava ir ao site da plataforma PPL para aí encontrar a listagem dos doadores e verificar que a esmagadora maioria deu o nome, a cara e às vezes até p serviço em que trabalha. Há anónimos? Sim: 1536, ou seja 14%. Um em cada sete. Mas que deixaram as suas referências bancárias na plataforma, a qual não é nenhuma offshore opaca sediada no Panamá. A ASAE deu-lhe um súbito sobressalto cívico e vai investigar. Óptimo: pode ser que assim desapareçam as teorias da conspiração segundo as quais seriam os grupos privados da saúde que estavam a financiar o “saco azul”. Na verdade não creio que quem já meteu isso na cabeça mude de ideias, pois essa narrativa vai tão bem com o seu fanatismo como todas as fake news que agradam às mais distorcidas visões do mundo.
[Já depois deste artigo estar escrito e publicado tive conhecimento de que muitos doadores anónimos começaram a responder positivamente ao apelo dos promotores do crowdfunding para que revelassem as suas identidades, pelo que o número daqueles que não se tinham identificado estava a diminuir rapidamente.]
4. O financiamento colaborativo de uma greve – porque é disse que falamos quando falamos do crowdfunding – levantará problemas, e os nossos juristas já por aí andam a ver se inventam regulamentos ou descobrem irregularidades. Mas acho que vai ser preciso muita imaginação para impedir que um grupo de pessoas que juntou dinheiro para apoiar um conjunto de outras pessoas que perdeu dias de salário por ter feito greve não consiga fazê-lo. Não é um fundo de greve tradicional, é verdade, mas fundos de greve é coisa que em Portugal quase não há. Por isso, e não sendo eu jurista, diria que do ponto de vista formal é como se se tivesse junto dinheiro para apoiar as vítimas do fogo de Pedrógão e, em vez de o entregar a quem aparentemente o malbaratou, o tivesse doado directamente a quem ficou sem as casas. De resto, quando foi da greve dos professores às avaliações, estes também criaram “fundos de maneio” nas escolas para compensar os grevistas com uma “compensação solidária” e ninguém gritou que era ilegal.
5. Tenho visto muitos comentários sobre a “crueldade” desta greve, o que me causa uma certa perplexidade pois nunca ouvi a mesma gente criticar a “crueldade” de outras greves no SNS. Assumindo que recorrem ao SNS os portugueses que não têm meios para recorrerem à medicina privada, parece-me evidente que qualquer greve no SNS é “cruel”. Devem por isso ser proibidas, como são nas forças de segurança? Não creio. Devem ser limitadas, para limitar os danos? Sem dúvida. Mas uma das particularidades desta “greve cirúrgica” é ela ser… “cirúrgica”. Não afecta todos os doentes, não afecta as urgências, não afecta os casos mais graves, não afecta a maioria dos hospitais do país. Afecta cirurgias programadas não urgentes. Claro que afecta milhares de doentes, mas não mais do que as ineficiências do SNS já afectam. De resto chega ser paradoxal que os serviços mínimos estabelecidos para os grevistas são serviços que muitos hospitais do SNS rotineiramente não cumprem.
6. Só que esta greve tem uma característica: proporcionalmente afecta mais as contas do SNS do que os doentes. Para recuperar as cirurgias que ficam por fazer o ministro da Saúde de facto, Mário Centeno, terá de gastar mais dinheiro em programas de recuperação de operações em atraso. No Governo das cativações isso é intolerável e isso explica muita da irascibilidade de Costa. Quando o Metro ou a Transtejo fazem greve o povo que comprou o passe fica em terra mas a empresa não perde a receita, até poupa despesa, exactamente o contrário do que sucede nesta greve. Também isto desorienta as rotinas dos nossos governantes.
Lembram-se do activismo tonitruante de Marinho e Pinho quando era bastonário da Ordem dos Advogados? São porventura capazes de recordar do número de vezes que o anterior bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, apelou a greves da sua classe? Na altura cheguei mesmo a chamar-lhe o Mário Nogueira do estetoscópio, tal o seu activismo reivindicativo, mas a civilidade de então ministro da Saúde (Paulo Macedo) não impediu que fosse recebido em conjunto com os representantes sindicais. Agora o PS e o Governo descobriram que estes activismos são intoleráveis nas ordens profissionais e ameaçam a bastonária – que tem sido bem mais moderada e cordata que esses outros dirigentes – com queixas à procuradoria e cortes de relações. Mais: apesar de os dirigentes dos sindicatos que convocaram a greve terem sido candidatos à Ordem dos Enfermeiros em listas que se opunham à da bastonária, a ladainha é que essas organizações são marionetas de Ana Rita Cavaco. Pessoalmente estou onde sempre estive: prefiro as ordens profissionais o mais longe possível do mundo sindical, e isso inclui a Ordem dos Enfermeiros. Já para os que só funcionam em função da sua claque a bastonária é pestífera porque… é do PSD. Que nas redes sociais se gritasse assim era normal, que no Governo se decidisse em função deste preconceito já diz muito sobre o país que somos.
7. Todos sabem, desde as histórias das Mil e Uma Noites, “é muito difícil voltar a meter o génio dentro da lâmpada”, e quem libertou o génio foi António Costa ao fazer subir as expectativas com o fim da austeridade e a “recuperação de rendimentos”. Esta greve dos enfermeiros não se distingue de forma radical naquilo que reivindica de nenhum dos outros milhentos conflitos que borbulham em todo o sector publico. O que a torna diferente são duas características novas: o seu carácter inovador, que a torna mais eficaz e permita que seja mais duradoura, e ter fugido ao controle político dos sindicatos da geringonça. É por isso, e não por qualquer consideração jurídica, que ela desconserta profundamente António Costa, que ele genuinamente a considera “selvagem” – “selvagem” porque foram do seu quadro mental e para além do seu longo braço político. É também isso que irrita profundamente uma esquerda genuinamente apanhada de surpresa.
Mas há mais neste movimento, do caracter inorgânico, basista, do crowdfounding, ao grau de irritação patente nos grupos formados nas redes sociais para organizar a greve, que nos indicia podermos estar a assistir a fenómenos novos em Portugal. Há que saber ler os sinais.
O povo é manso, mas pode não ser manso sempre. Ninguém deve brincar com o fogo – mesmo quem não detesta o Governo.
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