O que se está a descobrir sobre a reconstrução de Pedrógão Grande envergonharia qualquer responsável político num país decente. Qualquer um, a todos os níveis…

À medida que se somam as evidências e o escândalo aumenta, cresce o silêncio desses responsáveis. E das poucas vezes que abrem a boca, mentem, contam meias verdades ou mostram meias mentiras. Ou então fogem quando são confrontados com factos irrefutáveis.

Com as primeiras notícias da Visão em julho do ano passado, as suspeitas incidiram sobre 7 casas. De imediato a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR Centro) anunciou o envio destes processos para o Ministério Público.

Um mês depois em finais de agosto, quando as reportagens da TVI nos mostraram o que pareceria inacreditável, a sua responsável fazia um novo anúncio: agora remetia 21 processos para o Ministério Público. Ao mesmo tempo declarava que achava “tudo isto surrealista”. De forma despudorada, quem devia acompanhar e fiscalizar o processo de reconstrução, criticava a oportunidade das denúncias, em vez de dar explicações sobre as fraudes que lhe cabia impedir.

O sr. primeiro-ministro apressou-se a declarar que somente dois dos vários casos denunciados diziam “respeito a fundos geridos pelo Estado”, como se nada tivesse a ver com as restantes situações. Omitiu, que foram os responsáveis do sistema montado pelo governo que para lá encaminharam as instituições que estão a fazer essas reconstruções. Com uma meia verdade, António Costa tentou falsear o seu papel e desresponsabilizar-se, quando tinha a obrigação de assegurar o bom uso dos donativos dos portugueses, independentemente da entidade que os aplica.

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Assistimos à postura indecorosa do presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande que veio negar as notícias e ameaçar os jornalistas com processos judiciais de “difamação”, ao mesmo tempo que alimentava na comunicação social, a sua condição de ex-agente da Polícia Judiciária que “caçava burlões” e, pasme-se, “agora ia matar saudades como investigador”, mas que como era de Lisboa “não conhecia a rapaziada da PJ de Coimbra” que então realizava as buscas na câmara.

Mas foi mais longe. O sr. presidente tratou de informar o país que em Pedrógão Grande “todos somos primos e primas e não há compadrio nenhum”. Uma frase que é um monumento à obscenidade de quem se acha protegido por uma cortina de impunidade.

Primeiro não havia problemas, “tudo estava legal”. Alguns dias depois já admitia que poderia “estar em falta uma ou outra declaração”. Decorridas duas semanas, começou a assumir a existência de umas “irregularidades”. E passado um mês, perante as evidências, começou a fugir às perguntas.

Ao fim de mês e meio, com ar pesaroso, o sr. presidente pediu para sair do Conselho de Gestão do Fundo Revita. E para lavar as mãos, arranjou vários culpados entre os técnicos da Câmara. Afinal, “confiei nas pessoas, eu não ia ao terreno, se alguém ultrapassou os limites com certeza que tem que ter processo disciplinar”.

Mas manteve em funções o coordenador do Gabinete Operacional de Recuperação e Reconstrução de Pedrógão (GORR), que tudo comandava desde o início, bem como quem o coadjuvava. A coincidência é tal que esse coordenador é o seu filho que é coadjuvado pela filha da vice-presidente da Câmara. Os filhos mantêm o “tacho e o penacho” e os técnicos que trabalham, são os culpados pelas fraudes, agora apodadas de “irregularidades”.

Após a segunda reportagem da TVI o número de casos aumentou. Desde então, o sr. presidente da Câmara anda “desaparecido”…

Tentando contrariar as evidências, o Conselho de Gestão do Fundo Revita fez um comunicado em 15 de outubro passado, assegurando que “não se confirma a existência de apoios a habitações não ardidas” e que havia 7 processos que careciam de reavaliação por parte do município.

Este comunicado é a evidência que a mentira e a falsificação tomaram conta desta entidade.

Em dezembro passado, a terceira reportagem da TVI já contabilizava 48 casos de obras e reconstruções que desmentiam categoricamente o comunicado do Revita.

O ministro da Economia foi ao Parlamento no passado dia 9 de janeiro comunicar que só havia dúvidas com 10 casos e que nestes casos só estavam gastos 24 mil euros. Sem revelar a que casos se referia, aliás nunca identificam esses casos, basta visitar algumas dessas obras, para se perceber que só numa delas, qualquer que ela seja, já lá estão enterrados mais que os 24 mil euros referidos.

Casas que estavam abandonadas estão agora reconstruídas, construções que não arderam receberam apoios e foram total ou parcialmente refeitas, barracões que não eram habitações são agora novas casas ou a ampliação de casas contíguas, residências secundárias foram tratadas como habitações permanentes.

Valeu tudo, até construírem casas novas em locais onde antes só havia mato e eucaliptos e nalguns casos a 20 metros do eucaliptal, violando a lei.

Pressionados a darem explicações, os responsáveis por esta desfaçatez tentaram uma escapatória para calarem as denúncias e os protestos. É preciso “aguardar pela justiça”.

O Ministério Público é usado como uma espécie de abafador… enviam-se para lá os processos e seguidamente os infractores dizem-nos que devemos esperar. Como se o sistema judicial conseguisse acompanhar a velocidade de tanta aldrabice, fraude e burla. Aliás, basta ler a notícia do jornal Sol de 27 de agosto passado para percebermos que quem queria a “alegada fraude esclarecida até ao final do ano”, já se esqueceu deste prazo, do que disse e encontra-se num silencioso retiro sobre este assunto…

Mas estes casos não são só o resultado de uma gestão fraudulenta, feita por gente desonesta. Abusam da lei, dos regulamentos e dos poderes que lhes foram conferidos.

Uma das artimanhas legais mais requintada deste processo, relaciona-se com a questão da distinção entre residência permanente e não permanente. Há muitas décadas que em Portugal está legalmente estabelecida a distinção entre estes dois tipos de residência.

Todos os programas de política pública, bem como todo o sistema de benefícios fiscais, só apoiam as situações de residência permanente, também chamadas de primeira habitação. Nunca houve apoios para as denominadas segundas habitações.

Os diplomas publicados em 2017 para apoiar a reconstrução de Pedrógão, distinguem claramente as residências permanentes das residências ocasionais, obrigando à continuidade desta regra.

Mas três meses após o incêndio, através de uma alteração pontual realizada ao regulamento do Revita, foi criada uma “habilidade” que permitia a quem não vivesse em Pedrógão Grande, mudar o seu domicílio fiscal para aquele município e seguidamente pedir o apoio para reconstruir a sua segunda habitação.

Na prática, as pessoas foram incentivadas a falsificar não só a morada da sua residência permanente, transferindo-a para Pedrógão Grande, mas também declarar uma mentira escrevendo que nela residiam à data do incêndio, para assim obterem um enriquecimento ilegítimo com os donativos dos portugueses. Numa só palavra, burla!

Só que foram poucos os “bafejados” por esta prática. Muitos houve a quem foi dito que teriam que esperar. Outros recusaram-se a alinhar na falsificação. Hoje, em Pedrógão Grande, há pelo menos 89 casas que permanecem destruídas pelo incêndio de 2017 sem solução à vista, enquanto alguns “sortudos” usaram este expediente com construções que não arderam, que estavam abandonadas ou que nem serviam para habitação.

E até já ocorreu pelo menos uma situação, em que um residente em Lisboa mudou o domicílio fiscal para Pedrógão, sacou o dinheiro, reparou a segunda habitação que lá possuía e seguidamente repôs o domicílio fiscal na capital.

Os portugueses têm o direito de saber o que os poderes públicos andam a fazer com os seus donativos.

Em 8 de Setembro de 2017, o Observador publicou uma excelente reportagem intitulada “Pedrógão Grande. 9 respostas para explicar o que é feito dos 12,6 milhões de euros de ajuda às vítimas” onde, num vídeo e numa infografia, se detalhava a proveniência dos donativos e das entidades envolvidas.

Hoje, quando revemos esta informação e analisamos o que entretanto sucedeu, temos que nos questionar sobre como foi possível chegar a uma fraude desta dimensão. O Fundo Revita tem presentemente 52 doadores, o maior dos quais é o Estado Português que lá colocou 2,5 milhões de euros. Mas para além destes doadores, há 11 entidades que recolheram donativos que não foram integrados no Revita. Todas elas estão a promover ou a financiar directamente obras de reconstrução em Pedrógão Grande.

Propositadamente, não vou identificar qualquer destas instituições, porque me merecem todo o respeito e sei que não têm responsabilidade nas situações que estão criadas. Mas servem de escudo e de protecção às fraudes e burlas e há um caso que merece ser contado.

Trata-se de um conjunto de instituições que criaram um Fundo que juntou mais de 4 milhões de euros e que de forma transparente, apresenta relatórios regulares que estão publicados na internet à disposição de qualquer pessoa. No último relatório datado de 30 de Setembro passado, está escrito que as casas de 1ª habitação cuja reconstrução têm o seu apoio foram identificadas em listas remetidas pela CCDR Centro. Recomendo a estas instituições que esclareçam a situação da reconstrução que estão a financiar numa pequena localidade de Pedrógão, chamada Casal dos Arais ou que vejam o que se passa com a casa que ajudaram a financiar na vila de Pedrógão que está pronta, vazia e fechada e o seu destinatário comprou uma casa num município vizinho.

Todas as instituições que receberam donativos publicitaram os doadores e os valores recebidos.

Todas, exceto a Câmara Municipal de Pedrógão Grande, que até hoje não divulgou o que recebeu. Depois de tudo o que já sabemos sobre uma Câmara Municipal onde os responsáveis fogem a qualquer pergunta, o mínimo que os órgãos autárquicos devem fazer é publicar a lista dos donativos recebidos e respectivos doadores.

Também o Revita tem a obrigação de publicitar, casa a casa, os apoios que deu, quando e quem os recebeu. Sabemos que não o fazem, porque nesse dia será uma hecatombe…

Percorri Pedrógão de lés-a-lés, passando por todos os locais onde houve construções destruídas pelo incêndio, do Vale da Ponte na zona de Mega a norte, aos Covais no sul, da Barraca do Salvador a poente, até Ouzenda a nascente. Para chegar a alguns locais onde o desmazelo é total, como o Vale da Salgueirinha tive que fazer um percurso pedonal de 4 Km, porque as estradas florestais estão intransitáveis. Percorri muitas dezenas de quilómetros, visitei 64 localidades e mais de 300 construções.

O que conhecia antes do incêndio, o que registei na semana que se lhe seguiu e o que vi nos últimos meses, criaram-me a convicção que os 48 casos referidos na última reportagem da TVI ainda não são o retrato completo da fraude desta segunda tragédia.

Passados seis meses desde que as primeiras reportagens nos mostraram esta triste realidade, não houve processos por difamação ou processos disciplinares, como os que o sr. presidente da Câmara prometeu.

Os responsáveis por tudo o que está a suceder continuam nos seus cargos. No GORR de Pedrógão, na Câmara Municipal, no Revita, na CCDR Centro.

O sr. ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social que nomeou o Conselho de Gestão do Revita não fala sobre este assunto. Nem os seus Secretários de Estado.

O sr. ministro do Planeamento e das Infraestruturas que comanda este processo, sempre que é interpelado ou está em Bruxelas, ou não quer falar. Nem ele, nem o presidente do Conselho de Gestão do Revita, nem a presidente da CCDR Centro a quem cabe fiscalizar a aplicação dos donativos.

O sr. ministro do Ambiente e a sra. secretária de Estado da Habitação que tutelam as questões das políticas públicas de habitação, jamais balbuciaram uma palavra sobre este processo. Mas entretanto anunciaram com pompa e circunstância um novo programa para acorrer a catástrofes como a de Pedrógão, chamado “Porta de Entrada”. O nome é uma verdadeira caricatura do que se passa com a reconstrução das casas destruídas pelos incêndios de 2017: uns entraram pela “Porta do Cavalo”, outros levaram com a “Porta na Cara”.

E o Parlamento acompanha este silêncio. Com a honrosa excepção dos deputados do PSD Teresa Morais e Duarte Marques e do Grupo Parlamentar do CDS, estão todos calados.

Tão calados que quando um grupo de cidadãos apresenta uma “Petição contra a fraude nos apoios a Pedrógão Grande”, esta (Petição 545/XIII/4) é encaminhada para a Comissão de Agricultura e Mar… uma forma habilidosa de mudar de assunto, de diminuir a sua importância e de a retirar da agenda mediática do Parlamento.

Dizem-nos que a corrupção, seja ela passiva ou ativa, ocorre quando alguém numa posição dominante aceita receber uma vantagem indevida ou se abstém de cumprir determinado ato.

Em Pedrógão Grande, por entre acções e omissões, no descaminho dado aos donativos dos portugueses, com o enriquecimento ilegítimo de uns quantos, na forma como se manipulam leis e regulamentos ou como se falsificam domicílios fiscais à data do incêndio, tudo isto está presente. Pela mão do Governo, do Revita, da CCDR Centro e da Câmara Municipal.

O pacto de silêncio também já chegou ao Parlamento e mais parece um daqueles pedidos para “defender o bom nome da terra” que uns quantos parolos nos vendem para aceitarmos a podridão, a iniquidade, a indecência, a impunidade… e nos calarmos!

Calar e silenciar o que se passa com a reconstrução de Pedrógão Grande, esconder os dados, não revelar a quem e como foram prestados os apoios, fugir às perguntas, não dar explicações, mentir, fazer comunicados com números falsificados, apresentar números que são desmentidos pelas evidências das reportagens jornalísticas, passou a ser a preocupação e o quotidiano dos seus responsáveis políticos.

O que se passa em Pedrógão Grande, a tentativa de calar e abafar o escândalo, é o expoente da cultura de corrupção que ainda grassa em Portugal

Arquitecto, presidente do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana de 2012 a 2017