Há muito que se fala da modernização da máquina do Estado, pelo que vários governos, incluindo o atual, trabalham na tentativa de melhorar a nossa relação com as instituições públicas. Desde o lançamento do Simplex ao Plano de Ação para a Transição Digital, são inúmeras as tentativas de melhorar a nossa relação com os serviços públicos.

Isto sucede-se porque todos nós – em algum momento das nossas vidas – somos confrontados com situações de um quase autêntico desespero perante o atendimento dos serviços do Estado, onde nos exigem soluções, mas não nos apresentam respostas de como as concretizar. Quantos de nós já não passaram pela situação de ter dúvidas, de ficar surpresos ou simplesmente de não compreender o porquê da demora de um pedido de informação? Quantos de nós já não tiveram informações díspares dependendo da boa vontade de quem nos está a atender no momento? E se isto sempre foi particularmente importante desde que o “Estado” existe, é mais ainda num momento como o atual, onde, perante a incerteza futura e perda de base de sustento das famílias, o Estado Social e os seus serviços são a linha da frente da resposta coletiva, devendo ser o garante da dignidade das pessoas e famílias.

Mais do que nunca, haver rapidez na resposta dos serviços do Estado é importante! No entanto, a pandemia veio criar o inverso, ou seja, tornou o Estado mais lento, distante e difícil de alcançar.

Deixem-me relatar-vos uma situação que me chegou ao conhecimento e que me foi relatada na primeira pessoa. Neste caso, de alguém que, tal como vários outros milhares, perdeu o seu emprego devido à paragem económica. A pessoa em questão perdeu a sua principal fonte de rendimento após o término do contrato de trabalho que tinha com uma empresa da área do turismo. Nesse sentido, encerrou também junto da Autoridade Tributária a atividade que lhe permitia obter algum rendimento extra e solicitou, tal como prevê a lei, o acesso ao subsídio de desemprego.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Atendendo ao facto de estarmos a falar de alguém jovem, com bons conhecimentos informáticos, que sempre preferiu tratar de tudo via online e estarmos em contexto pandémico, ela preferiu submeter o pedido via online – achando que tal iria ser mais célere e transparente para todas as partes.

Contudo, com o passar do tempo e após inúmeras tentativas infrutíferas através do contacto telefónico da Segurança Social Direta – onde aparentemente o telefone chegava a ficar a tocar por mais de meia hora até desligarem a chamada, optou por solicitar uma marcação presencial junto da Segurança Social mais perto da sua área de residência, com o intuito de obter informações sobre o processo.

Se o nível de ansiedade de alguém que perde pela primeira vez o emprego e recorre ao subsídio de desemprego já é grande, imaginem associar a isto a expectativa de ter acesso a algum apoio a quem tem direito nesta fase de transição da vida, mas não ter forma de acompanhar o processo. Foi exatamente isso que lhe aconteceu, pois mesmo acedendo ao portal da Segurança Social Direta, a única informação que conseguia obter era a simples mensagem “em análise”, não existindo qualquer informação sobre se o processo estava bem submetido, qual a pessoa responsável pela análise ou até mesmo uma data de previsão de resposta ou conclusão.

Quase dois meses após a submissão do pedido, é-lhe informado, desta feita presencialmente, que o processo “estava para indeferimento” por falta de um documento da Autoridade Tributária. Estando bem capacitada para obter os documentos por via online, nesse mesmo momento e durante o atendimento presencial, a pessoa em questão acede ao seu Portal das Finanças pelo smartphone e descarrega o documento em falta – documento esse que poderia ter sido logo entregue se referenciado pela plataforma online ou se alguém (talvez quem fez a análise do processo) lhe tivesse indicado estar em falta.

Apesar de tudo, houve um sentimento de alívio por finalmente saber que iria conseguir desbloquear a situação e concretizar o pedido a que tinha direito.

Mal ela esperava o que viria a seguir…

Apesar de ter o documento em falta no seu smartphone, foi-lhe informado que não poderia enviar por email à funcionária, visto que na repartição da Segurança Social só aceitavam os documentos em formato papel.

Conclusão, uma vez que o comércio não essencial se encontrava encerrado – não havendo a possibilidade de ir imprimir nas redondezas – a pessoa em questão continuou sem acesso ao subsídio de desemprego e teve de solicitar um novo agendamento para entrega da documentação em falta – apenas disponível um mês e meio depois – por forma a conseguir desbloquear a situação.

Isto até teria piada… se não fosse verdade!

Por mais que se aposte, e bem, na digitalização do Estado e sua simplificação, haverá sempre necessidade de, em algum momento, ter acesso a “alguém” do outro lado que não seja uma mera entidade opaca, mas uma pessoa de carne e osso.

Assistimos à modernização pública através da mera computação/digitalização dos processos, mas sem pensar em alterar a relação com os utilizadores – quer internos, quer externos -, o que cria uma falsa sensação de agilidade que se desmorona quando as pessoas mais precisam de apoio.

Não adianta termos os processos todos informatizados ou online se, no que respeita ao cerne da questão, que é a cultura organizacional das entidades públicas, a mesma está baseada em cumprir os procedimentos e não em servir melhor os seus “clientes” num processo de melhoria contínua da experiência do utilizador.

E este é o grande desafio que temos pela frente.

Tal como um edifício, por mais preocupados que estejamos em torná-lo mais confortável, robusto e agradável, se o mesmo estiver assente sobre um fundo de areia argilosa, em caso de terramoto ele irá tombar. E assim assistimos a situações anacrónicas em que, apesar de se conseguir obter um documento digital ao segundo, é necessário imprimir e fazer a entrega em papel para que o mesmo possa dar entrada no “sistema”.

Numa economia 4.0, onde o Estado é o sistema de subscrição mensal (direta ou indiretamente) mais caro que todos nós pagamos, o mínimo que deveríamos exigir é um sistema de CRM (Customer Relationship Management) onde seja possível acompanhar a experiência do utilizador e avaliar o atendimento.

Só quando deixarmos de ter medo de avaliar os atendimentos públicos – por forma a conseguirmos saber quais as equipas mais eficientes e prestáveis – é que iremos, por um lado, conseguir premiar e dar mérito aos funcionários que melhor prestam o seu serviço aos contribuintes e, por outro lado, alterar a perspetiva da grande maioria dos cidadãos perante os funcionários públicos: a de que estes estão lá para nos servir e não para se servirem. Ignorar este facto é apenas deixar que aquilo que devia ser a nossa maior conquista enquanto sociedade – as instituições coletivas – se desvaneçam num futuro de incertezas e conflitos entre público e privado, algo que, nos dias de hoje, faz cada vez menos sentido.

Diogo Vieira da Silva, Licenciado em Comércio Internacional com pós-graduações em Gestão Hoteleira e em Marketing Digital, encontra-se actualmente a realizar o The Lisbon MBA Católica|Nova, uma joint-venture entre a Católica-Lisbon e a Nova SBE em parceria com o MIT Sloan. Desde cedo se envolveu na promoção dos Direitos Humanos das pessoas LGBTI, tendo ajudado a fundar duas ONG’s nesta área e assumido a Coordenação Europeia do Projeto Norte-Americano It Gets Better Project durante dois anos consecutivos. Co-Fundador da VARIAÇÕES – Associação de Comércio e Turismo LGBTI de Portugal, detém o cargo de Diretor Executivo e a Coordenação da Campanha Proudly Portugal, foi recentemente eleito como próximo curador dos Global Shapers Lisbon Hub.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa.  O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.