A notícia britânica da semana passada não foi a décima derrota parlamentar da Sra. May em torno da interminável novela do “Brexit”. Foi a declaração do “ministro-sombra” das Finanças, o trabalhista John McDonnell, sobre Winston Churchill. Quando lhe perguntaram (num evento do website “Politico”) como avaliava Winston Churchill, se como herói ou como vilão, McDonnell respondeu: “Tonypandy. Vilão.”
“Tonypandy” refere-se a uma greve de mineiros em 1910, quando Churchill era ministro do Interior, e em que teria alegadamente autorizado a utilização de armas de fogo pelas forças de segurança. Os historiadores negam essa versão, mas ela tem sido recorrentemente mantida por alguns sectores trabalhistas. O que chocou a opinião pública, no entanto, não foi a referência a “Tonypandy” — que muitos certamente desconhecem e que permanece um tema controverso. Foi o veredicto final de “vilão” sobre Churchill — de que o autor não se retratou, tendo aliás repetido no dia seguinte.
A resposta provocou justificada indignação. Sir Nicholas Soames, deputado conservador e neto de Winston Churchill designou o autor como um “third-rate, Poundland Lenin”. Vários deputados trabalhistas condenaram o seu próprio Ministro-sombra e recordaram a participação dos trabalhistas no governo de coligação nacional liderado por Churchill entre 1940 e 1945.
O episódio poderia ter ficado por aqui se John McDonnell não fosse uma espécie de braço direito, por vezes mesmo designado como inspirador intelectual, do actual líder trabalhista, Jeremy Corbyn. O caso ilustra, numa primeira apreciação, a forte deslocação para a esquerda que os trabalhistas têm sofrido sob a actual liderança — e que tem sido sobretudo associada a chocantes manifestações de anti-semitismo.
Vários analistas observaram que as declarações de McDonnell poderão contribuir para reforçar o mal-estar no interior dos trabalhistas. Rumores insistentes referem a possibilidade de cisão e de criação de um novo partido ao centro-esquerda. Uma cisão deste tipo ocorreu em 1980 — contra a liderança esquerdista de Michael Foot, que então enfrentava Margaret Thatcher na liderança do Partido Conservador. A cisão no Partido Trabalhista levou à criação do SPD, o Partido Social-Democrata. O partido teve um sucesso relativo, mas inspirou a ulterior recentragem do trabalhismo sob a liderança de Tony Blair: a chamada “Third Way”, que Blair partilhou com Bill Clinton e os chamados “New Democrats” nos EUA — com êxito significativo.
Mas, para além da dimensão estritamente partidária, há outra dimensão mais crucial: a atmosfera moral e intelectual. Como devemos interpretar que um dirigente do segundo maior partido britânico venha dizer em público que o líder do mundo livre durante a II Guerra, Winston Churchill, foi um “vilão”?
O episódio parece corroborar os alertas que vêm sendo lançados por vários sectores sobre a degradação da atmosfera moral e intelectual das democracias ocidentais. Essa degradação tem como palco primeiro as chamadas “redes sociais”. Mas está a ocorrer também nas Universidades, através do abandono do estudo dos clássicos e sobretudo devido às modas politicamente correctas que impedem a livre expressão de pontos de vista — sobretudo se, e quando, esses pontos de vista não são politicamente correctos. O resultado só pode ser o crescimento do radicalismo e da arrogância — que são basicamente produto da ignorância.
Vamos ser claros: não somos obrigados a ter todos exactamente a mesma opinião sobre Winston Churchill. O homem teve uma carreira parlamentar de 64 anos (entre 1900 e 1964, tendo morrido em 1965); mudou de partido duas vezes (dos conservadores para os liberais em 1904, de volta aos conservadores em 1924); exerceu 11 cargos governativos, dois dos quais como primeiro-ministro (1940-45; 1951-55). Cometeu obviamente muitos erros e, obviamente numa democracia, mesmo muitas das posições que uns consideram certas outros podem considerar erradas. Mas convém recordar que temos a liberdade de discordar sobre Churchill porque ele liderou a defesa da democracia quando ela estava em perigo de morte.
Na mais recente biografia de Churchill — publicada em Novembro do ano passado por Andrew Roberts (e que será publicada entre nós pela D. Quixote em Outubro próximo) — o biógrafo atribui a Churchill uma longa lista de erros ao longo de todo o livro (de 1105 páginas!). Caso o leitor tenha perdido a conta a esses erros, Andrew Roberts recorda todos eles numa página inteira perto da Conclusão (p. 966). Mas, como tive oportunidade de sublinhar numa recensão recente, depois da longa lista de erros, Andrew Roberts conclui:
“Churchill teve razão acerca das três ameaças mortais desencadeadas [no século XX] contra a civilização ocidental: pelos militaristas prussianos em 1914, pelos nazis nas décadas de 1930 e 1940, e pelo comunismo soviético depois da II Guerra”.