Não imagino forma mais entediante de começar um texto do que com “De acordo com dados oficais do Conselho Europeu”, mas um dia não são dias. De acordo com dados oficiais do Conselho Europeu, quase todos os ataques terroristas cometidos na UE durante a última década, à média grosseira de uns cem por ano, têm uma de quatro origens, ou inspirações: o jihadismo; o separatismo; a extrema-esquerda e, num contributo surpreendentemente baixo face ao rebuliço alusivo (uns 2 ou 3%), a extrema-direita. Nenhum dos ataques aconteceu em Portugal, desfeita que nos afasta das nações desenvolvidas e que tentamos contrariar na medida do possível.

É injusto desvalorizar o esforço com que, em tempos recentes, o nosso país tem procurado arranjar um arremedo terrorista a que possa chamar seu. Se um grupo de marmanjos invade um campo de treinos para insultar e agredir futebolistas, isso é obviamente terrorismo (por azar, o tribunal discordou). Se passa pela cabeça de um rapazola matar colegas de universidade, isso é naturalmente terrorismo (por desleixo, o tribunal discordou). Se um informático divulga mails privados de um clube desportivo, isso é francamente terrorismo (por incúria, A Bola ainda não faz lei). Se um líder partidário se aproveita do homicídio de duas mulheres a cargo de um afegão para fazer propaganda eleitoral, isso é evidentemente terrorismo, pelo menos na opinião de um sujeito que assina crónicas no Expresso apesar de não saber escrevê-las (por fatalidade, ninguém as lê).

Aparentemente, o que não é terrorismo de certeza absoluta é o duplo homicídio cometido pelo tal afegão. Curioso. Por uma vez, houve uma confluência de critérios que aproximavam o sucedido de uma parte considerável dos atentados cometidos por essa Europa afora. Por uma vez, Portugal desprezou à partida a hipótese de conseguir o seu atentado. Num ápice, meio mundo irrompeu a garantir que o assassino não era terrorista. No instante seguinte, quase se garantiu que o assassino não é sequer um assassino.

Para a Judiciária, trata-se apenas de um homem que sofreu um surto psicótico, no pressuposto de que é comum andar-se prevenido com uma faca para a eventualidade de tais fenómenos. Uma escola de pensamento subsidiária da anterior sugere os distúrbios mentais do sujeito, o que o afasta de imediato dos “jihadistas” radicais que se distinguem pelo equilíbrio emocional e a clareza de raciocínio. Para outra escola de psicanálise, o sujeito vivia triste desde que cá chegou, na convicção de que, excepto parasitas e tolinhos, existe aqui gente com motivos para rir e cantar. Para uma terceira corrente teórica, o sujeito é um pobre viúvo que perdera a cônjuge na Grécia, na crença firme de que a viuvez costuma despoletar carreiras de “serial killer”. E há os que apostam num telefonema “suspeito” recebido pelo sujeito antes do “surto psicótico”, talvez um inquérito de satisfação da entidade bancária. Há os que referem um interesse não correspondido do sujeito por uma das vítimas, romantismo bastante para abatê-la e a mais um ou dois desgraçados no processo. E há Sua Incontinência, o PR, que além de marcar insondável presença no cenário de um “acto isolado” e trivial, divagou nebulosamente acerca das complicações ligadas ao “exercício do poder parental”, subentenda-se (?) a preocupação do sujeito com a tutela dos filhos, que com a mãe falecida e o pai preso devem estar radiantes.

É exagerado dizer-se que tenha havido a beatificação do assassino, perdão, do infeliz refugiado: apenas se deu entrada à papelada necessária. Não me lembro de tamanho investimento na “compreensão”, a roçar a legitimação, de um crime. Porquê? Porque o criminoso é estrangeiro e muçulmano, ou seja, as boas almas relativizam as acções do assassino a partir da exacta circunstância que leva o dr. Ventura a generalizá-las. Caso o assassino fosse um português católico, o dr. Ventura nunca lhe dedicaria um discurso irado e as boas almas nunca se dariam à trabalheira de o absolver mediante sucessivos “contextos” e justificações. A diferença é que a atitude das boas almas lhes concede um banho de virtude e, por uma atitude similar na natureza e no oportunismo, o dr. Ventura acabou universalmente condenado – muito mais condenado, aliás, que o próprio assassino.

Quanto aos factos, a verdade é que conhecemos poucos. Não sabemos se Abdul Bashir é terrorista, doido varrido, psicopata, selvagem, ginofóbico ou uma mistura saudável das diversas alíneas. Temos a impressão que é do género masculino, se ele se identifica assim, que é natural do Afeganistão e que observa as prescrições do Profeta, quiçá num bando dissidente dos ismaelitas. E temos provas de que matou duas mulheres, mandou um homem para o hospital e arruinou várias famílias. Logo, nunca é suficiente repetir, é um assassino. E se é feio usar um assassino para culpar inocentes vivos, pior é desprezar inocentes mortos para desculpar um assassino.

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