Primeiro episódio. Há tempos, um juiz decidiu justificar uma decisão judicial com desabafos próprios e incursões pela Bíblia. Lembrando, aparentemente com inveja, que “há sociedades em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”, o magistrado informou-nos que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”, que o Código Penal de 1886 “punia com uma pena pouco mais do que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse” e que “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou (são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras), e por isso vê[-se] com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”. Recentemente, o juiz, Neto de Moura, afirmou em entrevista que preza imenso a fidelidade conjugal. Pelo menos na parte que cabe à fêmea da espécie, já desconfiávamos.

Segundo episódio. Uma escola do Barreiro convocou uma associação LGBTEtc. para promover, junto de crianças de 11 ou 12 anos, uma palestra destinada a “educar contra a discriminação”, além de “sensibilizar os alunos para a aceitação das diferenças e o respeito pela diversidade”. A palestra esteve a cargo da Rede Ex Aequo, uma daquelas associações que usa o @ no lugar dos pronomes na convicção de que isso disfarça as carências gramaticais e lhes dá um ar “moderno”. Do que vi, a Rede Ex Aequo, instalada em instalações da ILGA, vive a “dinamizar sessões” do género (e de género – desculpem) em escolas de todo o país entre Santarém e Setúbal. Não satisfeita, a Rede Ex Aequo também promove “encontros de trans”, torneios de futsal contra a discriminação e acampamentos de Verão “para Jovens LGBT e Simpatizantes” (com “convidadxs” e “organizadorxs” – juro). Nos intervalos, aflige-se com o “bullying homofóbico”.

As reacções ao primeiro episódio são assaz conhecidas. Meio mundo indignou-se com os palpites do juiz e tentou incinerá-lo ou despedi-lo, de acordo com o que ficasse à mão. Os fãs de apedrejamentos defenderam o sujeito. Os partidos aproveitaram a deixa para meter um pezinho nas decisões judiciais.

As reacções ao segundo episódio não foram tão espectaculares. Diversos anónimos acharam a ideia aberrante e um deputado (do PSD) chamou-lhe “porcaria”. Espectaculares foram as reacções às reacções: os mesmos que pediram a cabeça do juiz passaram a pedir a cabeça do referido deputado – e aplaudiram o ministério da Educação, a escola em causa e os saltimbancos da “diversidade”.

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O engraçado, para não dizer deprimente, é que todos, ou quase todos, acabaram a criticar e a apoiar em simultâneo coisas afinal idênticas. Consoante os propósitos, os intervenientes e os alvos, uns e outros são a favor de que os poderes públicos ultrapassem os limites que o bom senso recomenda e desatem a regulamentar a intimidade alheia. Não importa se o objectivo passa por devolver as mulheres à subserviência ou por empurrar as crianças para uma parada de “orgulho”, e também não importa se discordamos ou concordamos com tais desígnios: importa que nenhum deles deve ser preocupação dos senhores que nos tutelam. Gostos não se discutem, mas faz-me impressão que, com fins “tradicionais” ou “avançados”, o Estado se deite na minha cama. Inúmeros portugueses, pelos vistos, apreciam que o Estado se deite na deles. É uma perversão irrelevante?

Não é. Quando quem manda é convidado a iluminar os “valores” sexuais de certos indivíduos, é natural que quem manda se senta legitimado a iluminar os “valores” sexuais de cada um, incluindo daqueles que dispensam a ajuda. E é pena. As pessoas deveriam ser livres de sonhar com donzelas submissas, bichas insubmissas e a rebaldaria que calhar. As pessoas. O Estado deveria apenas assegurar que, na prática, estas convicções privadas não transgridem os limites da lei. Caso contrário, entra-se nos curiosos domínios da moral pública, pasto fértil de beatos sortidos. Na essência, a beatice do ensino “progressista” não difere da do juiz de que se fala: ambos se convenceram de que lhes compete evangelizar o próximo – e o pior é que, com frequência e em vez de despachá-los à vassourada, o próximo agradece. É uma combinação letal, que antes do desgaste da palavra se designava por fascismo.

Para cúmulo, tudo isto em volta do sexo, matéria em que, há milhares de anos, lá temos arranjado maneira de nos desenrascar sem auxílio burocrático. A prova cabal é a quantidade de cambalhotas ocorridas, geração após geração, até desaguar na existência d@ rapaziad@ d@ Rede Ex Aequo e do dr. Neto de Moura. Pensando melhor, talvez haja liberdades excessivas.

Notas de rodapé

  1. Ia escrever que a artista Leonor Nãoseiquê, a tal que só aceita representar Portugal na Bienal de Veneza porque temos um espectacular governo de esquerda, não representa Portugal coisa nenhuma em coisa nenhuma: no máximo, e à semelhança de cançonetistas, futebolistas e malabaristas, representa-se a si própria. Mas isso foi antes de ver as “obras” da senhora. Agora, que já vi, não tenho dúvidas de que aquilo representa o país com particular exactidão.
  2. Em vez de ter amigos e familiares que lhe emprestam casas, carros, contas e cargos, Pedro Passos Coelho anda para aí a dar aulas a troco de 2000 euros mensais. Perante tamanha vergonha, as autoridades nada dizem. Batemos no fundo.
  3. Percebo e respeito os estudantes que decretaram greve às aulas por causa das alterações climáticas, do capitalismo e assim: no meu tempo, eu também aproveitava os mais ridículos pretextos para não pôr os pés na escola. O que não percebo, nem respeito, é que se espatife o tempo livre em manifestações e berreiro. É a esses choninhas que queremos deixar um mundo melhor? O actual já é bom demais.   
  4. À revelia da lei e da polícia, a empresa socialista, perdão, pública Infraestruturas de Portugal mandou remover ilegalmente um cartaz da Iniciativa Liberal. No mesmo local, permaneceram imaculados os cartazes de PS, PCP e BE. Quem julga estar no seu país é estúpido ou faz-se: com ligeiras, e crescentemente raras, excepções, o país é deles.