Nos últimos tempos, a nossa oligarquia política decidiu convencer-nos de que afinal há outra oligarquia em Portugal, muito mais temível: é a oligarquia judiciária. Sim, juízes, procuradores e mais oficiais de justiça não são aquilo que parecem. Nas catacumbas dos tribunais, haveria um mundo à parte, cheio de códigos secretos e ambições desmedidas. Da sua maldade, nós, os cidadãos desprevenidos, não fazemos ideia. Escutam telefones, para exporem intimidades. Inventam e arrastam processos, para crucificar patriotas. António Costa teria sido uma das suas vítimas, um primeiro-ministro eleito pelos portugueses, e demitido pelo Ministério Público. 50 anos depois, haveria uma “nova PIDE”, a tecer, no coração do regime, as malhas de um golpe de Estado permanente. Pobre oligarquia política. Coitadinha dela. Já não lhe bastavam os “populistas”, acicatando pelas vielas os maus instintos da plebe. Agora tem também os magistrados, enfronhados numa guerrilha togada para “judicializar” a política.

Isto é para levar a sério? Não, não é. Uma coisa são as limitações e perversões da “máquina” da justiça. Discutimo-las há décadas, sem que governantes e legisladores lhes ponham termo. As normas não mudam, os recursos não aparecem, os maus hábitos persistem. Isso, repito, é uma coisa. Outra coisa é agarrar em tudo isso, adicionar-lhe um caldo de conspiração, e inventar “um complot dos juízes” para nos convencerem de que Portugal não tem um problema de corrupção, mas apenas de imperialismo judiciário. Peço muita desculpa, mas não consigo acreditar nessas bruxas. Não consigo, por exemplo, acreditar que António Costa se demitiu por causa do estilo com que a Procuradora-Geral da República redige comunicados. Esse pode ter sido, escolhido por Costa, o pretexto. Mas não foi o contexto, que teve a ver com uma inesgotável cascata de escândalos que, a pouco e pouco, estavam a revelar ao país que o governo socialista pouco mais era do que um rancho de compadres a tratar o Estado como a sua quinta.

E esse é verdadeiramente o chamado “problema da justiça”. As irregularidades e as anomalias do exercício do poder atraem naturalmente a investigação judiciária. Desde que a Dra. Joana Marques Vidal – uma das personagens notáveis da nossa democracia — quebrou os ferrolhos do tempo de José Sócrates, isso aconteceu. Daí, o incómodo da oligarquia política com a justiça. Mas a justiça existe para detectar, provar e eventualmente fazer cessar e punir os crimes e prevaricações previstos na lei, e do modo como a lei requer. Ora, uma grande parte do que é abusivo, indigno e errado na maneira como a oligarquia política exerce o poder — e que, muito lógicamente, também nos parece “corrupção” — não corresponde sempre aos crimes do código penal. O que não torna menos indecentes nem menos nefastos os comportamentos dos oligarcas. A promiscuidade, as “facilitações” e o dirigismo económico que transpiraram da Operação Influencer talvez não cheguem para levar os seus protagonistas à cadeia, mas podem levar um país à ruína. Nunca um país em que os empresários são convidados a transformar-se em angariadores de cunhas e os técnicos em notários do que convém ao ministro – nunca um país assim se tornou mais rico e mais justo.

O problema é este: a justiça não será certamente o meio mais adequado para mudar este sistema. Isso compete a uma governação reformista. Mas o regime, em Portugal, ainda não gerou essa alternativa. A justiça acaba, querendo ou não, por preencher esse vazio. Pode até não preencher bem. Mas é o que temos. O que aqui está mal não é a justiça, mas a política.

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