Passou uma semana desde que o juiz Ivo Rosa leu ao país a sua decisão sobre a Operação Marquês. Pode-se dizer duas coisas. Primeiro, que o país que fala e comenta não gostou da decisão do juiz. Segundo, que a maioria do país que fala e comenta continua sem perceber – ou sem querer perceber — o que está em causa.

O primeiro erro é a tese, suscitada pela prestação do juiz Ivo Rosa, de que o problema está na justiça. Sim, talvez seja difícil acusar, julgar e condenar corruptos em Portugal. Mas as leis que criam essas dificuldades ou que permitem a alguns juízes inventar essas dificuldades não foram feitas pelos tribunais. O juiz Ivo Rosa é uma consequência, não é a causa. Não se esqueçam dos legisladores, isto é, dos políticos que neste regime governam, governaram e querem governar. Não, a culpa não é principalmente do juiz.

O segundo erro é endossar José Sócrates ao eleitorado português. A responsabilidade seria de quem votou nele. É assim? Não é assim. Os eleitores portugueses deram-lhe uma maioria absoluta em 2005 e ainda uma maioria relativa em 2009. Mas os eleitores não elegeram simplesmente um corrupto. Os eleitores do Partido Socialista votaram no candidato a primeiro-ministro que o partido lhes ofereceu como alternativa ao candidato do partido contrário. Teriam de votar nele, independentemente do que pensassem dele, se não quisessem deixar eleger o seu adversário. Dir-me-ão: então a culpa cabe aos militantes socialistas, que em 2004 elegeram José Sócrates secretário-geral. É não saber como as coisas funcionam. Os militantes adoptaram o candidato que a maioria dos dirigentes do partido lhes recomendou. José Sócrates não foi simplesmente elevado ao governo por um eleitorado inorgânico, mas por um partido político. E dentro desse partido, não foi escolhido por uma sublevação das bases, mas pelo grupo que dirigia o partido. Não, a culpa não é de todos nós.

O terceiro erro é presumir que o que está em causa é a honestidade ou o “modo de vida” de um indivíduo que por acaso foi primeiro-ministro. Se fosse isso, a sua acusação, julgamento e condenação em tribunal poderiam esgotar a questão. Mas não é só uma pessoa que está em causa. José Sócrates fazia parte do grupo político que chegou ao governo em 1995 com António Guterres, de quem foi ministro-adjunto. Os crimes de que foi acusado pelo Ministério Público não respeitam apenas à prática de actos ilícitos visando o seu enriquecimento pessoal, mas à montagem de uma rede de influência com o fim de aumentar o poder do governo sobre a economia e a sociedade. Já o disse: é possível que os que com ele colaboravam ignorassem o aproveitamento pessoal que o antigo primeiro-ministro fez dessa rede. É impossível, porém, que não tivessem dado pelas promiscuidades, pelas cumplicidades, e pelos abusos do poder. Seria preciso andar muito distraído. Não, a culpa não é só de José Sócrates.

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O quarto erro é não ouvir o próprio José Sócrates. A maioria das pessoas ouviu-o, mas apenas para constatar como foi infeliz ao festejar uma decisão instrutória que, em relação à sua corrupção, a deu como provada, e não apenas prescrita. Mas José Sócrates disse mais coisas, em artigos, em entrevistas e num novo livro. Sócrates poderia ter alegado, como tantos acusados, que a justiça se enganou. Mas não. Para Sócrates, a justiça não se enganou. A justiça terá feito exactamente o que lhe mandaram: destruir, através de uma acusação falsa, um político que, como comentador, incomodava o governo do PSD em 2014, e que, como candidato, teria derrotado Marcelo Rebelo de Sousa em 2016. “Tudo isto foi intencional, planejado e devidamente arquitectado”, como mandou dizer à esquerda do Brasil. Para Sócrates, a justiça em Portugal é este instrumento que um governo ou um candidato podem usar: “a arma branca da golpada política”, segundo a define no livro.

É verdade que, a p. 67 do mesmo livro, explica que conspirações para “alterar uma lei” são impossíveis, pelo “número de pessoas que teriam de ser envolvidas para fazer isso”. Para prender um ex-primeiro-ministro, porém, são possíveis. É quase comovedor como não se dá conta da contradição. Daí que talvez seja tentador desprezar esta teoria como a invenção desesperada de um mitómano. Mas é mais do que isso. Porque a versão socrática da Operação Marquês não é original. É apenas uma reedição da “teoria da cabala” com que a direcção do Partido Socialista reagiu às detenções do “caso Casa Pia” em Maio de 2003 (que o próprio Sócrates lembra a p. 72 do livro). Numa e noutra teoria, temos o mesmo sentimento de cerco, a mesma propensão para conceber a justiça como um instrumento partidário, o mesmo cinismo em relação às instituições. O simples efeito de choque da investigação judicial não chega para explicar a “teoria da cabala”. O grupo que dirige o  PS e governa o país há mais de vinte anos não leva a sério o regime que o seu partido construiu nem o Estado que governa. Porquê?

Poderíamos começar pela sua história: a história de uma geração socialista que começou a carreira durante a década de governo de Cavaco Silva. José Sócrates foi eleito deputado em 1987, aquando da primeira maioria absoluta do PSD; António Costa em 1991, aquando da segunda. Pior: o “socialismo”, que tinham como bandeira, parecia fora de moda, depois de Thatcher, de Reagan e da queda do muro em Berlim. Provavelmente, terão receado nunca sair da oposição. Mais provavelmente ainda, quando, em 1995, chegaram ao governo, estavam decididos a fazer tudo para ficar. Por entre uma nuvem de tinta sobre educação, tecnologia e até “ética republicana”, reconstruíram-se como uma máquina de poder. Ocuparam o Estado, alimentaram clientelas eleitorais, puseram a seu favor os poderes económicos. A partir daí, ressentiram cada contrariedade, cada caso judicial, cada escândalo de imprensa e até cada ruptura financeira (em 2011, por exemplo), não como erros ou azares, mas como golpadas dos seus adversários, propiciadas pelo facto de o PS ainda não dominar tudo. Defenderem-se tomando conta de cada vez mais coisas: da justiça, da comunicação social. Em 2009, o procurador Lopes da Mota lembrou aos magistrados que investigavam o caso Freeport que não era boa ideia incomodar governantes socialistas; no mesmo ano, José Sócrates pôs a PT a tentar adquirir a TVI para calar uma jornalista. Quem se metia com o PS, levava.

Nisto, Sócrates e os seus camaradas fazem lembrar o presidente americano Richard Nixon. Nixon convenceu-se de que os Democratas tinham recorrido a golpes baixos contra ele. Quando chegou a sua vez de governar, veio decidido a jogar tão sujamente como imaginava que os seus adversários tinham feito. Um conspirador precisa de pensar que todos conspiram, tal como a um corrupto convém acreditar que todos são corruptos. É assim que se absolvem a si próprios: quem faz o que toda a gente faz, não tem culpa. E é por isso que, quando são confrontados com uma acusação judicial, a única razão que lhes ocorre para a explicar é que se trata de mais uma golpada dos seus inimigos.

José Sócrates é o retrato de Dorian Gray da actual liderança do Partido Socialista: a imagem que, convenientemente afastada, regista os traços de degradação de um grupo político que, graças ao poder, se passeia como eternamente novo e hábil. Sócrates parece, agora, sentir-se traído pelos seus antigos correligionários (a p. 113, dá afinal a entender que, ao lado da direita naturalmente fascista, também a actual “direcção” do PS estaria interessada na “remoção” do “único líder que teve uma maioria absoluta”). Mas se deixaram cair Sócrates, não renunciaram ao socratismo. É a mesma ocupação do Estado, o mesmo controle da banca e das empresas, o mesmo constrangimento da justiça, a mesma hegemonia nas televisões, e a mesma intolerância para quem pensa de outra maneira, agora exercida, em subcontrato, pela extrema esquerda, que se tornou a Guarda Fiscal ideológica do regime socialista. Nunca souberam governar de outra maneira, porque nunca pensaram que a democracia portuguesa fosse outra coisa senão uma disputa suja do poder, destinada a ser ganha por quem tenha mais habilidade e menos escrúpulos.  As leis e as instituições são apenas o véu de conveniência com que cobrem o exercício implacável do poder. Que fazer, quando é o próprio padre que não acredita na missa? É assim que os regimes chegam ao fim.