A palavra “tudólogo” tem vindo a ganhar tração no nosso vocabulário, constando já no dicionário online Priberam. A definição atribui-se a “pessoa que comenta ou dá opiniões sobre qualquer assunto como se fosse um perito de cada um desses assuntos”. Não tendo estudado a sua génese, é intuitivo depreender que este novo vocábulo surgiu na sequência da grande diversidade de temas abordados em alguns espaços de comentário unipessoais nos nossos meios de comunicação social. Afinal, pronunciar-se sobre temas tão distintos como saúde pública, política internacional, finanças públicas ou futebol poderá suscitar legítimas dúvidas acerca da capacidade do comentador para dominar todos os assuntos.
Este tipo de polivalência temática conflitua com a crescente tendência de especialização que a humanidade tem evidenciado, reflexo de uma integração e interdependência social cada vez maior. A lógica do “cada um por si” foi sendo abandonada à medida que as sociedades emergiam, permitindo que os seus membros se focassem no suprimento de determinada necessidade – como são exemplo a proteção ou a alimentação do grupo – dependendo dos restantes para outras. Por sua vez, a Ciência Económica mostra-nos que a especialização se pode alargar às nações como muito bem descreve a “Teoria da Vantagem Comparativa” atribuída ao economista britânico David Ricardo, no século XIX. Esta teoria diz-nos que cada país se deve especializar na produção de bens para os quais o seu custo de oportunidade seja menor que os demais, obtendo os restantes bens por via do comércio internacional.
Dito isto, não é meu intento veicular que a Economia detém o monopólio da explicação deste e outros fenómenos científicos ou que os economistas terão sido os únicos a advogar as virtudes da especialização. O escritor Sir Arthur Conan Doyle argumentou, nas palavras da sua mítica personagem, que qualquer pessoa se deveria focar em adquirir apenas as informações que lhe venham a ser necessárias. Quando o Doutor Watson conhece Sherlock Holmes, no livro A Study in Scarlet – Um Estudo em Vermelho, na versão portuguesa – testemunhamos a sua perplexidade ao constatar que o brilhante detetive desconhecia que a Terra girava em torno do Sol. Face ao espanto de Watson, Sherlock Holmes argumentou que considerava o cérebro humano como um sótão que, se atulhado com demasiados conhecimentos, dificultava o acesso àquilo que era relevante. Como tal, tudo o que não lhe fosse útil para o seu quotidiano era prontamente esquecido.
Lógica muito semelhante se tem verificado no mundo empresarial, com as firmas a procurarem concentrar-se naquela que é a sua área de negócio e a subcontratarem tudo o resto a outras entidades – como, por exemplo, as limpezas, serviços de refeições, contabilidade ou marketing. Mesmo dentro dos seus negócios, as empresas tendem a dirigir o seu foco para os produtos e clientes que geram mais lucro, conforme ilustra a elaboração de Richard Koch sobre o Princípio 80/20, na busca de maior eficiência e rentabilidade. Em igual sentido, as funções atribuídas a cada colaborador são bastante específicas e centradas em pequenos segmentos da atividade da empresa. Se atentarmos em muitas designações de cargos profissionais, veremos a designação de “Especialista em (…)”. Podemos depreender que a doutrina do Fordismo, com comprovados resultados na produtividade dos trabalhadores, continua bem presente nos nossos dias, tanto na fábrica como no escritório.
Perante os evidentes méritos da especialização, a grande questão que se coloca, é perceber se não estaremos a cair num exagero de excessiva compartimentação do saber em minúsculos nichos de alcance limitado. Ortega Y Gasset criticava esse mesmo facto em A Rebelião das Massas (1929), contrastando a crescente especialização dos cientistas com a convicção de que ciência é una e não um somatório de diversos ramos distintos. O filósofo espanhol lamentava que os cientistas se orgulhassem de dominar com mestria a sua pequena fatia de conhecimento – que pouco valor tinha quando separada das restantes – enquanto negligenciavam todo o imenso saber que ficava de fora. E rematava, dizendo que a sociedade tinha cada vez mais cientistas e cada vez menos pessoas cultas, fenómeno que contribuía para a emergência do “homem-massa”.
Não partilhando do acentuado pessimismo de Ortega Y Gasset, por reconhecer o progresso resultante desta forma de realizar investigação, concedo no facto de os seres humanos terem abdicado de compreender melhor o mundo para se tornarem campeões de determinada especialidade. Muitos de nós, que somos ou fomos estudantes universitários, corporizamos essa visão de perspetiva limitada em que procuramos focar-nos nas matérias das nossas áreas de estudo, menorizando ensinamentos e aprendizagens de outras. Como resultado, o nosso horizonte é cada vez mais estreito e quando participamos numa conversa em território desconhecido, ou ficamos calados ou tratamos de a puxar para temas mais confortáveis. Talvez isso ajude a explicar a relevância do futebol ou de outros temas de “massas” como tópicos que permitem desenvolver uma conversa prolongada, ao passo que questões da Física, da História, da Medicina ou da Economia são de participação limitada.
E se atentarmos no mercado laboral, vemos algo de muito semelhante. Formamos peritos em vendas, em contabilidade ou em engenharia que procurarão desenvolver um bom trabalho na sua área, mas serão menos suscetíveis aos desafios das outras. Poderão até maximizar a produção da sua equipa, mas de uma forma que não otimiza os resultados da empresa pela dificuldade que têm em enquadrar a sua participação em processos que envolvem outros domínios sobre os quais não têm o devido entendimento. Estes desafios tornam necessária a presença de profissionais que saibam enquadrar os contributos das diversas estruturas nos objetivos comuns. Bons gestores, assim como bons governantes, devem dominar uma grande diversidade de processos e competências, não se podendo de forma alguma limitar à sua área de especialização.
Mas mais importante que sublinhar esta preocupação ao nível da hierarquia das empresas ou das nações, há que trazê-la a cada indivíduo para que possa melhor compreender a realidade à sua volta. E nesse sentido, se houver um tudólogo que estuda cuidadosamente os temas e que se preocupa em transmitir conhecimentos diversos às pessoas que seguem o seu espaço de comentário, não merecerá da minha parte uma rejeição a priori. Afinal, poderá até contribuir para difundir informações pertinentes que, de outra forma, ficariam inacessíveis a muitos. Numa sociedade que vive intensamente o quotidiano profissional, é positivo poder adquirir um leque alargado de noções em “formato concentrado”. É indiscutível que a especialização foi e continua a ser chave na descoberta de novos saberes e inovações, mas pode empurrar-nos para uma maior fragmentação do conhecimento. Se os tudólogos – ou outra coisa que lhe queiram chamar – puderem ajudar os seus ouvintes/leitores a cimentar as diferentes peças numa leitura integrada da realidade, terão um propósito igualmente importante.