Em novembro de 1989, enquanto caía o muro de Berlim, o agente do KGB Vladimir Putin queimava apressadamente alguns documentos numa villa em Dresden, antiga RDA, para evitar que caíssem em mãos alheias. Pouco tempo depois regressaria a Leninegrado, atual São Petersburgo, para dar início à sua carreira política. Não muito longe, em Berlim, a Cientista Angela Merkel trabalhava no Instituto Central da Academia de Ciências de Berlim-Adlershof, depois de se ter formado em Física na Universidade Karl Marx, em Leipzig. Com um percurso escolar onde se notabilizou nas capacidades matemáticas e no domínio da língua russa, Merkel começou igualmente a desenvolver intensa atividade política na sequência do colapso da cortina de ferro.

No Fórum Internacional de São Petersburgo em 2013, a Chanceler Angela Merkel partilhava o palco com o Presidente da Federação Russa – a convite deste –, resultado de um aprofundamento das trocas comerciais entre os respetivos países. Dois anos antes, o controverso gasoduto que atravessa o Báltico, conhecido como Nordstream 1, era inaugurado, passando a fornecer gás russo diretamente à Alemanha. Este gasoduto mereceu forte condenação de amplos setores do bloco ocidental devido à crescente dependência germânica face à Rússia numa questão tão basilar como a segurança energética. Os responsáveis alemães contra-argumentavam então que se tratava antes de uma relação de interdependência: era verdade que a Alemanha precisava do gás, mas a Rússia também teria muito a perder caso cortasse o seu fornecimento.

A invasão da Crimeia e o abate inadvertido de um avião comercial – com armamento russo cedido aos separatistas da região ucraniana do Donbas – em 2014 não impediu que no ano seguinte fossem iniciadas conversações sobre um novo gasoduto para ligar Rússia e Alemanha, que viria a ser batizado como Nordstream 2. As expectativas de que o aprofundamento da interdependência económica entre o ocidente e o Kremlin serviria para aplacar as suas ambições revivalistas mantinham-se apesar deste duro revés. Parece ser claro que este sinal foi interpretado por Putin como demonstração de passividade perante as suas intervenções geopolíticas cada vez mais arrojadas.

A posição alemã não era, todavia, desprovida de sentido. Só uma crescente interdependência entre blocos antagónicos, aliada a um sistema estável de equilíbrios de poder, pode determinar a subsistência duradora de uma ordem mundial próspera. No entanto, a falta de um contrapeso efetivo às ações provocadoras de Moscovo criou a abertura para a sua continuidade. E foi assim que as exigências de Putin em relação à não integração de mais países da ex-URSS no bloco ocidental foram subindo de tom, numa clara tentativa de limitar o grau de soberania de outros povos nas suas opções económicas e defesa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Dezembro de 2021 marcaria o fim de dezasseis anos de Angela Merkel enquanto Chanceler alemã. Dois meses depois, Vladimir Putin iniciava a sua ofensiva na Ucrânia. A massiva mobilização militar junto à fronteira promovida ao longo de várias semanas em conjunto com a não satisfação das suas pretensões tornavam o recuo numa pesada derrota pessoal. Munido de uma narrativa grosseiramente fabricada para legitimar internamente a sua decisão, Putin deu o passo que muitos consideravam impensável. À luz da frieza que geralmente caracteriza as suas decisões, tal poderia ter em perspetiva dois fatores: uma reação débil do bloco ocidental – por um lado Biden tem demonstrado pouca firmeza e por outro a União Europeia havia perdido recentemente a sua líder de facto – e uma vitória rápida que lhe permitisse reforçar a sua posição negocial.

Nenhum destes se concretizou. Se é verdade que a férrea resistência ucraniana tem desafiado todas as probabilidades de poderio militar, a reação da União Europeia – e em menor escala de Estados Unidos e Reino Unido – foi particularmente digna de registo. O conjunto de sanções económicas aprovado foi além do que muitos imaginavam, colocando uma séria pressão sobre a economia russa, que já se manifesta numa brutal desvalorização do rublo, na escassez de alguns bens e no colapso de instituições financeiras. Mesmo com as medidas de mitigação entretanto adotadas, este quadro não deverá ser sustentável por muito tempo.

É neste contexto que se torna importante procurar antecipar os potenciais cenários que poderão ter lugar. O menos provável de todos será um recuo de Putin na sua manobra militar sem ter nada que possa apresentar como vitória. Considerando as legítimas pretensões do povo ucraniano, tal será muito difícil de alcançar através de um acordo de paz em que ambas as partes possam sair sem perder a face. Resta, portanto, o prosseguimento da via bélica. Com a economia russa a desmoronar-se, Putin quererá apressar um desfecho vitorioso para conservar a sua legitimidade no poder. Como a resistência ucraniana tem dificultado de forma tremenda este objetivo, a tentação para aumentar a brutalidade da intervenção militar será cada vez maior.

Infelizmente, é muito provável que esta guerra termine com incontáveis vítimas mortais, deixando um lastro de destruição indiscriminada. Adicionalmente, com a previsível escalada de violência para forçar uma rendição incondicional, não é de negligenciar a probabilidade de a NATO se ver arrastada para um conflito devastador com a Rússia que tanto tem procurado evitar. Vários países do leste europeu têm manifestado preocupações cada vez mais sérias relativas à sua segurança, nomeadamente Moldávia – com a delicada questão da Transnístria –, Polónia, países bálticos e escandinavos.

Com os impactos que já se fazem sentir nos preços do petróleo e do gás natural, é de perspetivar um longo inverno económico com subidas ainda mais expressivas da inflação e a dificuldade em recuperar a degradação das condições sociais resultante da pandemia do SARS-COV-2. O posicionamento dos vários blocos regionais terá preponderância na magnitude destes efeitos económicos e no condicionamento bem-sucedido da ação do Kremlin.

A China tem demonstrado uma posição ambígua, condenando brandamente a invasão da Ucrânia ao mesmo tempo insiste nas boas relações com Moscovo. É conhecida a boa relação entre Putin e Xi Jinping – consolidada com uma viragem estratégica do Kremlin para leste – com a China a ser um importante cliente do gás russo. Existe ainda a questão de Taiwan, com Pequim a tirar apontamentos sobre aquilo que poderá esperar caso opte por uma via bélica para com aquele arquipélago. Por seu turno, a Índia tem dependido da intervenção soviética para garantir a sua segurança com o vizinho Paquistão e não entrará em confrontação com o seu aliado de ânimo leve.

Já os países do médio oriente têm-se recusado a aumentar, por enquanto, a sua produção de petróleo para colmatar a escalada de preços depois de terem conseguido um dificílimo acordo designado por OPEC +, que engloba os países da OPEC e outros produtores como a Rússia. Adicionalmente, a errática política externa do Estados Unidos nos últimos anos levou a que a Arábia Saudita se aproximasse do Kremlin, tendo em mente a grande ameaça protagonizada pelo Irão e as recentes boas relações entre Teerão e Moscovo. Esta região do globo configura um bom exemplo de como Putin tem sabido aproveitar o espaço deixado pelos americanos para alargar a sua influência, considerando a sua extrema importância na produção de petróleo e gás natural a nível mundial.

Sem uma posição firme de Washington – que, entretanto, beneficiará com o aumento das exportações de petróleo e gás de xisto – para contrabalançar um potencial eixo sino-soviético, torna-se imperativo que a Europa ocidental abandone o seu estado letárgico e assuma uma posição forte de contenção ao seu expansionismo. Perdida habitualmente na resolução da sua complexa e burocrática organização interna, a União Europeia tem-se reduzido à inexistência na ordem internacional, o que também contribuiu em larga medida para o desfecho que hoje se verifica.

Há ainda que explorar um último cenário: uma possível substituição de Putin a partir do Kremlin que permitisse à Rússia voltar à mesa das negociações e reintegrar-se nas relações com o ocidente, aliviando o sufoco da sua economia. Tal aparenta ser ainda bastante improvável, mas o prolongamento deste impasse pode levar a um crescente descontentamento no seio da cúpula do poder russo. Afinal de contas, um líder só continua de pé enquanto a sua permanência for favorável aos interesses dos que o apoiam.

De uma forma ou de outra, será inevitável que a Rússia regresse desta zona de exclusão, por ser uma nação demasiado grande para ficar de fora. Quando tal acontecer, a tese da crescente interdependência económica com que Merkel procurou amarrar Putin deverá voltar para cima da mesa. Esperemos, no entanto, que seja acompanhada de maior firmeza na resposta a ameaças à segurança dos países ocidentais, por forma a afirmar a União Europeia como protagonista relevante no futuro sistema de equilíbrios de poder da nova ordem mundial.