Pronto. Centeno ganhou. Os Centenos que por aí andam, são muitos, estão todos de parabéns.
A esquerda exulta. O défice está controlado. O ano passado foi de 3%. Foi excelente. Foi o que foi e foi, do ponto de vista dos números, o que as normas contabilísticas ditaram. Não vale a pena mentir e estar agora a dizer que foi 0,9% quando, com os mesmos critérios centenais, teria sido de 3% em 2015. Já nem me lembro se foi esse o número.
Sinceramente, a maioria dos portugueses está-se nas tintas para que tenham sido 3% ou 0,9% ou fosse que número fosse. As senhoras idosas que eu vi ontem, quando fui visitar uma amiga que está mal, muito mal, nos corredores do Hospital de Santa Maria, não sabem se o défice foi de 20% ou de 1%. Para elas o que conta são as macas onde estão, o cheiro a urina, o barulho e o desconforto de serem exposição para quem passa. Elas estão lá, alinhadas, encostadas à parede, e não há nenhuma câmara oculta que se preocupe em ir mostrá-las. Não. Está tudo bem.
A minha amiga que esperou 10 dias por uma ressonância magnética já depois de internada, mesmo que isso já não lhe faça diferença, não quer saber de défices. Esta pessoa que esteve deitada num corredor durante 48h, até ser transferida para uma cama de uma das enfermarias não está interessada em despesa corrente primária. Nas mesmas salas em que, já lá vão quase 35 anos, estudei e trabalhei, entre as paredes acanhadas, tristes e atafulhadas, não se rejubila com o cumprimento da contenção orçamental a que a despudorada esquerda, a do PS, PCP e BE, nos condenou. Temo que o tempo da minha amiga se expire antes que chegue o almejado excedente orçamental que há de catapultar o Centeno para uma qualquer diretoria internacional. Contudo, estou absolutamente certo, esta doente que conheço bem está a ser tratada com o que de melhor se pode oferecer, com carinho e profissionalismo, o que ainda não falta em todo o SNS. Mas até isso está em risco.
O SNS foi derrotado. Percebeu-se bem na patética conferência de imprensa conjunta em que o pobre, já de espírito e não só de finanças, ministro da Saúde lá chamou a si a triste ideia de criar mais uma esdrúxula e excedentária comissão onde, ingenuamente, esperará poder capturar as Finanças. Triste cena em que se prestou a mostrar a devida vassalagem ao seu senhor e aproveitou para fazer coro das críticas a quem não consegue gerir porque não tem meios de gestão. Não percebeu que a confissão de que não poderá “endireitar” os dinheiros da saúde é uma admissão de derrota. Otimistas são os outros, o Senhor Feliz e o Senhor Contente, o Costa e o Centeno.
O nosso ministro lá confirmou que há má gestão, pois claro. Ele sabe. Como sabe que o discurso de que o problema do SNS é só de gestão e não de recursos, é um embuste que já não se pode repetir. Nem que fosse por consideração para com os doentes e profissionais de saúde, incluindo os gestores que assumem riscos financeiros e pessoais, defrontam uma labiríntica burocracia, esgrimam argumentos com um Tribunal de Contas que não consegue ser “compreensivo” ou rápido, e dão a cara, todos os dias, pelas instituições que não querem deixar afundar. Muitos, a maioria, foram lá postos pelo ministro que agora temos e, justamente, sentem-se traídos.
Não, não lhes consigo dar os parabéns. Não exulto, porque nunca exultei com défices controlados à custa do esmagamento dos serviços públicos. Aceitei, e aceitarei sempre, que se pague menos a funcionários, que não se apoiem banqueiros, que se cobrem mais impostos a todos os que os devem pagar, que se definam as taxas que for preciso impor, que se limitem as tecnologias a usar, que se controlem preços e que se compensem as baixas pensões com benefícios maiores para idosos e deficientes, mas não posso congratular-me com o fim do SNS.
Mais 100 euros ao fim do mês, sendo poucos o que tanto foram aumentados, não garantem melhores cuidados de saúde. As desigualdades em saúde, ao preço a que a tecnologia e os cuidados estão, não se combatem com as “reposições” de salários de que a esquerda se vangloria. E se é certo que há uma razão direta entre o poder de compra e a probabilidade de sobrevivência, essa diferença atenua-se através da melhoria do acesso a cuidados de saúde de qualidade mais do que por via de rendimentos mínimos garantidos.
A esmagadora maioria das pessoas, em todo o mundo e em Portugal, não tem, nunca terá, rendimentos próprios suficientes para tratar a generalidade das doenças de que poderá padecer. E será tudo cada vez mais caro. Até a prevenção. Menos despesa pública com salários de funcionários, depois de os terem aumentado e tendo em vista as progressões nas carreiras? Menos gasto com salários já depois do retorno, completamente errado, dos horários da função pública para as 35h? Isso, na saúde, só quer dizer falta de pessoal e não vale a pena aldrabarem-nos com a história das novas contratações que, é muito claro, são manifestamente insuficientes.
No caso dos médicos, eles vão-se embora, desistem do SNS e até sobram vagas quando as que abrem já são inferiores ao potencial número de candidatos. Como explicar isto aos olhos da minha amiga, afásica e sem cabelo, com o corpo preenchido de metástases, que continua em insistir acreditar no serviço público, o único a que pode acorrer com o salário, reposto e aumentado, de educadora no Ministério da Educação?
A derrota está lá, toda e glamorosa, na dívida aos fornecedores que teima em crescer mais do que a redução do défice. E, se nada for feito, se tudo continuar como tem continuado nos últimos dois anos, nunca vai parar de crescer, até que haja um Centeno que diga que é preciso deixar de ter um SNS universal e geral.
Como se a derrota não fosse já clara, veio agora um despacho que ordena o aumento de camas em hospitais de agudos. Claro que, como sempre, lá estão as referências aos tempos da tróika e aos “malvados” cortadores de há seis anos. Mas a derrota está lá toda, escarrapachada em letra de norma legal. A rede de cuidados continuados já não serve e tem de ser profundamente remodelada, a procura de serviços de urgência continua a aumentar e até já admitem fazer estudos, apesar de já haver vários e até recentes, para ver onde vão abrir mais uns “bancos”, como se lhes chamava até passarem a chamar-lhes serviços, em homenagem aos assentos onde se espera e desespera por ser visto por alguém.
Não, não está tudo na mesma. Está pior. Há mais procura e menos respostas. Está pior e já não se pode continuar a acreditar na mentira de que seria esta gente quem iria devolver o SNS aos cidadãos.
Ao nosso ministro, rendido sob as condições que só ele conhece, com a estima que lhe tenho só me resta deixar-lhe um conselho. Não repita muito que “somos todos Centenos” pois, um dia, alguém dirá que eles foram “todos Centenos” mas “Adalberto só houve um”. Sozinho, e nem da redução do défice se poderá gabar. Terá outras medalhas.