O tema da desinformação em tempo de guerra tem merecido referência na nossa imprensa a propósito da invasão russa da Ucrânia. É um tema importante que tem tanto de fascinante como de complexo. É uma prática muito antiga. Sem recuarmos ao lendário Cavalo de Tróia, podemos recorrer a Sun Tzu, o clássico da estratégia chinesa com 2500 anos, que faz dos estratagemas um pilar da sua receita para a vitória, recomendando fingir fraqueza quando se é forte e simular força quando se é fraco.
A forma como a desinformação tem sido discutida na nossa imprensa não tem sido, porém, muito esclarecedora. Por exemplo, há quem comece por afirmar, a respeito de operações psicológicas, que a elas recorrem todos os “litigantes”, mas depois opte por discorrer concreta e abundantemente a respeito da Bósnia ou da Ucrânia, mas não da Sérvia ou da Rússia. Na verdade, não faltam livros, e o melhor entre os mais recentes é Active Measures, de Thomas Rid, que documentam exaustivamente o enorme investimento que a União Soviética/Rússia fez ao longo do último século na produção de desinformação. Rid destaca, nomeadamente, que foi a Cheka, a polícia política que antecedeu o KGB a pioneira em criar um departamento com essa designação e dedicado inteiramente a essa tarefa, logo em 1923, um ano depois da fundação da União Soviética. Está quase a celebrar o seu centenário!
Espero não ser necessário lembrar que a Rússia começou esta invasão massiva com uma campanha igualmente massiva de desinformação. Foram semanas e meses a afirmar que a crescente concentração de tropas russas nas fronteiras da Ucrânia não passava de uma invenção ocidental, depois, que era um exercício militar de rotina e, por fim, que as tropas estavam a retirar. Tudo isto nas vésperas da primeira invasão em grande escala de um país europeu por outro com vista a conquistar e anexar território desde a Segunda Guerra Mundial. E houve, realmente, quem tivesse comprado essa desinformação russa, declarando que uma invasão russa em grande escala da Ucrânia era, simplesmente, uma impossibilidade!
O segundo problema que esta argumentação levanta é – e então, o que fazer? Vamos todos calar-nos e ficar à espera que a guerra da desinformação acabe? Miguel Sousa Tavares parece dar a entender que essa seria a melhor solução, ao concluir uma coluna recente dizendo que: “há mais culpados pela continuação da guerra, e a desinformação, a informação truncada […] é a sua principal arma. Um dia saberemos a história toda.”
Percebo que seja uma solução tentadora – estamos todos a ficar cansados da guerra – mas também é uma manifesta impossibilidade. Não vejo, aliás, nenhum sinal de que os analistas mais apegados à centralidade da desinformação e à ideia de que ela, aparentemente, impossibilita uma análise séria, fiquem à espera que a dita acabe para recomeçar a dissertar sobre o conflito. Provavelmente estão cientes, desde logo, de que a prática da desinformação não se limita ao tempo de guerra, nomeadamente por parte da União Soviética ou da Rússia que a ela recorre permanentemente. Há até quem defenda que, com Putin, a desinformação se tornou ainda mais central na ação interna e externa do Estado russo. O regime russo está ciente de que não é um modelo atrativo, por isso aposta em criar a confusão e colocar tudo em questão, ou, como diz uma obra já clássica sobre o tema: “nada é verdade, tudo é possível”. Portanto, não é séria a opção de esperar pelo momento em que tudo será revelado, todos os factos relevantes serão conhecidos, e em que teremos acesso a toda a documentação pertinente. Nós, historiadores, estamos bem cientes de que esse momento nunca chega. Mesmo em contextos políticos mais favoráveis, nunca podemos estar seguros de ter todos os documentos relevantes. E os documentos nunca falam por si, especialmente no caso da Rússia, onde o controlo político do passado tem sido uma prioridade permanente do Kremlin.
O que fazer? O que há a fazer é análise crítica com os dados disponíveis. Ou seja, multiplicar e verificar fontes, cruzar testemunhos, pelo menos na medida do possível. Essas são as condições de uma boa análise, seja ela jornalística ou histórica. Até concordo que há algum risco de que a grande simpatia da grande maioria dos europeus pela Ucrânia invadida possa distorcer a nossa análise. E, por vezes, haverá falta de informação e excesso de especulação. Naturalmente, na minha análise procuro evitar isso, mas é possível que tenha caído, por vezes, nesse erro. Para concretizar, Sousa Tavares aponta para uma excessiva e errada especulação em torno do que Putin iria dizer no seu discurso do Dia da Vitória, a 9 de maio passado. Parece, efetivamente prudente, quando se trata de analisar o futuro, não ter demasiadas certezas. Por isso, e a título de exemplo, quando me pediram para prever o que diria Putin a 9 de maio procurei falar sempre em termos do que era mais ou menos provável. E para que essa especulação fosse minimamente útil, procurei também ter em conta alguns dados objetivos. Não me parecia provável que Putin fizesse uma declaração de guerra à Ucrânia ou decretasse uma mobilização geral, porque isso seria reconhecer que a operação militar especial estava a correr mal. E porque tínhamos e temos indícios fortes, até declarações de responsáveis russos, de que a Rússia estava e está a ter dificuldades em armar e abastecer as tropas que têm, pelo que dificilmente teria capacidade de equipar e armar devidamente centenas de milhares de reservistas se decretasse uma mobilização.
Em suma, estamos a trabalhar com dados imperfeitos e até, por vezes, deliberadamente enganadores e devemos, portanto, ter o cuidado de evitar excessivas certezas. Devemos estar disponíveis para rever as nossas análises em função de dados novos e credíveis. O que não é aceitável, e corresponde até a um objetivo bem documentado do Kremlin, é alegar desinformação para anular qualquer discussão séria de dados e factos bem documentados, como sejam os crimes de guerra russos na Ucrânia analisados em relatórios de organizações credíveis, da OSCE à Amnistia Internacional. Existir desinformação dos dois lados de uma guerra não quer dizer que ambos os lados sejam equivalentes, ou que seja impossível fazer uma análise séria dos factos conhecidos e credíveis.